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sábado, 25 de outubro de 2025

O cajueiro, a dação em pagamento e os limites entre a dádiva e o comércio

1. Introdução

O simples ato de plantar uma árvore frutífera, como o cajueiro, pode parecer apenas um gesto cotidiano. Contudo, quando pensamos no valor simbólico de seus frutos — transformados em doces, conservas ou lembranças —, percebemos que estamos diante de um fenômeno que transcende o campo da botânica ou da culinária. Trata-se de uma intersecção entre memória, afeto e economia, onde os frutos não são apenas alimento, mas também bens privados carregados de significados sociais e culturais.

2. O bem privado como lembrança

O cajueiro plantado na terra natal gera frutos que podem ser consumidos localmente ou enviados para parentes e amigos. Ao serem transformados em doces e remetidos a alguém distante, esses frutos deixam de ser apenas produtos naturais: tornam-se lembranças vivas. Nesse gesto, a família envia não só alimento, mas também a presença da terra e dos vínculos afetivos.

A frase simbólica “Ele te manda lembranças!” confere à árvore uma dimensão quase humana. É como se a natureza fosse também parte da família, mediando a relação entre os ausentes.

3. A economia da dádiva (Marcel Mauss)

Na clássica obra Ensaio sobre a Dádiva (1925), Marcel Mauss mostrou que presentes nunca são “gratuitos”: eles carregam obrigações de dar, receber e retribuir. O doce de caju enviado ao migrante, ou oferecido como presente a alguém, insere-se nesse circuito da dádiva. Ele não é uma mercadoria vendida, mas também não é um bem sem valor. Seu valor é simbólico e social, capaz de construir e reforçar vínculos.

4. A dação em pagamento e o capital relacional

No campo jurídico, o conceito de dação em pagamento aparece quando um bem é entregue em substituição ao dinheiro para saldar uma dívida. No caso do doce artesanal, ele pode compensar favores, simbolizar gratidão ou até funcionar como um “pagamento relacional”. Aqui, a moeda não é o real nem o dólar, mas sim o capital social que se acumula e se redistribui nas relações.

Esse raciocínio ecoa a tese de Karl Polanyi, em A Grande Transformação (1944), segundo a qual nem todas as trocas humanas podem ou devem ser absorvidas pela lógica de mercado. Há bens e vínculos que pertencem a outra ordem — a ordem da reciprocidade e do enraizamento cultural.

5. O impacto no exterior

Quando transposto para o cenário internacional, o valor desses bens cresce. Um doce artesanal de caju, enviado do Brasil para alguém no exterior, adquire um caráter de raridade e identidade cultural. Ele se torna um pedaço da pátria, um elo com as raízes.

  • Como lembrança, traz consigo a memória e o afeto da terra natal.

  • Como moeda social, funciona como presente de prestígio, capaz de abrir portas e consolidar relações.

Mas esse mesmo bem encontra limites claros quando tenta entrar no mercado formal.

6. O peso da alfândega e da vigilância

O Estado impõe barreiras quando se tenta transformar a lembrança em mercadoria. Frutos e doces enviados para fins comerciais estão sujeitos a:

  • Fiscalização alfandegária, com cobrança de tributos e registro formal;

  • Fiscalização fitossanitária, para prevenir pragas e garantir padrões de saúde pública;

  • Controle de escala, que impede que pequenos envios informais se convertam em atividade comercial sem regulamentação.

Aqui se traça a fronteira entre o bem privado da dádiva e a mercadoria regulada do comércio internacional.

7. Conclusão

O exemplo do cajueiro mostra como a economia não se resume ao mercado. Existe uma esfera afetiva e relacional, onde os frutos de uma árvore podem ser lembranças ou moeda simbólica de troca. Essa esfera, contudo, esbarra na regulação do comércio formal quando se tenta transformá-la em atividade lucrativa.

