1. Introdução
Nos tempos medievais, a estrutura social era fundada em ordens que organizavam o ofício e a vida moral dos homens segundo uma visão hierárquica do mundo. No jogo The Guild 2, inspirado nesse espírito, o jogador era conduzido por uma lógica de carreiras familiares, herdadas por nascimento: agricultores, artesãos, clérigos e militares. Esse esquema, embora lúdico, remonta a uma ordem que buscava conferir estabilidade e sentido ao trabalho humano, integrando-o ao bem comum.
Hoje, no entanto, vivemos sob o signo da liberdade individual. A carreira já não é imposta pela herança familiar, mas determinada por um ato de vontade: o ingresso voluntário em uma guilda. Este artigo propõe uma visão ordenada e cristã da sociedade contemporânea, em que as guildas resgatam a dignidade do trabalho, a complementaridade das famílias e a vocação espiritual dos que, nos méritos de Cristo, inventam novos caminhos.
2. A Livre Escolha da Vocação e a Dignidade do Trabalho
Na modernidade, a livre escolha da vocação profissional tornou-se expressão da dignidade da pessoa humana. A Doutrina Social da Igreja reconhece essa liberdade como sinal do desenvolvimento da consciência moral:
“O trabalho é um bem do homem — um bem da sua humanidade — porque mediante o trabalho o homem não só transforma a natureza, adaptando-a às suas próprias necessidades, mas também realiza algo mais: realiza a si mesmo.”
— João Paulo II, Laborem Exercens, n. 9.
No lugar da hereditariedade profissional, propõe-se uma nova forma de associação voluntária: as guildas modernas. Cada pessoa, ao atingir a maturidade, escolhe livremente a qual delas deseja pertencer. Essas guildas, embora inspiradas nas corporações medievais, são atualizadas para responder às exigências contemporâneas. Dividem-se em quatro grandes categorias:
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A Guilda Agrícola, zeladora da produção e da preservação dos recursos naturais e alimentares;
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A Guilda de Negócios, onde atuam os empreendedores, comerciantes, administradores e inovadores da economia real;
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A Guilda de Serviços Públicos, que reúne educadores, médicos, juristas, engenheiros e outros servidores do bem comum;
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A Guilda de Defesa Nacional, composta por militares, policiais, bombeiros, agentes de segurança e defesa civil, todos consagrados à proteção da vida e da ordem pública.
A liberdade de escolha da carreira deve ser acompanhada pela responsabilidade moral de servir à sociedade. O trabalho, longe de ser apenas meio de subsistência, é expressão de uma vocação ao serviço, como ensina São João Paulo II:
“O trabalho deve ser orientado para a constituição de uma comunidade solidária e fraterna.”
— Centesimus Annus, n. 43.
3. A Família como Pilar e a Complementaridade das Guildas
Embora a carreira seja uma escolha individual, ela se entrelaça profundamente com a vocação familiar. O matrimônio é a aliança que permite a fusão de duas linhagens, e, ao mesmo tempo, a transmissão dos bens espirituais e culturais à prole.
Para tanto, é indispensável que o casamento preserve sua identidade natural: a união entre um homem e uma mulher, aberta à geração da vida. Nesse ponto, a visão cristã é clara:
“A família é fundada sobre o matrimônio, isto é, sobre a íntima comunhão de vida e de amor conjugal, estabelecida pelo Criador e estruturada com leis próprias.”
— Familiaris Consortio, n. 11.
E o Catecismo reafirma:
“A fecundidade do amor conjugal se estende aos frutos da vida moral, espiritual e sobrenatural que os pais transmitem a seus filhos com sua educação.”
— Catecismo da Igreja Católica, n. 2221.
A negação da complementaridade sexual e da abertura à vida constitui, portanto, uma distorção do próprio conceito de família. Toda união civil que recuse esse princípio, por não estar ordenada à reprodução e à educação dos filhos, é ontologicamente incapaz de sustentar a sociedade e, por isso, carece de legitimidade jurídica e moral.
4. A Guilda dos Gênios: A Nova Ordem dos Filhos
A fecundidade natural do matrimônio gera uma fecundidade espiritual: o filho, herdeiro de dois caminhos distintos, pode inventar o seu próprio. Assim, surge uma quinta guilda, mais alta, mais rara, e mais exigente: a Guilda dos Gênios.
Essa guilda é composta por aqueles que, tendo recebido uma rica herança de experiências, valores e saberes, conseguem transfigurá-los num caminho novo, único e fecundo. São os que respondem a uma vocação mais alta: unir tradição e inovação, memória e criação, herança e transcendência. Como ensina Romano Guardini:
“A tradição não é conservar as cinzas, mas manter viva a chama.”
— A Essência do Cristianismo.
A Guilda dos Gênios é a expressão mais pura da liberdade cristã: não uma liberdade arbitrária, mas iluminada pela verdade e dirigida ao bem. É o lugar dos santos, dos profetas, dos inventores, dos artistas e dos grandes pensadores — os que realizam a obra nova a partir da fidelidade às raízes.
“Deus chama o homem a trabalhar com Ele. [...] A criatividade é uma participação na obra divina.”
— Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 263.
5. Conclusão
A proposta de uma nova ordem baseada em guildas voluntárias, no matrimônio natural e na vocação inventiva dos filhos não é uma utopia, mas um ideal possível e profundamente enraizado na tradição cristã. Essa visão concilia liberdade e ordem, vocação pessoal e bem comum, herança ancestral e missão futura.
Num tempo de dissolução das instituições, de crise do trabalho e de relativização da família, a restauração dessa ordem pode ser a chave para reconstruir uma sociedade justa, fecunda e orientada à verdade. Como escreveu Leão XIII:
“A sociedade humana, como a Igreja, deriva sua origem de Deus; e é, por conseguinte, sujeita às leis divinas.”
— Rerum Novarum, n. 12.
Aqueles que compreendem essa estrutura e nela se inserem são os verdadeiros artífices da restauração. Cabe-lhes, nos méritos de Cristo, a missão de redimir o tempo presente — e de semear um futuro digno do homem redimido.
Bibliografia
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João Paulo II, Laborem Exercens (1981).
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João Paulo II, Familiaris Consortio (1981).
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João Paulo II, Centesimus Annus (1991).
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Catecismo da Igreja Católica, Vaticano, 1992.
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Compêndio da Doutrina Social da Igreja, Pontifício Conselho Justiça e Paz, Vaticano, 2004.
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Leão XIII, Rerum Novarum (1891).
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Romano Guardini, A Essência do Cristianismo, Ed. Loyola.
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Joseph Ratzinger (Bento XVI), Introdução ao Cristianismo, Ed. Loyola.
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Josiah Royce, The Philosophy of Loyalty, Macmillan, 1908.
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Frederick Jackson Turner, The Frontier in American History, Henry Holt and Company, 1920.
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