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domingo, 6 de abril de 2025

A Comunidade do Interesse e a Verdade Real: Filosofia do Direito na Era das Redes

Em tempos nos quais a vida social se reconfigura segundo algoritmos e imagens cuidadosamente curadas, é fácil esquecer que o verdadeiro conhecimento nasce do interesse comum — não de curtidas. Quando alguém se interessa por um assunto como a História, por exemplo, sua primeira reação não é a autopromoção, mas a busca por uma comunidade que compartilhe do mesmo desejo de aprender. Nos primórdios da internet, essa dinâmica era evidente: os grupos de discussão — fóruns, listas de e-mail, espaços de debate intelectual — eram verdadeiras comunidades de interesse, nascidas do desejo mútuo de trocar experiências e aperfeiçoar o saber.

Esse mesmo princípio — o de um bem que une pessoas por estar “entre” elas — é fundamental para compreendermos a estrutura do Direito, especialmente quando olhado a partir de sua dimensão filosófica e processual. O termo interesse, etimologicamente, vem do latim inter-esse, que significa “estar entre”. Trata-se, portanto, de algo que não pertence isoladamente a uma parte ou a outra, mas que diz respeito à relação — ao que está em jogo entre as partes.

No processo judicial, sobretudo nas causas que envolvem impactos coletivos ou difusos, a presença de terceiros interessados não é mero adorno técnico, mas necessidade substantiva. A intervenção de terceiros — seja como assistentes, litisconsortes, amici curiae ou outros — é expressão do reconhecimento de que o bem jurídico disputado não se restringe aos polos processuais imediatos. Ele é um bem posto em comum, cujos efeitos irradiam para uma comunidade maior, muitas vezes não representada formalmente, mas objetivamente conectada à causa.

Essa comunidade de pessoas que pode ter seus direitos prejudicados — mesmo não estando nominalmente no processo — é, por excelência, a comunidade do interesse. Não no sentido subjetivo, egoístico, mas no sentido objetivo, substantivo. Seus interesses estão ligados à questão central que se apresenta ao juiz como um bem litigioso, um bem-disponível que precisa ser analisado sob a luz da verdade, e não apenas sob os limites formais do contraditório.

Dizer o direito, nesse contexto, exige mais do que aplicar normas; exige reconhecer a verdade do bem que está sendo disputado. E verdade, nesse caso, não é apenas a correspondência entre fato e narrativa, mas também o desvelamento daquilo que, embora não dito, está disposto. É preciso, como diria Aristóteles, considerar as causas e os fins. Ou, como afirmaria Santo Tomás de Aquino, buscar a verdade real, aquela que antecede e fundamenta o juízo justo.

Quando um juiz decide um caso, ele está — ou deveria estar — distribuindo a coisa de acordo com sua verdadeira destinação na sociedade. E isso não se faz apenas com base em fatos alegados ou provas produzidas, mas também com base no reconhecimento de que há bens que pertencem à coletividade, e cuja má destinação fere o tecido mesmo da justiça. Em outras palavras: há verdades que não se veem, mas estão dispostas no processo. Ignorá-las é trair a própria natureza do Direito.

Portanto, refletir sobre a função do processo é mais do que lidar com prazos e procedimentos: é compreender que o litígio é sempre um espelho de algo maior, de uma disputa de sentido na vida social. O juiz, ao dizer o direito, não apenas resolve um conflito: ele define, para aquela comunidade do interesse, a medida da justiça possível — e a verdade visível do bem comum.

Bibliografia Comentada

Filosofia do Direito

  • Aristóteles. Ética a Nicômaco e Política.
    Fundamentais para compreender a ideia de justiça distributiva, causa final e o ser humano como ser político. O conceito de justiça como dar a cada um o que é seu nasce aqui.

  • Santo Tomás de Aquino. Suma Teológica, especialmente II-II, q. 58-61.
    Aquino aprofunda Aristóteles na ótica cristã, distinguindo a justiça legal, comutativa e distributiva. Define a veritas rei como aquilo que deve guiar o julgamento reto.

  • Giorgio Del Vecchio. Lições de Filosofia do Direito.
    Um clássico da tradição idealista italiana. Del Vecchio enfatiza a estrutura normativa do Direito e sua relação com a justiça como valor objetivo.