Como ensinou Mauss, a dádiva é portadora de uma força que transcende o cálculo monetário, e como lembrou Polanyi, o mercado não é a única nem a mais antiga forma de organizar a vida econômica. Assim, o cajueiro nos ensina que a dádiva pertence ao mundo da liberdade e da memória, enquanto o comércio pertence ao mundo da lei e da fiscalização.

Bibliografia

  • MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a Dádiva. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

  • POLANYI, Karl. A Grande Transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

  • SELIGMAN, Adam. The Problem of Trust. Princeton: Princeton University Press, 1997.

  • BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Dívidas em nome de pessoa falecida: como lidar quando o banco dá informações contraditórias

1. O que acontece com as dívidas após o falecimento?

Quando alguém falece, seu CPF é automaticamente vinculado ao espólio. Isso significa que:

  • O falecido não pode contrair novas dívidas;

  • As dívidas existentes permanecem válidas e precisam ser quitadas até onde alcançam os bens deixados;

  • Os herdeiros não respondem com patrimônio próprio pelas dívidas do falecido (art. 1.997 do Código Civil).

Assim, todas as obrigações passam a ser centralizadas no espólio, administrado pelo inventariante no processo de inventário (judicial ou extrajudicial).

2. O problema das informações contraditórias

É muito comum que familiares recebam orientações diferentes de canais do banco:

  • Na agência, dizem que a dívida será consolidada, com possibilidade de desconto em caso de quitação integral;

  • No SAC, informam que os pagamentos devem continuar mensalmente, como se a pessoa ainda estivesse viva.

Essas informações conflitantes geram insegurança jurídica e podem levar a erros: pagar mais do que o devido, perder o direito a desconto ou até comprometer o inventário.

3. Direitos do consumidor e transparência

O Código de Defesa do Consumidor (CDC) garante:

  • Direito à informação adequada e clara (art. 6º, III);

  • Boa-fé e equilíbrio contratual (art. 4º, III);

  • Proteção contra práticas abusivas (art. 6º, IV).

Portanto, quando o banco não se posiciona de forma inequívoca, há risco de lesão aos direitos do consumidor, e a família pode recorrer a mecanismos de proteção.

4. Caminhos possíveis para resolver

Diante da dúvida, o consumidor pode seguir três vias principais:

a) Via administrativa

  • Registrar reclamação no SAC, na Ouvidoria do banco e no Banco Central;

  • Solicitar por escrito que o banco informe como pretende cobrar a dívida do espólio.

b) No inventário

  • O inventariante pode pedir que o juiz oficie o banco para apresentar planilha consolidada da dívida, evitando divergências.

c) Interpelação judicial

  • A família pode ingressar com interpelação judicial (art. 726 do CPC/2015);

  • É uma medida de jurisdição voluntária, sem litígio, em que o juiz notifica o banco para esclarecer oficialmente como será o cumprimento da obrigação;

  • Serve para prevenir conflito futuro e proteger os herdeiros de cobranças abusivas.

5. Por que a interpelação judicial pode ser útil?

  • Garante segurança jurídica: o banco terá que se manifestar de forma clara e documentada;

  • Previne litígios: evita que a família pague em duplicidade ou perca descontos;

  • Protege os herdeiros: assegura que a dívida só será paga até o limite do espólio.

6. Conclusão

Se o seu familiar faleceu e o banco apresenta informações contraditórias sobre as dívidas, não aceite orientações apenas de boca. Peça tudo por escrito e, se necessário, recorra ao Judiciário.

A interpelação judicial é uma ferramenta preventiva, que coloca ordem na relação e impede que a falta de clareza do banco cause prejuízos aos herdeiros.

👉 Em resumo: Dívidas de falecidos devem ser pagas com os bens do espólio, nunca com os bens pessoais dos herdeiros. Se o banco não esclarece a forma de cobrança, cabe ao consumidor exigir formalmente essa definição — e, se preciso, buscar o Judiciário.

