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sábado, 19 de julho de 2025

A nacionidade cristã na Era da Rede: política relacional, sociedade conectada e vínculo espiritual transnacional

“Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus.”
— Gálatas 3, 28

Resumo

Este capítulo articula como a noção de política relacional, aliada à sociedade em rede de Castells, fundamenta uma teoria cristã da nacionidade que transcende fronteiras. Demonstramos que, na era dos fluxos transnacionais, assumir duas pátrias como casa em Cristo gera repercussões sociais, familiares e políticas — configurando uma presença que é, simultaneamente, espiritual e real.

Palavras-chave: rede, identidade, nacionidade cristã, vinculação relacional, Castells, transnacionalismo.

1. Sociedade em rede e crise da soberania nacional

Manuel Castells aponta que vivemos numa sociedade em rede, caracterizada por fluxos globais de informação, capital e pessoas que constituem novas formas de poder e organização social, além das fronteiras territoriais tradicionais¹. Esse modelo propicia um “espaço de fluxos” que desafia o espaço físico dos Estados-nação, reduzindo sua soberania efetiva, apesar de manterem sua influência².

A identidade coletiva e individual emerge nesse contexto a partir da tensão entre esse espaço global e o “eu” situado. Para Castells, os movimentos sociais formam-se como respostas a essa fragmentação, buscando rearticular identidades nacionais, étnicas, religiosas ou culturais como contrapeso à lógica da rede³.

2. Identidade nacional relacional no cristianismo transnacional

A política relacional cristã vê o indivíduo como participante de uma rede de aliança espiritual que não está confinada a um território — mas se estende pela fé, o batismo e a tradição. Quando alguém adota duas nações como uma mesma morada em Cristo, essa escolha gera vínculos morais e culturais dupla‑raiz, cujos efeitos reverberam nas famílias e nas comunidades eclesiais em ambas as nações.

Esses vínculos:

  • ampliam a experiência identitária e histórica da pessoa e sua linhagem;

  • multiplicam deveres de lealdade, justiça e educação moral;

  • provocam impacto político, uma vez que o mundo percebe tal pessoa como elo entre povos.

Essa configuração lembra Abraão que gerou uma descendência “para todas as nações” (Gn 17,4) — uma metáfora de ponte espiritual e cultural entre povos.

3. Repercussões sociais, políticas e familiares

No modelo da sociedade em rede, o testemunho pessoal religioso torna‑se ato político, já que flui pelas conexões familiares e sociais, gerando repercussão pública. Castells coloca que a identidade é central na formação de significados frente ao fluxo global — e que **movimentos identitários” (religiões, etnias) emergem como resistências ou como geradores de sentido num mundo líquido⁴.

Quando um cristão relacional vive simultaneamente por duas nações em Cristo, ele encarna uma diplomacia espiritual local e global:

  • crianças herdam múltiplas raízes culturais e espirituais;

  • famílias tornam-se pontes entre nações;

  • lideranças eclesiais influenciam paisagens políticas, culturais e diplomáticas.

4. A nacionidade cristã como ponte de mediação

Tal figura se aproxima do modelo do soldado-cidadão cristão: quem compreende as leis de Cristo e do Estado, serve corretamente a mais de uma nação sem trair nenhuma — mas sim, testifica a reconciliação. Missionários, exilados por consciência cristã e pais que educam sob dupla cidadania encarnam esse modelo.

Vivida com autenticidade, essa nacionidade permanece fiel ao Reino universal de Cristo. Vivida de modo instrumental, gera duplicidade moral e riscos familiares e sociais.

5. Conclusão

O entrelaçamento da política relacional, da sociedade em rede casteliana e da teoria cristã da nacionidade permite captar realidades contemporâneas: viver como cidadão de duas nações em Cristo não é mera abstração, mas fato político-relacional com consequências reais. Requer discernimento, fidelidade e sabedoria para não se tornar instrumento de manipulação ou confusão identitária.

Notas de rodapé

¹ CASTELLS, Manuel. The Rise of the Network Society. v. I de The Information Age: Economy, Society and Culture. Cambridge/Oxford: Blackwell, 1996.
² CASTELLS, M. “The Power of Identity”, v. II de The Information Age. Cambridge/Oxford: Blackwell, 1997, p. 243.
³ CASTELLS, M. “Materials for an Exploratory Theory of the Network Society”. British Journal of Sociology, v. 51, n. 1, p. 5‑24, 2000.
⁴ CASTELLS, M. Conversations with Manuel Castells, traduzido por Ince, Martin. Oxford: Polity Press, 2003.

Bibliografia

CASTELLS, Manuel. The Rise of the Network Society. v. I de The Information Age: Economy, Society and Culture. Cambridge/Oxford: Blackwell, 1996.

CASTELLS, Manuel. The Power of Identity. v. II de The Information Age: Economy, Society and Culture. Cambridge/Oxford: Blackwell, 1997.

