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sábado, 5 de abril de 2025

A Catolicidade na Nacionidade: armário de roupas da alma

Dizia Mário Quintana que “viajar é trocar a roupa da alma”. Esse gesto poético, quando interpretado à luz da vida em Cristo, adquire uma profundidade sacramental. Pois se o poeta fala da alma que se renova ao conhecer novas terras, nós falamos da alma que se reveste de Cristo para tomar novos povos como seus, em unidade de fé, esperança e caridade. Viajar, assim, deixa de ser um deslocamento e se torna um rito — um exercício espiritual de enraizamento escatológico: tomar uma terra estrangeira como um lar em Cristo, por Cristo e para Cristo.

Santo Agostinho, na Cidade de Deus, já intuía que o cidadão dos Céus peregrina entre as cidades dos homens, sem jamais perder de vista sua pátria definitiva. A verdadeira pátria, diz ele, é onde reina a paz eterna — e tudo o que nesta vida se faz em direção a ela é já participação no Reino. Logo, tomar um país estrangeiro como lar não é trair a pátria de origem, mas ampliar o raio da obediência ao Rei dos reis.

Quando se tomam dois países como um mesmo lar em Cristo, o que se adquire não é apenas um novo idioma ou um novo costume: adquire-se uma nova veste. A alma, que antes se vestia apenas com a cultura herdada por nascimento, passa a se vestir também com a cultura acolhida por conversão. E, como ensina São Paulo, “revesti-vos do Senhor Jesus Cristo” (Rm 13,14). Esta veste nova não apaga a anterior, mas a purifica e a ordena ao serviço de Deus. Passamos a ter duas roupas da alma: uma velha, como herança da carne, e uma nova, como dom da graça.

Mas o verdadeiro ponto de inflexão se dá quando essa prática já não é apenas individual, mas familiar e hereditária. Quando ao longo das gerações se transmite a cultura de tomar dois ou mais países como um mesmo lar em Cristo, por Cristo e para Cristo, então já se formou uma tradição. E a tradição, como explica Chesterton, “é a democracia dos mortos”: ela dá voz àqueles que nos antecederam na fé e na sabedoria. Ela institui o direito sucessório da graça.

Nesse ponto, a metáfora se amplia: já não se trata de uma simples troca de roupa, mas de um armário de roupas da alma, construído ao longo de gerações. Cada país que se toma por lar em Cristo acrescenta uma veste espiritual à herança da família. E nesse armário se encontram não apenas línguas e costumes, mas formas de serviço, estilos de santidade, modos de oração e até espiritualidades específicas que cada nação cultivou em sua resposta ao chamado de Deus.

Essa visão transcende o multiculturalismo moderno — que tende à fragmentação, ao relativismo e à substituição da fé pela ideologia. Aqui não há perda de identidade, mas catolicidade: unidade na diversidade, porque o fundamento é o verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. São Tomás de Aquino nos lembra que a unidade só é verdadeira quando se funda no bem comum ordenado ao fim último. E se o fim é Cristo, todas as diferenças se harmonizam.

A catolicidade na nacionidade não dissolve os povos num império universal abstrato; antes, os eleva à sua vocação espiritual mais alta. Por isso, quem vive assim não ama menos a sua pátria de origem — ama mais, porque aprendeu a amar melhor. O brasileiro que ama a Polônia em Cristo compreende o Brasil mais profundamente; o português que ama a Espanha em Cristo entende melhor a própria alma lusitana. A caridade ilumina a história.

Assim como a Igreja é una, santa, católica e apostólica, o homem que vive a nacionidade em Cristo é uma pequena imagem da própria Igreja: peregrino e cidadão; enraizado e livre; fiel à memória e aberto ao futuro. Onde quer que vá, leva seu armário de roupas da alma — e sabe usá-las conforme a ocasião, como um servo prudente no banquete do Senhor.

Essa visão é também uma resposta ao drama moderno da identidade. Num mundo onde tudo é fluido, onde as nações são atacadas por forças globalistas e os indivíduos não sabem mais a quem pertencem, a nacionidade católica resgata o sentido da filiação, da missão e da pertença. Não somos órfãos. Temos um Pai eterno e uma pátria no Céu — mas essa pátria já se insinua aqui, nas terras onde Cristo é servido com fidelidade e amor.

Como escreveu Olavo de Carvalho em O Jardim das Aflições, “a fidelidade a um lugar se justifica apenas pela fidelidade ao que, naquele lugar, revela a eternidade.” Tomar uma terra como lar em Cristo é justamente isso: reconhecer nela um ponto de contato com a eternidade.

E quando todas as roupas da alma estiverem gastas de tanto servir, quando todas as terras já tiverem sido habitadas com fidelidade, então virá o dia em que o próprio Cristo nos vestirá com a túnica incorruptível, e diremos: “Senhor, Tu és o nosso lar.”

Bibliografia essencial para o entendimento da questão

  1. Santo Agostinho – A Cidade de Deus

    • Fundamenta a distinção entre a Cidade dos Homens e a Cidade de Deus, base para a compreensão da verdadeira pátria espiritual.

  2. São Tomás de Aquino – Suma Teológica, I-II e II-II

    • Principalmente as questões sobre o bem comum, a virtude da religião, a lei natural e a caridade.

  3. Chesterton, G. K. – Ortodoxia e Hereges

    • Especialmente a visão sobre tradição, nacionidade e a continuidade da fé nos povos.

  4. Josiah Royce – A Filosofia da Lealdade

    • Para o entendimento da fidelidade como fundamento da ação em comunidades éticas e espirituais.

  5. Frederick Jackson Turner – The Frontier in American History

    • Para a compreensão da expansão territorial como fator de identidade nacional e a interpretação da fronteira como cultura.

  6. Olavo de Carvalho – O Jardim das Aflições

    • Especialmente os trechos sobre a função espiritual da tradição, da pátria e da eternidade como medida do tempo.

  7. Joseph Ratzinger (Papa Bento XVI) – Introdução ao Cristianismo

    • Para entender a natureza da Igreja como una, santa, católica e apostólica, fundamento teológico da catolicidade que se reflete nas nações.

  8. Catecismo da Igreja Católica

    • Artigos sobre a missão da Igreja, a doutrina social e a relação entre fé, cultura e nação.

 

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