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Diálogo Imaginário entre Frederick Jackson Turner e Josiah Royce

 Cenário: 

Uma sala de conferências em uma universidade americana no início do século XX. O ambiente é austero, com estantes repletas de livros, um grande mapa dos Estados Unidos na parede e uma mesa de madeira no centro. Frederick Jackson Turner e Josiah Royce estão sentados frente a frente, cercados por estudantes atentos.

Turner (com entusiasmo, apontando para o mapa):

Professor Royce, é uma honra dialogar com o senhor. Veja bem: a história dos Estados Unidos só pode ser entendida a partir da fronteira. Foi esse movimento constante rumo ao Oeste, essa conquista de terras, que formou nosso caráter nacional: individualista, prático, inventivo e, sobretudo, democrático. A fronteira moldou nossa democracia!

Royce (calmo, cruzando as mãos sobre a mesa):

Professor Turner, também é uma honra. Mas permita-me advertir: se a fronteira for vista apenas como espaço físico de expansão, temo que produza mais dispersão do que união. A verdadeira força de uma comunidade não está em avançar territórios, mas em cultivar lealdade. É a lealdade que liga o indivíduo a uma causa maior do que ele mesmo. Sem isso, o espírito da fronteira pode se reduzir a mero egoísmo aventureiro.

Turner (inclinando-se para frente, em tom conciliador):

Compreendo sua preocupação, professor. Mas veja: na marcha para o Oeste, os colonos precisavam uns dos outros. Reuniam-se em assembleias locais, ajudavam-se nas colheitas e se defendiam juntos. A fronteira exigia cooperação. Talvez o que o senhor chama de lealdade já estivesse presente nesse pacto entre pioneiros, ainda que eles não lhe dessem esse nome.

Royce (erguendo a voz com firmeza, mas sem perder a serenidade):

Exato! O que o senhor descreve como pacto, eu chamaria de lealdade comunitária. A lealdade é essa consciência de que só crescemos quando nos dedicamos a um bem maior. Se a fronteira for apenas uma oportunidade de enriquecimento individual, ela se corrompe. Mas se for vivida como missão comum — educar, civilizar, integrar — ela se transforma em serviço a uma causa.

Turner (reflexivo, olhando para o mapa):

Interessante… Então, para o senhor, a fronteira não é só um processo histórico, mas também uma escola moral. Meu argumento histórico ganha uma dimensão ética. Afinal, o espírito americano não se explica apenas pela conquista da terra, mas também pela fidelidade a ideais que sustentam a comunidade.

Royce (com olhar firme, apontando para os estudantes):

Exatamente. A expansão territorial chega ao fim quando não há mais terras virgens. Mas a lealdade nunca se esgota, pois é o princípio vital de qualquer comunidade. Onde a fronteira termina, a lealdade mantém a nação de pé.

Turner (sorri, convencido):

Então nossas ideias se complementam. A fronteira deu aos Estados Unidos a oportunidade de se reinventar. A lealdade, por sua vez, garante que essa energia não se perca, mas seja direcionada para a união e o futuro comum.

Royce (com solenidade, quase como quem encerra uma aula):

Perfeitamente, professor Turner. A fronteira explica o passado. A lealdade prepara o futuro. 

Supermercados, cashback e a filosofia da lealdade: um encontro entre Turner e Royce

1. A fronteira como laboratório de inovações

No Velho Oeste, a vida comunitária dependia de instituições simples, mas vitais: os general stores. Esses armazéns gerais forneciam tudo — de comida básica a ferramentas — num mesmo espaço.

  • Turner, em sua tese do "Frontier in American History" (1893), argumentava que a fronteira moldava o caráter americano: autossuficiência, pragmatismo e espírito comunitário.

  • Nesse ambiente, surgiu a prática do store credit (crédito na loja), uma forma primitiva de cashback: o cliente recebia vales ou tinha descontos futuros em troca da fidelidade.

Aqui vemos que, antes mesmo do “supermercado moderno”, havia já a ideia de conveniência e retorno ao cliente, marcada pela necessidade de sobrevivência em regiões isoladas.

