Resumo:
1. Introdução
A linguagem econômica é um campo fértil para observar não apenas fenômenos financeiros, mas também as transformações culturais e morais que afetam uma sociedade. Palavras como “investimento” e “inversão de capital”, aparentemente sinônimas, revelam visões opostas sobre o uso e o destino do capital. Este artigo propõe uma investigação mais profunda dessas expressões, articulando a análise linguística com os fundamentos da filosofia aristotélico-tomista e da teologia cristã.
2. Terminologia: Investimento vs. Inversão
Em português, o termo investimento remete etimologicamente ao ato de “vestir” (investire, em latim): colocar algo sobre outra coisa, como um soldado que se reveste de sua armadura, ou um fiel que se reveste de um ideal. Investir é, portanto, um ato que pressupõe pertencimento, direção e finalidade. Em seu uso econômico, significa aplicar recursos com vistas à frutificação e à construção de algo.
No espanhol, a expressão comum é inversión de capital, oriunda de inversio, que significa virar do avesso, reverter. Embora no jargão econômico hispânico o termo tenha sido naturalizado como sinônimo de investimento, sua conotação literal sugere deslocamento, inversão da ordem ou do fim natural de algo — o que pode revelar, ainda que involuntariamente, uma crítica implícita ao movimento do capital quando este se descola de sua vocação produtiva e comunitária.
3. A Inversão como Crematística
Aristóteles, na Política (Livro I), distingue entre a economia (a arte de administrar o lar) e a crematística, a arte de acumular riquezas por si mesmas. A economia é natural, pois visa à autossuficiência da família e da pólis. Já a crematística, quando ultrapassa esse limite, torna-se antinatural, porque transforma os meios (o dinheiro) em fins. O capital que deveria servir à vida passa a instrumentalizá-la.
Quando falamos em “inversão de capital” para designar a aplicação de recursos no mercado financeiro, desconectada da produção real, estamos justamente diante de um fenômeno crematístico. O capital é invertido — não apenas em direção, mas em valor — passando da ordem do trabalho e do bem comum para a lógica do lucro abstrato e ilimitado.
Tomás de Aquino, ao herdar essa distinção aristotélica, reafirma que a justiça na troca e no uso do dinheiro deve estar subordinada à ordem natural das coisas, e, portanto, à lei divina. A usura e a especulação, quando absolutizadas, são formas de desordem moral e espiritual. A economia verdadeira está subordinada à amizade civil, à justiça distributiva e à caridade.
4. Investir como Ato de Amizade e Ordem Política
Investir, no seu sentido mais profundo, é vestir a camisa de um projeto comum. É aplicar recursos — não apenas financeiros, mas também afetivos, espirituais e intelectuais — num bem partilhado. E isso remete à noção aristotélica de amizade (philia) como o fundamento da vida política.
Na Ética a Nicômaco, Aristóteles afirma que não há comunidade possível sem amizade, e que o verdadeiro amigo é aquele que ama e rejeita as mesmas coisas que você. Investir, nesse contexto, não é apenas aplicar capital, mas assumir uma posição comum, agir com lealdade, partilhar um fim com os outros.
É por isso que o investimento produtivo e comunitário possui uma dignidade ética: ele reforça os vínculos sociais, sustenta famílias, gera trabalho e enriquece a cidade. O capital, neste caso, serve ao homem. Já na crematística, o homem serve ao capital.
5. Dimensão Teológica: Juízo e Vocação do Capital
À luz da teologia cristã, todo dom recebido deve ser multiplicado e devolvido a Deus, como na parábola dos talentos. O capital, como fruto do trabalho e da inteligência humana, é também um dom de Deus, e será julgado conforme a sua finalidade.
O capital que se investe com amor, justiça e prudência, no serviço ao próximo e ao bem comum, é santificado pelo trabalho. Já o capital que se inverte em jogos especulativos, luxúria financeira ou acúmulo vazio será, no fim, motivo de condenação.
Assim, a linguagem — investir ou inverter — não é neutra. Ela carrega uma cosmovisão, uma teologia e uma moral. Precisamos recuperá-la como parte da reforma da cultura econômica contemporânea.
6. Considerações Finais
A diferença entre “investimento” e “inversión de capital” é mais do que semântica. É uma janela para ver a batalha silenciosa entre duas economias: uma ordenada à vida, à amizade e à virtude; outra ordenada ao acúmulo, à especulação e à dissolução dos laços humanos.