CASTELLS, Manuel. “Materials for an Exploratory Theory of the Network Society”. British Journal of Sociology, v. 51, n. 1, p. 5‑24, 2000.

CASTELLS, Manuel; INCE, Martin (orgs.). Conversations with Manuel Castells. Oxford: Polity Press, 2003.

WIKIPÉDIA. Sociedade em rede. Disponível em: pt.wikipedia.org/wiki/Sociedade_em_rede. Acesso em: jul. 2025.

A teologia política do Antigo Testamento: linhagem, bênção e maldição como fundamento da política relacional

 "Eu, o Senhor teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam, mas trato com misericórdia até mil gerações os que me amam e guardam os meus mandamentos."
— Êxodo 20, 5–6

Resumo

Este artigo investiga os fundamentos teológicos da política relacional a partir da Escritura, especialmente do Antigo Testamento. Defende-se que o agir político e jurídico do povo de Israel era baseado numa noção relacional de justiça, onde a pessoa não é compreendida isoladamente, mas como parte de uma linhagem e de uma aliança. As categorias de bênção e maldição, herança e contaminação moral, exprimem uma compreensão do pecado e da virtude como eventos comunitários e transgeracionais.

Palavras-chave: política bíblica, linhagem, justiça relacional, bênção, maldição, aliança, pecado coletivo.

1. Introdução: A justiça como ordem de vínculos

A Escritura não concebe o homem como um sujeito jurídico autônomo, mas como membro de uma linhagem, parte de um povo, herdeiro de uma promessa. A relação do indivíduo com Deus e com a lei está profundamente entrelaçada com sua posição familiar, tribal e nacional. A justiça, portanto, não é apenas distributiva no plano individual, mas relacional no plano genealógico e social.

Essa lógica rompe com a abstração do direito moderno e reafirma o princípio de que a história humana é feita por casas, não por indivíduos desconectados. O pecado de um homem pode manchar sua linhagem (cf. Nm 14,18); a justiça de um pode salvar uma nação (cf. Gn 18,32).

2. O princípio da solidariedade transgeracional

A noção de solidariedade moral entre as gerações aparece com força em diversas passagens bíblicas. Na aliança do Sinai, por exemplo, Deus declara:

“Visito a iniquidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam” (Ex 20,5).

Essa “visitação” não é punição arbitrária, mas consequência ontológica do vínculo familiar. O pecado de um patriarca desequilibra a ordem espiritual da casa; seus efeitos são colhidos pelos descendentes, mesmo que não repitam o ato.

O mesmo princípio vale para a bênção:

“Trato com misericórdia até mil gerações os que me amam e guardam os meus mandamentos” (Ex 20,6).

Essa relação transgeracional é a base espiritual do que hoje chamamos de política relacional: os atos do indivíduo não são isolados, mas reverberam em sua linhagem e sua terra.

3. Exemplos bíblicos da política relacional

a) O pecado de Acã (Js 7)

Ao tomar despojos proibidos após a queda de Jericó, Acã traz maldição sobre todo o povo. Israel perde a batalha de Ai. Josué consulta o Senhor e descobre que “Israel pecou” (Js 7,11), embora o ato tenha sido individual. O castigo recai sobre Acã, seus bens e sua família, numa ação de purificação coletiva.

Esse episódio revela que o mal, ainda que praticado secretamente, contamina a comunidade, exigindo expiação pública e restauradora.

b) A intercessão de Abraão por Sodoma (Gn 18)

Abraão negocia com Deus a salvação de Sodoma com base em justos remanescentes. Ele pergunta:

“Destruirás o justo com o ímpio? [...] Se houver dez justos, destruirás a cidade?” (Gn 18,23–32).

A resposta implícita de Deus é que os vínculos dos justos podem proteger os ímpios. Essa lógica revela o poder comunitário da virtude — uma única casa justa pode sustentar a ordem espiritual de uma cidade.

c) A maldição de Geazi (2Rs 5)

Após mentir ao profeta Eliseu, Geazi é amaldiçoado:

“A lepra de Naamã se apegará a ti e à tua descendência para sempre” (2Rs 5,27).

A lepra, símbolo do pecado e da impureza, é aqui transmitida por linhagem, mostrando a continuidade dos efeitos morais para além do ato isolado.

4. A política da aliança: casas, tribos e nações

O Antigo Testamento é dominado por estruturas de aliança genealógica:

  • A aliança com Noé abrange toda a sua descendência (Gn 9,9).

  • A aliança com Abraão estabelece bênção para todas as famílias da terra por meio de sua linhagem (Gn 12,3).

  • A aliança com Davi promete um trono eterno a sua casa (2Sm 7,16).

A política israelita é, portanto, fundada sobre casas, linhagens e promessas hereditárias. A justiça de um rei afeta todo o povo (cf. 1Rs 11,11). A infidelidade de uma tribo exige reparação coletiva (cf. Jz 20). O sacerdócio é transmitido por descendência (cf. Ex 29).

Essa lógica é profundamente relacional, teológica e histórica — o exato oposto da política liberal moderna.