2. Do general store ao supermercado moderno

  • Em 1916, Clarence Saunders fundou o Piggly Wiggly, considerado o primeiro supermercado de autoatendimento.

  • A inovação não foi apenas tecnológica, mas cultural: o consumidor ganhou confiança para escolher seus produtos sem intermediários.

  • A refrigeração, que se expandiu nas décadas seguintes, consolidou o modelo.

Esse movimento se insere na lógica de Turner: a fronteira não é só geográfica, mas também comercial e social — cada avanço amplia o horizonte de liberdade e eficiência.

3. Cashback e a lealdade na cultura americana

O cashback, ainda que em formas rudimentares, é expressão de um princípio mais profundo: a fidelização baseada na confiança.

  • Josiah Royce, em sua Philosophy of Loyalty (1908), via a lealdade como fundamento ético e comunitário. Ser leal é colocar o indivíduo a serviço de uma causa maior, criando vínculos de confiança.

  • O cashback, nessa perspectiva, é mais que uma estratégia de mercado: é uma retribuição que reforça a lealdade do cliente à comunidade comercial.

Assim como a lealdade, o cashback só funciona porque há confiança recíproca: o cliente volta à loja, e a loja reconhece sua fidelidade com benefícios.

4. O encontro entre Turner e Royce

  • Para Turner, a fronteira formou o caráter nacional, criando um povo empreendedor e inovador.

  • Para Royce, a lealdade dá solidez moral a esse mesmo povo, tornando-o capaz de se organizar em comunidades de sentido.

Os supermercados e o cashback, vistos sob essa lente, não são apenas inovações econômicas. São expressões concretas de uma filosofia de fronteira, em que a comunidade se organiza pela confiança, pela inovação e pela lealdade mútua.

5. Conclusão

A cultura americana transformou práticas simples do Velho Oeste — crédito, descontos, conveniência — em instituições globais como o supermercado e o cashback. Ao mesmo tempo, tais práticas refletem uma filosofia mais profunda:

  • Turner mostra como a fronteira expandiu os horizontes da vida comunitária.

  • Royce revela que a lealdade cimenta esses laços, tornando a comunidade viável.

Assim, supermercados e cashback não são apenas símbolos de consumo, mas parte de uma tradição cultural que une pragmatismo econômico e filosofia moral, própria de um povo moldado pela experiência de fronteira.

Bibliografia

  • Turner, Frederick Jackson. The Frontier in American History. New York: Henry Holt, 1920.

  • Royce, Josiah. The Philosophy of Loyalty. New York: Macmillan, 1908.

  • Tedlow, Richard S. New and Improved: The Story of Mass Marketing in America. Basic Books, 1996.

  • Strasser, Susan. Satisfaction Guaranteed: The Making of the American Mass Market. Pantheon, 1989.

  • Leach, William. Land of Desire: Merchants, Power, and the Rise of a New American Culture. Vintage, 1994.

O homem maduro e o vinho: a arte de transformar o ordinário em extraordinário

Introdução

Assim como o vinho não nasce pronto, o homem também não. Ambos precisam de tempo, de disciplina e de influência externa para que alcancem sua melhor forma. O vinho jovem é áspero e desequilibrado; o homem jovem é cheio de energia, mas carece de experiência e de sabedoria. O processo de maturação é o que os transforma em algo extraordinário.

O processo de maturação

No caso do vinho, repousar em tonéis de carvalho é essencial: a madeira imprime aromas, suaviza taninos e acrescenta profundidade. Esse tempo de contato, controlado com paciência, produz complexidade e harmonia.

Do mesmo modo, o homem, exposto às experiências, às derrotas e às vitórias, à disciplina do trabalho e à reflexão moral, suaviza suas arestas e adquire profundidade. A maturidade é o resultado de um processo lento, mas consistente.