  • Norberto Bobbio. Teoria da Norma Jurídica e Teoria do Ordenamento Jurídico.
    Embora positivista, Bobbio ajuda a estruturar a ideia de norma e sistema, sendo útil para compreender os limites formais do processo e a necessidade de transcendê-los.

Direito Processual Civil

  • Giuseppe Chiovenda. Instituições de Direito Processual Civil.
    Pai da escola instrumentalista do processo, via o processo como instrumento de realização do Direito Material. Ressaltava a função pública da jurisdição.

  • Francesco Carnelutti. Sistema de Direito Processual Civil.
    Carnelutti aprofunda a ideia de que o processo é um “meio de composição de litígios com função de pacificação social”, e que o juiz deve buscar a verdade além da forma.

  • Piero Calamandrei. Processo e Democracia.
    Defende o processo como manifestação de civilidade e de construção da justiça na sociedade democrática. Aponta o risco de tecnocratização do Judiciário.

  • José Frederico Marques. Elementos de Direito Processual Civil.
    Importante jurista brasileiro, que também tratou da função pública da jurisdição e da busca da verdade real no processo civil.

  • Cândido Rangel Dinamarco. A Instrumentalidade do Processo.
    Consolidou no Brasil a ideia do processo como instrumento do Direito Material e do compromisso do juiz com a efetividade da justiça substancial.

Direito Coletivo e Interesse Difuso

  • Kazuo Watanabe. Ação Civil Pública e Interesses Difusos.
    Estuda com profundidade o papel do processo coletivo e a lógica do interesse transindividual, ampliando a noção de "comunidade do interesse".

  • Ada Pellegrini Grinover et al. Interesses Difusos e Coletivos: Tutela Judicial.
    Obra essencial para entender a legitimação coletiva, intervenção de terceiros, e o papel do Ministério Público na tutela do bem jurídico coletivo.

Para complementar a bibliografia mencionada no artigo com autores poloneses cujas obras corroboram os temas discutidos, segue uma seleção de referências relevantes:

Filosofia do Direito

  • Kazimierz Opałek. Selected Papers in Legal Philosophy.
    Esta coletânea aborda aspectos filosóficos do direito e da jurisprudência, explorando a estrutura normativa do direito e sua relação com a justiça como valor objetivo.SpringerLink

  • Czesław Znamierowski. Podstawowe pojęcia teorii prawa (Noções Básicas da Teoria do Direito).
    Znamierowski contribuiu significativamente para a ontologia social e jurisprudência, desenvolvendo conceitos sobre o sistema jurídico que antecedem ideias semelhantes às de H.L.A. Hart.Wikipedia+1Pressto+1

  • Zygmunt Ziembiński. Problemy podstawowe prawoznawstwa (Problemas Fundamentais da Jurisprudência).
    Ziembiński é conhecido por sua teoria dos fenômenos jurídicos, abordando aspectos lógico-linguísticos e reais do direito, e desenvolvendo uma concepção normativa das fontes do direito.

Teoria e Filosofia do Direito

  • Jan Woleński. Theory or philosophy of law?.
    Woleński discute a teoria do direito em termos de sua integração com a filosofia, explorando o desenvolvimento histórico das ciências jurídicas e destacando a inevitabilidade da filosofia na jurisprudência.

  • Artur Kozak. Juriscentrist Concept of Law.
    Kozak propôs o juriscentrismo, uma abordagem inovadora na teoria jurídica que enfatiza a prática social na formação do direito, divergindo das abordagens analíticas tradicionais.Brill

  • Zbigniew Pulka. The Presumption of Common Language as an Interpretive Paradigm and Its Opponents in Polish Legal Theory.
    Pulka analisa a presunção da linguagem comum como um paradigma interpretativo, destacando sua importância no discurso jurídico e debatendo visões que desafiam essa presunção. journals.kozminski.edu.pl

Essas obras de autores poloneses oferecem perspectivas valiosas que complementam e reforçam os temas abordados no artigo, especialmente no que tange à filosofia do direito, teoria jurídica e o papel da comunidade de interesse na interpretação e aplicação das normas jurídicas.

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