A escrita da História exige, antes de tudo, um distanciamento temporal que permita ao estudioso observar os acontecimentos com a serenidade de quem estuda ruínas. Tal como o arqueólogo textual que interpreta fragmentos de um passado sepultado, o verdadeiro historiador lida com o que foi e permanece documentado, seja por memória oral ou escrita. Sua tarefa é nobre, mas delicada: distinguir o fato da narrativa, o testemunho fiel da manipulação ideológica.
Contudo, vivemos uma época singular. O presente, incandescente e em disputa, ainda não permite um olhar histórico tradicional. As chamas ainda ardem. Os eventos são atuais demais para serem chamados de passado, e sua interpretação está envolta em paixões, falsificações e narrativas concorrentes. Nesse cenário, o historiador do tempo presente é, na melhor das hipóteses, o jornalista — e isso, quando atua com honestidade, coragem e compromisso com os fatos.
A singularidade do momento brasileiro, por exemplo, marcado pela disputa simbólica entre figuras messiânicas como Lula e Bolsonaro, não encontra paralelo direto na política de outras nações. O que está em jogo não é apenas ideologia, mas o imaginário profundo de um povo. Não se trata apenas de eleições, mas de liturgia política, com seus próprios ritos, mitos e idolatrias. Tal fenômeno exige um registro cuidadoso, que só poderá ser entendido plenamente pelas gerações futuras.
E aqui reside o ponto central: a fonte mais confiável da história futura não será necessariamente o profissional da historiografia acadêmica, muitas vezes submetido a pressões ideológicas e critérios de financiamento. Será o cidadão honesto, com boa formação intelectual, que, tendo vivido os acontecimentos, soube documentá-los com fidelidade, discernimento e responsabilidade moral.
Blogs, diários pessoais, e-mails, redes sociais e correspondências diversas compõem hoje o grande arquivo descentralizado da memória coletiva. São registros muitas vezes marginalizados pelas instituições, mas que, ao serem escritos por pessoas lúcidas e comprometidas com a verdade, revelam-se como os mais ricos materiais para a reconstrução histórica posterior.
A esses testemunhos deve-se conferir fé pública — isto é, reconhecer seu valor como testemunhos dignos, passíveis de serem registrados oficialmente, em cartório ou outros meios que garantam sua autenticidade e integridade. Tal como os cronistas-mores do Reino de Portugal, que redigiam relatos oficiais para os arquivos da Coroa, cabe hoje aos homens de bem a tarefa de registrar, com precisão e responsabilidade, os fatos que testemunham.
Negar essa memória registrada equivale a atentar contra a fé pública. E quando esse atentado parte de agentes políticos ou ideológicos, torna-se um crime contra a própria consciência histórica de um povo. É dever, portanto, dos que amam a verdade, organizar esses testemunhos, preservá-los e entregá-los às futuras gerações como antídoto contra a mentira institucionalizada.
A História não pertence aos que venceram momentaneamente o jogo do poder, mas àqueles que, mesmo anônimos, resistiram ao esquecimento com honestidade e coragem. O tempo, esse juiz severo e paciente, saberá distinguir entre a propaganda e a verdade — desde que haja quem a registre.
Bibliografia e leituras fundamentais
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Paul Ricoeur – A Memória, a História, o Esquecimento
Obra essencial para compreender a relação entre testemunho, memória individual e construção da história. Ricoeur analisa a confiança no testemunho e os riscos da manipulação da memória coletiva. -
Eric Voegelin – A Nova Ciência da Política
Voegelin interpreta os sistemas políticos como manifestações simbólicas e espirituais. Sua crítica ao “gnosticismo político” ajuda a compreender a elevação de líderes políticos a arquétipos de salvação ou condenação. -
Giorgio Agamben – O Que Resta de Auschwitz: o Arquivo e o Testemunho
Neste texto, Agamben reflete sobre o que significa testemunhar. Sua leitura filosófica é crucial para compreender a responsabilidade moral de quem viveu um tempo traumático. -
Pierre Nora – Entre Memória e História: a problemática dos lugares
Texto clássico que introduz o conceito de lugares de memória, onde se fixam os traços do que foi vivido. Nora mostra que a história acadêmica não dá conta de tudo e que a memória viva precisa ser preservada. -
Jacques Le Goff – História e Memória
Le Goff trabalha a relação entre história erudita e a memória popular. Sua obra é indispensável para pensar a coexistência — e o conflito — entre diferentes formas de registrar o passado. -
José Mattoso – A Escrita da História
Historiador português que oferece uma bela reflexão sobre a missão do historiador, o papel da ética na documentação e o respeito às fontes orais e populares. -
Rodrigo Gurgel – Escritores, Leitores e Heróis
Embora não trate diretamente da historiografia, Gurgel defende a formação do espírito crítico através da leitura e do testemunho literário, sendo um exemplo contemporâneo de intelectual honesto e comprometido com a verdade. -
Olavo de Carvalho – O Jardim das Aflições
Ainda que polêmico, Olavo analisa a história brasileira como fruto de uma luta espiritual, e não apenas política ou econômica. Seu pensamento pode iluminar o contexto simbólico da atualidade nacional. -
Rui Ramos (org.) – História de Portugal
Para compreender o papel do cronista-mor e o valor histórico dos relatos registrados por autoridade régia, é útil o estudo da tradição portuguesa de crônica histórica oficial, que influenciou a formação documental do Brasil colonial. -
Gilberto Freyre – Casa-Grande & Senzala
Clássico da historiografia brasileira, Freyre oferece ferramentas para entender o imaginário nacional e a construção de lideranças populares à luz das estruturas simbólicas herdadas da colônia.
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