A figura do soldado-cidadão, conforme proposta contemporaneamente, resgata a tradição de lealdade e serviço que sustentou o Império Português nos trópicos e no Atlântico. Ao associar o espírito empreendedor, o conhecimento jurídico e a mobilidade imigratória à resistência contra estruturas tirânicas do Estado moderno, essa figura recupera a dignidade do sujeito que é ao mesmo tempo combatente, trabalhador e servidor da verdade.
Essa realidade histórica está bem representada na obra "Um reino e suas repúblicas no Atlântico", organizada por João Fragoso e Nuno Gonçalo Monteiro. O livro mostra como o império luso funcionava como uma constelação de pequenas repúblicas locais, onde agentes da Coroa - senhores de terra, padres, militares, comerciantes - exerciam poder e autoridade com relativa autonomia. A fidelidade à Coroa era negociada e adaptada às circunstâncias locais, formando uma malha de lealdades que sustentava o reino nas zonas mais remotas do Atlântico Sul.
Esses agentes, embora formalmente subordinados ao rei, eram de fato soldados-cidadãos do Antigo Regime. Exerciam funções de defesa, organização social, mediação diplomática e gestão econômica, sobretudo nas fronteiras. A realidade das margens do império exigia deles uma combinação de virtudes: coragem, astúcia, espírito de sacrifício e lealdade incondicional à missão que recebiam - ainda que esta não fosse clara ou bem definida pela metrópole.
Essa configuração do Atlântico como espaço de pactos, de improviso institucional e de organização social descentralizada se conecta diretamente à ideia americana do mito da fronteira. Assim como nos Estados Unidos a fronteira é vista como o lugar da coragem civilizatória, do pioneirismo e da construção da liberdade pela ação, também no império atlântico luso o sertão, a colônia ou a possessão africana eram espaços onde a ordem nascia da fidelidade concreta dos homens que se sacrificavam por um ideal de realeza e de civilização.
Mas há um elemento adicional no caso luso: a consciência católica. Diferentemente do mito americano, que se ancora num protestantismo individualista e progressista, a expansão portuguesa era vivida como missão espiritual. Era o Reino de Cristo que se expandia, não apenas a Coroa portuguesa. A fronteira era, portanto, um campo de batalha entre o caos e a ordem, entre a barbárie e a civilização cristã.
Esse princípio se liga à "Filosofia da Lealdade" de Josiah Royce, onde o sentido da vida está em servir a uma causa maior do que o eu. No caso do soldado-cidadão atlântico, essa causa era a santificação do mundo através da presença da verdade cristã nas instituições e nos corações.
Hoje, ao migrar, estudar as leis de elisão fiscal e imigratória, dominar idiomas e construir autonomia longe do Estado tirânico, o soldado-cidadão contemporâneo reencena essa mesma dinâmica: é um agente livre, que vive nas fronteiras do sistema, mas se organiza internamente segundo uma lei superior, vinda de Cristo.
Esse homem não busca a revolução, mas a restauração da ordem. Não deseja destruir o Estado, mas livrar-se da tirania, dando a cada um o que é seu. Não rejeita a autoridade, mas a submete aos méritos da Verdade.
Portanto, ao reler a história do Atlântico sob essa perspectiva, vemos que o soldado-cidadão não é uma novidade, mas uma reedição fiel do que um dia sustentou a expansão do Reino de Cristo em terras distantes. E é nessa fidelidade que reside a esperança de um novo ciclo de civilização cristã, onde quer que Cristo reine soberano nos corações dos homens livres.
Bibliografia Comentada
História do Império Português e das Repúblicas no Atlântico
FRAGOSO, João; MONTEIRO, Nuno Gonçalo (orgs.). Um reino e suas repúblicas no Atlântico: Comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVII e XVIII. São Paulo: Alameda, 2021.
Obra fundamental para entender a lógica da administração imperial portuguesa como uma rede de repúblicas e pactos locais.
BETHENCOURT, Francisco. O império colonial português. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
Panorama geral do projeto imperial português, essencial para o entendimento do contexto luso-atlântico.
Fronteira, Migração e o Espírito do Pioneirismo
TURNER, Frederick Jackson. The Frontier in American History. New York: Henry Holt and Company, 1920.
Clássico da historiografia americana onde é formulada a tese do "mito da fronteira".
LEWIS, Oscar. La vida: A Puerto Rican Family in the Culture of Poverty—San Juan and New York. New York: Random House, 1966.
Paralelos sociológicos sobre comportamento e adaptação nas fronteiras sociais.
Filosofia, Lealdade e o Espírito Cristão da Ação
ROYCE, Josiah. The Philosophy of Loyalty. New York: Macmillan, 1908.
Fundamenta a ideia de lealdade como causa maior que sustenta a vida ética.
CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições. Rio de Janeiro: Record, 1995.
Reflete sobre a continuidade do Império Romano e a formação do Ocidente cristão.
Doutrina Católica e Formação do Caráter Cristão
LEÃO XIII. Rerum Novarum (Encíclica). 1891.
Documento fundamental da doutrina social da Igreja sobre o trabalho e a justiça social.
BENTO XVI. Caritas in Veritate. Vaticano, 2009.
Integra caridade e verdade no desenvolvimento integral do ser humano.
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