I. Introdução
Toda ação humana guiada por inteligência exige um caminho. Este caminho, quando traçado deliberadamente para alcançar um fim específico, recebe o nome de método. Por meio dele, uma ideia se realiza, ganha corpo, passa da abstração à prática.
Contudo, raramente nos perguntamos de onde vêm os métodos que utilizamos. Quem os formulou? Em resposta a que problemas? Que ideias os inspiraram? É neste ponto que entra a metodologia — o estudo crítico e histórico dos métodos. A metodologia investiga o processo pelo qual um método foi criado, as influências que o moldaram e as circunstâncias que o tornaram necessário.
Este texto propõe a seguinte imagem: o método é o cavalo, a ideia é o cavaleiro e o campo de batalha é o mundo da ação. A metodologia, nesse contexto, é o estudo da genealogia do cavalo: sua linhagem, sua domesticação, seu treinamento e seu comportamento nas guerras anteriores. Unir método e metodologia é o que permite ao cavaleiro não apenas montar, mas montar com sabedoria.
II. Método e Metodologia: Conceituação e Distinção
O método é um conjunto ordenado de etapas a serem seguidas para se alcançar um resultado. É pragmático, técnico, operacional. É o “como fazer”.
Já a metodologia se volta para a reflexão crítica sobre esses métodos. Ela os estuda em sua gênese, examina seus pressupostos e analisa suas implicações. Nesse sentido, a metodologia é um ramo particular da história das ideias, pois investiga como certas ideias, diante de determinados contextos históricos, se tornaram práticas recorrentes e estruturadas.
A metodologia exige atenção biográfica (quem pensou o método?), textual (em que obras isso foi formulado?), doutrinária (que tradições o influenciaram?) e contextual (que desafios históricos demandaram essa formulação?).
Por isso, ao compreendermos um método, estamos também compreendendo o mundo em que ele surgiu. O método é a ideia montada — a metodologia revela quem selou o cavalo, onde, por quê e com quais ferramentas.
III. Exemplos Históricos: As Grandes Cavalarias da Razão
1. René Descartes: A Busca pela Certeza
No início do século XVII, o mundo europeu vivia sob o signo da dúvida: ceticismo filosófico, guerras de religião, crise da escolástica. É nesse clima que surge René Descartes com seu método da dúvida metódica — uma espécie de purificação do pensamento para encontrar uma verdade absolutamente segura.
Sua famosa máxima “Penso, logo existo” não é um ponto de partida arbitrário, mas o resultado de um percurso metodológico guiado por um ideal geométrico de clareza. A metodologia cartesiana só pode ser compreendida se levamos em conta sua formação matemática, o impacto das guerras religiosas e o desejo de fundar um saber tão firme quanto as ciências exatas.
2. Francis Bacon: O Saber como Poder
No mesmo século, Francis Bacon propõe um método indutivo que parte da observação sistemática e da experimentação. Seu lema era claro: “Saber é poder.” O objetivo não era a contemplação, mas a transformação do mundo natural em benefício do homem.
O método baconiano nasce em um contexto em que a ciência começa a se libertar da metafísica medieval e a se aproximar da técnica e da prática. A metodologia baconiana nos obriga a pensar no vínculo entre o empirismo inglês, a política expansionista da Inglaterra e o nascimento da ciência moderna como instrumento de domínio da natureza.
3. Galileu Galilei: A Matemática como Linguagem da Natureza
Galileu une a observação empírica com a linguagem matemática. Para ele, o universo era um livro escrito em caracteres geométricos, e o papel do cientista era decifrá-lo.
O método galileano não nasceu no silêncio dos laboratórios, mas no conflito direto com as autoridades religiosas e filosóficas do seu tempo. A metodologia galileana nos convida a estudar como a revolução copernicana, os avanços técnicos (como o telescópio) e o novo espírito renascentista colaboraram para a emergência de uma ciência fundada na experiência e no cálculo.
4. Karl Popper: A Falseabilidade como Critério
No século XX, Popper propõe que o método científico não consiste em confirmar hipóteses, mas em testá-las de modo a poder refutá-las. Toda teoria científica é provisória, diz ele — válida até que uma observação a derrube.
