Em tempos nos quais a vida social se reconfigura segundo algoritmos e imagens cuidadosamente curadas, é fácil esquecer que o verdadeiro conhecimento nasce do interesse comum — não de curtidas. Quando alguém se interessa por um assunto como a História, por exemplo, sua primeira reação não é a autopromoção, mas a busca por uma comunidade que compartilhe do mesmo desejo de aprender. Nos primórdios da internet, essa dinâmica era evidente: os grupos de discussão — fóruns, listas de e-mail, espaços de debate intelectual — eram verdadeiras comunidades de interesse, nascidas do desejo mútuo de trocar experiências e aperfeiçoar o saber.
Esse mesmo princípio — o de um bem que une pessoas por estar “entre” elas — é fundamental para compreendermos a estrutura do Direito, especialmente quando olhado a partir de sua dimensão filosófica e processual. O termo interesse, etimologicamente, vem do latim inter-esse, que significa “estar entre”. Trata-se, portanto, de algo que não pertence isoladamente a uma parte ou a outra, mas que diz respeito à relação — ao que está em jogo entre as partes.
No processo judicial, sobretudo nas causas que envolvem impactos coletivos ou difusos, a presença de terceiros interessados não é mero adorno técnico, mas necessidade substantiva. A intervenção de terceiros — seja como assistentes, litisconsortes, amici curiae ou outros — é expressão do reconhecimento de que o bem jurídico disputado não se restringe aos polos processuais imediatos. Ele é um bem posto em comum, cujos efeitos irradiam para uma comunidade maior, muitas vezes não representada formalmente, mas objetivamente conectada à causa.
Essa comunidade de pessoas que pode ter seus direitos prejudicados — mesmo não estando nominalmente no processo — é, por excelência, a comunidade do interesse. Não no sentido subjetivo, egoístico, mas no sentido objetivo, substantivo. Seus interesses estão ligados à questão central que se apresenta ao juiz como um bem litigioso, um bem-disponível que precisa ser analisado sob a luz da verdade, e não apenas sob os limites formais do contraditório.
Dizer o direito, nesse contexto, exige mais do que aplicar normas; exige reconhecer a verdade do bem que está sendo disputado. E verdade, nesse caso, não é apenas a correspondência entre fato e narrativa, mas também o desvelamento daquilo que, embora não dito, está disposto. É preciso, como diria Aristóteles, considerar as causas e os fins. Ou, como afirmaria Santo Tomás de Aquino, buscar a verdade real, aquela que antecede e fundamenta o juízo justo.
Quando um juiz decide um caso, ele está — ou deveria estar — distribuindo a coisa de acordo com sua verdadeira destinação na sociedade. E isso não se faz apenas com base em fatos alegados ou provas produzidas, mas também com base no reconhecimento de que há bens que pertencem à coletividade, e cuja má destinação fere o tecido mesmo da justiça. Em outras palavras: há verdades que não se veem, mas estão dispostas no processo. Ignorá-las é trair a própria natureza do Direito.
Portanto, refletir sobre a função do processo é mais do que lidar com prazos e procedimentos: é compreender que o litígio é sempre um espelho de algo maior, de uma disputa de sentido na vida social. O juiz, ao dizer o direito, não apenas resolve um conflito: ele define, para aquela comunidade do interesse, a medida da justiça possível — e a verdade visível do bem comum.
Bibliografia Comentada
Filosofia do Direito
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Aristóteles. Ética a Nicômaco e Política.
Fundamentais para compreender a ideia de justiça distributiva, causa final e o ser humano como ser político. O conceito de justiça como dar a cada um o que é seu nasce aqui. -
Santo Tomás de Aquino. Suma Teológica, especialmente II-II, q. 58-61.
Aquino aprofunda Aristóteles na ótica cristã, distinguindo a justiça legal, comutativa e distributiva. Define a veritas rei como aquilo que deve guiar o julgamento reto. -
Giorgio Del Vecchio. Lições de Filosofia do Direito.