O papel do gerenciamento

Nem todo vinho se torna excelente — depende do cuidado do enólogo. É preciso regular a temperatura, a oxigenação e o tempo de repouso. Da mesma forma, o gerenciamento de homens (managing) é a arte de criar condições para que indivíduos comuns se transformem em extraordinários.

Um bom líder é como o mestre do vinho: conhece o potencial de cada pessoa, entende quando intervir e quando deixar que o tempo trabalhe. O ambiente organizacional, nesse sentido, é o “tonel de carvalho” onde homens se transformam.

O ordinário tornando-se extraordinário

Peter Drucker já dizia que o verdadeiro desafio da liderança não é obter feitos heroicos de gênios, mas criar uma cultura onde o ordinário possa render o máximo de si. Stephen Covey, em sua “Liderança

Centrada em Princípios”, reforça que a grandeza é resultado da combinação de caráter e competência ao longo do tempo. O líder, como o enólogo, não cria o vinho — ele apenas potencializa o que já existe. Assim também com os homens: a liderança extrai aquilo que o ordinário não sabia que tinha.

O envelhecimento como virtude

Aristóteles, na Ética a Nicômaco, nos lembra que a virtude se constrói pelo hábito. O vinho só se torna nobre com a repetição do tempo bem administrado; o homem só se torna sábio ao reiterar boas escolhas, transformando-as em hábitos.

O homem maduro, portanto, não é apenas aquele que envelheceu, mas aquele que soube envelhecer bem.

Conclusão

A metáfora é clara:

  • O vinho precisa de carvalho; o homem precisa de valores e disciplina.

  • O vinho precisa de tempo; o homem precisa de experiência e perseverança.

  • O vinho precisa de um enólogo; o homem precisa de liderança.

O extraordinário não surge por acaso. É fruto de um processo de gerenciamento, de maturação e de fé no potencial humano. O homem maduro, como o bom vinho, torna-se melhor a cada ano — não porque o tempo passou, mas porque soube transformar o tempo em virtude.

Bibliografia

  • ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. António C. Caeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.

  • COVEY, Stephen R. Principle-Centered Leadership. New York: Free Press, 1991.

  • DRUCKER, Peter F. The Effective Executive: The Definitive Guide to Getting the Right Things Done. New York: Harper Business, 2006.

  • MAXWELL, John C. Developing the Leader Within You. Nashville: Thomas Nelson, 1993.

  • SENGE, Peter M. The Fifth Discipline: The Art and Practice of the Learning Organization. New York: Doubleday, 1990.

  • SILVEIRA, Sidney. A arte de governar-se a si mesmo. São Paulo: É Realizações, 2015.

  • WILKINSON, Alec. The Wine and the Vine: Symbolism in Christian Culture. London: Thames & Hudson, 2000.

 

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Jornalismo de Ficção: entre a imaginação e a realidade

Introdução

O fenômeno do chamado “jornalismo de ficção” vem ganhando espaço em plataformas digitais como o canal Crônicas do Brasil. Diferente das fake news, que são narrativas falsas travestidas de verdade com o intuito de manipulação e desinformação, o jornalismo de ficção assume, de forma explícita, sua natureza especulativa. Ele parte da estética e da forma jornalística, mas constrói narrativas que pertencem ao campo da imaginação, da possibilidade e da conotação.

No entanto, ao trazer para o formato jornalístico aquilo que não é real, esse gênero carrega tanto um potencial criativo e reflexivo, quanto riscos de incompreensão em contextos onde o déficit educacional e midiático é profundo.

Jornalismo de ficção x Fake News

A distinção entre o jornalismo de ficção e a desinformação é crucial.

  • Fake news: narrativas falsas apresentadas como verdadeiras, com objetivo de enganar e manipular.

  • Jornalismo de ficção: relatos assumidamente ficcionais, que utilizam a linguagem e a forma jornalística para criar narrativas possíveis, cenários especulativos ou histórias alternativas.