Essa proposta metodológica surge em meio às frustrações do positivismo e à ascensão de doutrinas totalitárias que se diziam "científicas". A metodologia popperiana nos remete à experiência de Popper com o nazismo e o comunismo, e à sua tentativa de distinguir ciência e ideologia. Seu método é uma defesa da liberdade crítica do pensamento.
5. Thomas Kuhn: A Ciência como Ciclo de Paradigmas
Kuhn nos lembra que não há método neutro e universal. Cada época científica opera segundo um paradigma — um conjunto de pressupostos que moldam até mesmo o que pode ou não ser considerado uma pergunta legítima.
Para Kuhn, revoluções científicas não são simples aperfeiçoamentos, mas rupturas metodológicas. Sua obra exige uma metodologia que considera a ciência como fenômeno cultural e histórico, e não apenas lógico. Em sua visão, o cavalo (o método) muda de forma conforme o paradigma vigente — e não raro o cavaleiro precisa aprender a montar de novo.
IV. Conclusão: Domar o Cavalo, Honrar a Ideia
Esses exemplos mostram que o método nunca é puramente técnico ou atemporal. Ele é o produto de um espírito em luta, de uma mente que responde às dores e esperanças de seu tempo.
Por isso, compreender um método exige mais do que usá-lo: exige refletir sobre sua origem, sua estrutura, sua moralidade e seus efeitos. Isso é tarefa da metodologia — tarefa filosófica, histórica, crítica.
Dizemos, por fim: a ideia é o cavaleiro, o método é o cavalo, o mundo é o campo de batalha. E a metodologia é o tratado de cavalaria — aquele que forma, adestra e julga tanto o cavalo quanto o cavaleiro. Quem ignora essa dimensão corre o risco de lutar com armas alheias, em guerras que não entende.
Bibliografia Essencial
I. Obras sobre Método e Metodologia
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BACHELARD, Gaston. A Formação do Espírito Científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
Obra clássica sobre os obstáculos epistemológicos e a construção crítica do método científico.
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MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: dos Pré-Socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
Boa introdução geral, especialmente útil para contextualizar a transição de métodos filosóficos ao longo do tempo.
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LAKATOS, Imre & MUSGRAVE, Alan (orgs.). A Crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento. São Paulo: Cultrix, 1979.
Reúne textos fundamentais sobre a metodologia científica contemporânea, inclusive críticas ao modelo popperiano.
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CHALMERS, Alan. O Que É Ciência, Afinal?. São Paulo: Brasiliense, 1993.
Uma introdução acessível, mas crítica, aos principais conceitos da epistemologia e da metodologia científica.
II. Obras dos Autores Citados
René Descartes
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DESCARTES, René. Discurso do Método. São Paulo: Nova Cultural, 1991 (Coleção Os Pensadores).
Texto fundamental onde o autor estabelece sua proposta de método filosófico com base na razão.
Francis Bacon
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BACON, Francis. Novum Organum. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986.
Obra central do empirismo moderno; propõe um novo método de investigação científica baseado na indução.
Galileu Galilei
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GALILEI, Galileo. O Ensaiador (Il Saggiatore). São Paulo: UNESP, 1995.
Aqui Galileu defende a matematização da natureza como linguagem própria da ciência.
Karl Popper
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POPPER, Karl. A Lógica da Pesquisa Científica. São Paulo: Cultrix, 1972.
Obra fundacional para o falsificacionismo e o critério de demarcação da ciência.
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POPPER, Karl. A Sociedade Aberta e seus Inimigos. São Paulo: Itatiaia/UnB, 1987.
Contextualiza a crítica popperiana aos regimes totalitários e a defesa da razão crítica.
Thomas Kuhn
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KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva, 2000.
Introduz o conceito de paradigma e a noção de que a ciência avança por rupturas, não por acumulação linear.
III. Obras Contextuais e Complementares
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ARANHA, Maria Lúcia de Arruda & MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna, 2003.
Didática e abrangente, apresenta os métodos filosóficos e científicos dentro da história das ideias.
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GILSON, Étienne. O Espírito da Filosofia Medieval. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
Essencial para compreender a tradição anterior à ruptura moderna, inclusive a metodologia escolástica.
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ROQUEPINE, Jean-Louis. Os Filósofos e a Guerra. São Paulo: É Realizações, 2010.
Um panorama da filosofia em tempos de crise, como as guerras religiosas e ideológicas, que afetam os métodos de pensamento.
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