Um clássico da tradição idealista italiana. Del Vecchio enfatiza a estrutura normativa do Direito e sua relação com a justiça como valor objetivo. -
Norberto Bobbio. Teoria da Norma Jurídica e Teoria do Ordenamento Jurídico.
Embora positivista, Bobbio ajuda a estruturar a ideia de norma e sistema, sendo útil para compreender os limites formais do processo e a necessidade de transcendê-los.
Direito Processual Civil
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Giuseppe Chiovenda. Instituições de Direito Processual Civil.
Pai da escola instrumentalista do processo, via o processo como instrumento de realização do Direito Material. Ressaltava a função pública da jurisdição. -
Francesco Carnelutti. Sistema de Direito Processual Civil.
Carnelutti aprofunda a ideia de que o processo é um “meio de composição de litígios com função de pacificação social”, e que o juiz deve buscar a verdade além da forma. -
Piero Calamandrei. Processo e Democracia.
Defende o processo como manifestação de civilidade e de construção da justiça na sociedade democrática. Aponta o risco de tecnocratização do Judiciário. -
José Frederico Marques. Elementos de Direito Processual Civil.
Importante jurista brasileiro, que também tratou da função pública da jurisdição e da busca da verdade real no processo civil. -
Cândido Rangel Dinamarco. A Instrumentalidade do Processo.
Consolidou no Brasil a ideia do processo como instrumento do Direito Material e do compromisso do juiz com a efetividade da justiça substancial.
Direito Coletivo e Interesse Difuso
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Kazuo Watanabe. Ação Civil Pública e Interesses Difusos.
Estuda com profundidade o papel do processo coletivo e a lógica do interesse transindividual, ampliando a noção de "comunidade do interesse". -
Ada Pellegrini Grinover et al. Interesses Difusos e Coletivos: Tutela Judicial.
Obra essencial para entender a legitimação coletiva, intervenção de terceiros, e o papel do Ministério Público na tutela do bem jurídico coletivo.
Para complementar a bibliografia mencionada no artigo com autores poloneses cujas obras corroboram os temas discutidos, segue uma seleção de referências relevantes:
Filosofia do Direito
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Kazimierz Opałek. Selected Papers in Legal Philosophy.
Esta coletânea aborda aspectos filosóficos do direito e da jurisprudência, explorando a estrutura normativa do direito e sua relação com a justiça como valor objetivo. SpringerLink -
Czesław Znamierowski. Podstawowe pojęcia teorii prawa (Noções Básicas da Teoria do Direito).
Znamierowski contribuiu significativamente para a ontologia social e jurisprudência, desenvolvendo conceitos sobre o sistema jurídico que antecedem ideias semelhantes às de H.L.A. Hart. Wikipedia+1Pressto+1 -
Zygmunt Ziembiński. Problemy podstawowe prawoznawstwa (Problemas Fundamentais da Jurisprudência).
Ziembiński é conhecido por sua teoria dos fenômenos jurídicos, abordando aspectos lógico-linguísticos e reais do direito, e desenvolvendo uma concepção normativa das fontes do direito.
Teoria e Filosofia do Direito
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Jan Woleński. Theory or philosophy of law?.
Woleński discute a teoria do direito em termos de sua integração com a filosofia, explorando o desenvolvimento histórico das ciências jurídicas e destacando a inevitabilidade da filosofia na jurisprudência. -
Artur Kozak. Juriscentrist Concept of Law.
Kozak propôs o juriscentrismo, uma abordagem inovadora na teoria jurídica que enfatiza a prática social na formação do direito, divergindo das abordagens analíticas tradicionais. Brill -
Zbigniew Pulka. The Presumption of Common Language as an Interpretive Paradigm and Its Opponents in Polish Legal Theory.
Pulka analisa a presunção da linguagem comum como um paradigma interpretativo, destacando sua importância no discurso jurídico e debatendo visões que desafiam essa presunção. journals.kozminski.edu.pl
Essas obras de autores poloneses oferecem perspectivas valiosas que complementam e reforçam os temas abordados no artigo, especialmente no que tange à filosofia do direito, teoria jurídica e o papel da comunidade de interesse na interpretação e aplicação das normas jurídicas.
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