Em 3 de janeiro de 2017, faleceu Augusto Mascarenhas Barreto, poeta, historiador e polemista luso que ousou contrariar séculos de narrativa histórica com seu livro O Português Cristóvão Colombo – Provas Documentais. Nele, sustenta que o navegador que desbravou as Américas sob bandeira espanhola era, na verdade, português — oriundo da região do Alentejo e profundamente ligado aos interesses estratégicos da monarquia lusa.
Com a morte de seu autor, iniciou-se o que o direito chama de prazo de proteção patrimonial da obra intelectual: setenta anos contados a partir de 1º de janeiro do ano subsequente ao falecimento, conforme reza o Art. 41 da Lei 9.610/98. Isso significa que em 1º de janeiro de 2088, a obra de Mascarenhas Barreto estará livre das restrições patrimoniais e poderá ser livremente reproduzida, editada, traduzida e comentada — uma liberdade que, ironicamente, ele próprio talvez não tenha gozado em vida, dada a ousadia de suas teses.
Esse ciclo revela uma dimensão impressionante do tempo cultural: enquanto o corpo do autor retorna à terra e sua memória talvez se apague das manchetes, a obra segue viva, respirando nas prateleiras, bibliotecas e discussões futuras. Há uma promessa silenciosa feita pela cultura a seus criadores: “Ainda te lerão”.
Mas nesse mesmo ano de 2088, outro marco será alcançado: o centenário da Constituição Federal de 1988. No entanto, ao contrário do prazo certo e linear dos direitos autorais, a trajetória da Carta Magna brasileira é marcada por instabilidade, reformas incessantes e contestações contínuas. Até o momento, já são mais de 130 emendas constitucionais, que vão de alterações estruturais a mudanças de pequeno alcance, frequentemente motivadas por interesses conjunturais ou pressões corporativas.
“A Constituição brasileira de 1988 é um monumento jurídico nascido do trauma, não da tradição”, observou o jurista Ives Gandra da Silva Martins, referindo-se ao contexto pós-ditadura. De fato, a CRFB nasceu como uma reação: uma tentativa de proteger a sociedade de novos autoritarismos. Mas o excesso de detalhamento e a busca por abarcar todos os interesses no texto constitucional a tornaram uma espécie de código político-legislativo — vulnerável às vontades do momento.
Enquanto os direitos autorais obedecem a um calendário fixo e certo, quase sagrado — 70 anos é o tempo da maturação pública da obra —, a Constituição brasileira sofre de uma velhice precoce: com pouco mais de três décadas, já se discute sua reforma total, ou mesmo sua substituição. Como escreveu Raymond Aron, “uma Constituição só sobrevive se for cultuada, não apenas obedecida”. A brasileira, infelizmente, é mais remendada do que reverenciada.
Esse contraste — entre a estabilidade do tempo cultural e a volatilidade do tempo jurídico-político — convida à reflexão: será que as obras dos homens resistem mais do que suas instituições? A cultura, ainda que marginalizada, marginaliza menos a verdade do que o poder, e talvez por isso tenha um poder de permanência mais sólido. Um livro subversivo pode dormir no esquecimento e ressurgir em outra geração, mas uma constituição capturada pelos interesses do presente perde sua função orientadora e se transforma em uma carta de intenções contraditórias.
No caso de Mascarenhas Barreto, sua obra desafia uma narrativa oficial consolidada. Sua tese, se correta ou não, importa menos do que o gesto: ousar reler a história à luz de novas evidências, movido por um senso de verdade que ultrapassa o consenso. E é essa mesma ousadia que falta a muitos dos que hoje mexem nas estruturas constitucionais do país: falta-lhes visão de futuro, profundidade cultural, responsabilidade histórica.
“Uma nação se faz com homens e livros”, disse Monteiro Lobato, e esse adágio parece ecoar mais forte quando percebemos que os livros, muitas vezes, sobrevivem aos regimes que os censuraram, às leis que os restringiram, e aos governos que tentaram silenciá-los.
Talvez, em 2088, quando a obra de Mascarenhas Barreto entrar em domínio público, a Constituição de 1988 já não esteja em vigor — ou exista apenas como relíquia de uma época em que o Brasil buscava se reinventar, mas não sabia bem como. E talvez seja a leitura livre da obra que ressuscite a história que o Estado tentou enterrar, enquanto o próprio Estado terá enterrado a Constituição que prometeu proteger.
No fim, é possível que o tempo da cultura vença o tempo da lei. E isso nos obriga a pensar seriamente em qual dos dois devemos confiar quando buscamos o que é mais permanente: o gesto de um autor que desafia séculos, ou a caneta de um legislador que altera o país a cada semana.
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