Enquanto o primeiro destrói a confiança pública, o segundo pode ampliá-la, desde que seja bem delimitado, por se apresentar como um exercício literário e de entretenimento.

A função da ficção na linguagem jornalística

A literatura sempre trabalhou com a ideia do “e se?” – seja nas utopias, distopias ou ucronias. O jornalismo de ficção, portanto, é uma transposição desse exercício para o formato jornalístico.

  • Ele cria manchetes, reportagens e entrevistas fictícias que se conectam com possibilidades sociais ou históricas ainda não realizadas.

  • Funciona como uma simulação cultural: uma forma de imaginar o futuro, explorar alternativas políticas ou refletir sobre dilemas morais.

Umberto Eco, em Apocalípticos e Integrados, lembra que toda narrativa midiática é uma construção; Roland Barthes, em Mitologias, mostra como os discursos carregam sentidos que ultrapassam o literal. O jornalismo de ficção está justamente nesse campo do simbólico, da conotação, onde se desdobram possibilidades.

O desafio brasileiro

No Brasil, entretanto, essa prática enfrenta um desafio de recepção.

  • O baixo nível de educação midiática dificulta a distinção entre denotação (o fato real) e conotação (o sentido especulativo).

  • Em um país onde boa parte da população ainda tem dificuldade de interpretar textos complexos, um produto jornalístico ficcional pode ser confundido com realidade.

Isso exige dos produtores sinais claros de demarcação: avisos, disclaimers, estilo visual distinto e, sobretudo, a transparência quanto ao caráter fictício do conteúdo.

Potencial educativo e cultural

Apesar dos riscos, o jornalismo de ficção pode ter um papel formativo:

  • Educação crítica: ensina a ler o jornalismo como linguagem, e não apenas como “espelho da realidade”.

  • Expansão da imaginação política: permite ao público refletir sobre futuros possíveis, alternativas sociais e consequências de decisões coletivas.

  • Diálogo com a literatura: cria uma ponte entre jornalismo e ficção, resgatando o valor cultural da narrativa como ferramenta de pensamento.

Se bem conduzido, esse gênero pode ampliar horizontes intelectuais, convidando os cidadãos a pensar em hipóteses e a refletir criticamente sobre o presente.

Conclusão

O jornalismo de ficção não deve ser confundido com desinformação. Ele é um gênero híbrido que utiliza a forma jornalística para construir narrativas literárias, explorando possibilidades ainda não realizadas.

No entanto, seu êxito depende de um público capaz de diferenciar o real do especulativo, algo que no Brasil atual ainda é um desafio. Portanto, sua prática deve ser feita com parcimônia, clareza e responsabilidade.

Trata-se de uma iniciativa criativa e ousada, que pode contribuir para a cultura crítica e para a educação midiática, desde que não perca de vista o seu caráter: não informar sobre o que aconteceu, mas narrar aquilo que poderia acontecer.

Referências

  • BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Difel, 1982.

  • ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo: Perspectiva, 1979.

  • BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

  • SODRÉ, Muniz. A Máquina de Narciso: televisão, indivíduo e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.

  • CHOMSKY, Noam; HERMAN, Edward. Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media. New York: Pantheon, 1988. 

terça-feira, 21 de outubro de 2025

Taxback do Imposto de Renda: o que pode significar para famílias com entes falecidos nos últimos cinco anos

A proposta legislativa da deputada Júlia Zanatta, que pretende extinguir o imposto de renda no Brasil, trouxe à tona uma série de reflexões jurídicas e práticas. Para além da discussão política e econômica sobre a viabilidade da medida, há um efeito direto que pode impactar fortemente famílias brasileiras: a possibilidade de reclamar a restituição do imposto de renda pago nos últimos cinco anos, inclusive por entes falecidos.

Este artigo é direcionado não apenas a quem paga imposto de renda hoje, mas também a famílias que perderam um ente querido recentemente — em especial nos últimos cinco anos.