Retomar o verdadeiro sentido do investimento — como revestimento de um fim comum e expressão de amizade política — é um dos passos para restaurar a dignidade do capital e redimir a economia da servidão à crematística. Afinal, como lembrava Santo Tomás, “o fim da lei é a amizade” — e, portanto, também o fim da economia.
7. Inter-esse, Juramento e Justiça nos Méritos de Cristo
Em espanhol, o termo “juros” se traduz por interés, isto é, inter-esse, aquilo que “está entre” duas pessoas: um vínculo. Por essa raiz, podemos dizer que todo juro legítimo deveria expressar um compromisso mútuo, uma presença real de ambas as partes em torno de um bem comum reconhecido. Ou seja, o juro justo nasce de uma relação de confiança e de ordem.
Mas o que sustenta esse vínculo? Não é apenas o contrato frio e formal, mas o juramento moral que cada parte faz — explícita ou implicitamente — de servir à verdade na troca. É por isso que se pode dizer que os juros verdadeiros só existem onde há juramento, onde o ato econômico se enraíza em uma promessa de justiça, isto é, no reconhecimento do outro como filho de Deus, como co-herdeiro dos méritos de Cristo.
A partir disso, compreendemos melhor a gravidade da “inversão de capital” em sua forma crematística: ela rompe esse vínculo, pois o que move a transação já não é a verdade, nem o serviço, nem a esperança de comunhão, mas apenas o ganho privado, dissociado da ordem do bem. O “interesse” já não é mais um inter-esse, mas uma apropriação unilateral: o outro é descartável, porque não há juramento, nem justiça, nem fundamento comum.
É aqui que a teologia ilumina a economia com especial clareza: nos méritos de Cristo, a verdade das ações humanas será revelada. E se o capital foi invertido contra o fim próprio do homem — que é a comunhão com Deus e com os irmãos — então a própria justiça clamará do sangue das vítimas da especulação e da injustiça estrutural.
Só há juros justos se há justiça na origem do juro. E isso exige que o capital seja investido com amor, com verdade e com fidelidade aos que “vestem a mesma camisa” — isto é, aos que compartilham da mesma cidade espiritual fundada em Cristo. Fora disso, o que se acumula é apenas condenação.
Bibliografia Essencial
1. Filosofia e Economia Clássica
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Aristóteles. Política. Tradução e notas de Mário da Gama Kury. São Paulo: Ed. UNESP, 2011.
Especialmente o Livro I, onde Aristóteles distingue economia natural e crematística.
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Aristóteles. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Abril Cultural, 1985.
Destaca-se o Livro VIII, sobre a amizade (philia) como base da vida social e política.
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Tomás de Aquino, Santo. Suma Teológica. Trad. e notas de vários colaboradores. São Paulo: Loyola.
Parte especialmente relevante: IIa-IIae, questão 77 (sobre justiça nas trocas) e questão 78 (sobre a usura).
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Schumacher, E. F. O Negócio é Ser Pequeno (Small is Beautiful). Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
Um clássico moderno da crítica à economia crematística e tecnocrática, em favor da economia humana.
2. Linguística e Comparação Terminológica
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Corominas, Joan. Diccionario crítico etimológico castellano e hispánico. Madrid: Gredos, 1991.
Para compreensão profunda das origens e sentidos de inversión em espanhol.
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Cunha, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Lexikon, 2010.
Análise de termos como “investimento” e sua raiz latina.
3. Teologia, Cultura e Capital
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Pieper, Josef. A Justiça. São Paulo: Loyola, 1994.
Uma abordagem filosófico-teológica da virtude da justiça nas relações humanas, incluindo as econômicas.
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Leão XIII. Rerum Novarum. Encíclica sobre a condição dos operários. Vaticano, 1891.
Fundamento da doutrina social da Igreja, abordando capital, trabalho e justiça.
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Rodrigo Gurgel. A estratégia de Lilith. São Paulo: É Realizações, 2013.
Obra útil para refletir sobre o papel das narrativas e da linguagem na manipulação de conceitos modernos.
4. Obras Complementares e Comentários Modernos
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Maritain, Jacques. Cristianismo e Democracia / Os Direitos do Homem e a Lei Natural. São Paulo: É Realizações, 2013.
Trata da vocação cristã do capital e do trabalho à luz da dignidade humana.
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Sidney Silveira. O Olho de Hermes. Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2015.
Ensaios sobre linguagem, filosofia e teologia em perspectiva tomista, com aplicações ao pensamento social.
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Sombart, Werner. O Burguês: contribuição à história espiritual do homem econômico. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
Analisa o espírito do capitalismo e a transição do investimento produtivo à lógica da acumulação.
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