“Quem pode ser no mundo tão quieto,
Ou quem terá tão livre o pensamento,
Quem tão experimentado é tão discreto,
Tão fora, enfim, do humano entendimento
Que, ou com público efeito, ou com secreto,
Lhe não revolva e espante o sentimento,
Deixando o juízo quase incerto,
Ver e notar do mundo o desconcerto?”
— Camões, Oitava 3, Lírica
É assim que Gustavo Corção inicia seu livro “O desconcerto do mundo”.
Perfuro-contundente, como gosto de adjetivar aquilo que incomoda, cutuca, arranha, exige esforço reflexivo.
Traço ousadamente linhas aparentemente paralelas entre o “desconcerto” de Corção e o “absurdo” de Albert Camus.
Aparentemente paralelas, porque uma e outra inclinam-se sutilmente, mudando em graus os seus cursos até se esbarrarem. Encontram o perfeito ponto de intersecção.
Como assim? O que o católico Corção tem a ver com o existencialista Camus!?”, indagará alguém, ao que responderei: tudo. O “homem desconcertado” de Corção é fundamentalmente o “homem revoltado” de Camus.
Sim, é verdade que ambos se diferenciam na ordenação dos afetos, porém se igualam em tudo o mais, sobretudo na busca do sentido muito além do próprio sentido.
O “homem desconcertado” e o “homem revoltado” são o homem inconformado em ser conformado. São o homem quieto externamente, mas que o tempo todo dialoga consigo mesmo e observa absurdos e desconcertos ao seu redor e intimamente.
São o homem que o mundo enxerga pelas lentes da literatura e que sabe que “com ela surge a reclamação pré-histórica, a queixa acumulada, represada, o gemido que ficara escondido nas belas figuras de animais e guerreiros… Pode-se dizer, sem risco de erro, que onde está o homem está o gemido”.
Um ótimo livro que eu já deveria ter lido há muito tempo. Faço-o agora com a alegria de ter encontrado já nas primeiras páginas um magnífico tesouro.
O gemido é o prenúncio discreto do escandaloso choro do recém-nascido e o arauto tímido do derradeiro suspiro do moribundo. É o companheiro fiel de todos nós. É o absurdo da vida e o desconcerto do mundo. É, enfim, o selo indelével que carregamos à eternidade.
Paulo Henrique Cremoneze
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