📌 O fundamento jurídico do taxback

O Código Tributário Nacional (CTN) prevê, em seu artigo 165, que todo contribuinte tem direito à restituição do indébito tributário quando um tributo é pago indevidamente ou declarado inconstitucional. Já o artigo 168 fixa o prazo de cinco anos para pleitear essa devolução, contados a partir da data do pagamento.

Assim, se o imposto de renda for revogado ou considerado inválido, abre-se a possibilidade de os contribuintes pedirem de volta tudo o que foi pago nesse período. E isso se estende inclusive aos tributos pagos por pessoas que já faleceram.

📌 O caso dos falecidos

Quando alguém falece, seus bens e direitos passam a compor o espólio, que é representado pelo inventariante. Se a partilha dos bens já foi feita, mas posteriormente surge um novo direito patrimonial (como o crédito tributário de restituição), é cabível a chamada sobrepartilha — prevista no Código Civil (art. 2.020) e no CPC (art. 669).

Isso significa que:

  • O crédito de restituição referente ao imposto de renda pago pelo falecido nos últimos cinco anos é considerado um novo bem da herança.

  • Mesmo que a partilha já tenha sido concluída, ela pode ser reaberta para incluir esse crédito.

  • O valor restituído será então dividido entre os herdeiros conforme os quinhões já estabelecidos.

📌 Exemplo prático

Imagine uma pessoa que pagava, em média, R$ 1.000,00 de imposto de renda por mês.

  • Em um ano, isso corresponde a R$ 12.000,00.

  • Em cinco anos, R$ 60.000,00.

  • Corrigidos pela taxa SELIC, como manda a lei em casos de restituição tributária, esse valor pode facilmente superar os R$ 80.000,00.

Se essa pessoa faleceu há dois ou três anos, e a partilha já foi feita, os herdeiros ainda terão direito a receber esse montante via sobrepartilha, pois se trata de um bem “novo”, criado pela mudança legislativa ou por decisão judicial que reconheça a ilegalidade do tributo.

📌 Orientações para as famílias

  1. Guardar documentação: mantenha organizados todos os informes de rendimentos, declarações de imposto de renda e comprovantes de retenção, tanto da pessoa falecida quanto dos familiares que ainda pagam IR.

  2. Consultar o processo de inventário: tenha em mãos a partilha concluída, pois será necessário compará-la ao novo crédito para abertura da sobrepartilha.

  3. Acompanhar a tramitação da lei: o projeto ainda está em discussão no Congresso, e não há garantias de aprovação. Mas o monitoramento é essencial para agir no momento certo.

  4. Buscar orientação jurídica: caso a lei seja aprovada ou o imposto declarado inconstitucional, a restituição deverá ser reclamada judicialmente ou administrativamente. Para espólios, isso exigirá atuação processual própria.

📌 Conclusão

Estamos diante de uma situação extraordinária: o possível reconhecimento de que bilhões de reais foram pagos indevidamente em imposto de renda, abrindo caminho para uma devolução sem precedentes.

Para famílias que perderam entes queridos nos últimos cinco anos, o impacto pode ser ainda maior. Valores que não faziam parte da herança originalmente podem surgir retroativamente, exigindo reabertura de partilhas e redistribuição entre herdeiros.

Mais do que nunca, é hora de se preparar: pagar corretamente os tributos de hoje, mas manter organizada toda a documentação dos últimos cinco anos, para que o direito ao taxback seja exercido no futuro, caso o ordenamento jurídico brasileiro assim o permita.

📚 Bibliografia essencial

  • BRASIL. Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172/1966).
    Artigos 165 a 168 (restituição do indébito tributário e prazo quinquenal).

  • BRASIL. Código Civil (Lei nº 10.406/2002).
    Art. 2.020 – sobrepartilha.

  • BRASIL. Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015).
    Art. 669 – hipóteses de sobrepartilha.

  • Projeto de Lei nº 4329/2025. Deputada Júlia Zanatta (PL/SC). Câmara dos Deputados.
    Ficha de tramitação