5. Cristo e a restauração da linhagem

No Novo Testamento, Cristo assume a linhagem humana (cf. Mt 1) e reordena a política relacional segundo a justiça plena. Ele é chamado “novo Adão”, pois de sua obediência nasce uma nova humanidade (cf. Rm 5,19).

O pecado de Adão contaminou toda a sua descendência; a justiça de Cristo purifica a linhagem dos que nele são enxertados (cf. Jo 15,5).
Paulo diz:

“Se alguém está em Cristo, é uma nova criatura; as coisas antigas passaram” (2Cor 5,17).

Na Nova Aliança, a política relacional não é abolida, mas santificada. A Igreja é o novo Israel — um corpo coletivo e hierárquico, onde o pecado de um atinge a todos (cf. 1Cor 5), mas também onde a oração de um pode salvar muitos (cf. Tg 5,15–16).

6. Conclusão: A ordem política como extensão da casa

A teologia política do Antigo Testamento oferece fundamentos profundos para uma concepção relacional da justiça. O homem é visto como ser enraizado — com pais, filhos, irmãos, terra e linhagem. Sua ação tem peso espiritual, e esse peso é medido na rede dos vínculos.

A justiça, nesse sentido, não é mera aplicação de normas neutras, mas restauração da ordem relacional, do equilíbrio entre bênção e maldição. A política relacional contemporânea, se quiser ser legítima, deve retomar essa visão teológica: sem ela, degenerará em punição arbitrária ou manipulação geopolítica.

Restaurar o princípio bíblico da justiça é reconhecer que a política é extensão da casa — e que não há ordem social sem ordem moral entre pais e filhos.

Notas

  1. BÍBLIA. Livro do Êxodo, 20, 5–6.

  2. Idem, Livro de Josué, cap. 7.

  3. Idem, Gênesis 18, 23–32.

  4. Idem, 2 Reis 5, 27.

  5. Idem, 2 Coríntios 5, 17.

Bibliografia

  • BÍBLIA SAGRADA. Tradução da CNBB. São Paulo: Edições CNBB, 2008.

  • BONHOEFFER, Dietrich. Ética. São Leopoldo: Sinodal, 2005.

  • KAUFMAN, Gordon D. The Theology of Promise. Philadelphia: Fortress Press, 1963.

  • WRIGHT, Christopher J.H. Old Testament Ethics for the People of God. Downers Grove: IVP Academic, 2004.

  • RATZINGER, Joseph. Chamados à comunhão: Eclesiologia da Igreja primitiva. São Paulo: Loyola, 2004.

Da política individualista à política relacional: a Lei Magnitsky e o colapso do sujeito autônomo

“Nenhum homem é uma ilha.”
— John Donne

Resumo

O presente artigo defende que o advento de legislações como a Lei Magnitsky inaugura um novo paradigma político — o da política relacional — em ruptura com a tradição moderna do individualismo político. Argumenta-se que esse novo modelo jurídico e moral reconhece o ser humano como inserido em redes de pertencimento e responsabilidade, onde seus atos têm repercussões morais e sociais para além de sua individualidade. Por fim, propõe-se que esse retorno ao vínculo exige um fundamento teológico sólido para evitar arbitrariedades e distorções ideológicas.

Palavras-chave: individualismo, política relacional, Lei Magnitsky, antropologia política, moral cristã.

1. Introdução

Desde a modernidade, a política ocidental tem operado segundo a lógica do individualismo jurídico. Trata-se de uma concepção do homem como sujeito autônomo, desvinculado de laços comunitários que o comprometam moral ou juridicamente por atos alheios. Esse paradigma alcançou seu auge com o liberalismo contratualista e a codificação do direito moderno, sobretudo nos séculos XVIII e XIX.

Contudo, a emergência de novas ameaças globais — como o crime transnacional, a corrupção sistêmica e o terrorismo — desafia esse modelo. Leis como a Magnitsky Act revelam uma nova lógica de responsabilização: o homem não é mais julgado apenas como indivíduo, mas como parte de uma rede moral e econômica. O artigo propõe que esta lógica inaugura uma nova antropologia jurídica e política, cuja matriz é relacional.

2. A tradição do sujeito isolado

A modernidade política, fundada no racionalismo antropocêntrico, concebe o indivíduo como a menor unidade moral e política. John Locke, por exemplo, afirma que os direitos naturais precedem qualquer forma de associação civil: “os homens são, por natureza, livres, iguais e independentes”¹. O contrato social nasce, portanto, de uma reunião de sujeitos autônomos que escolhem submeter-se ao Estado, sem que esse Estado possa violar a esfera da autonomia privada.

Essa concepção culmina numa teoria da justiça que exclui a culpa por associação e privilegia a responsabilidade individual estrita. É o que se vê, por exemplo, na estrutura penal liberal, onde se evita a punição de herdeiros, cúmplices involuntários ou grupos afetados por ações isoladas. Esse modelo, por mais eficaz que tenha sido na limitação do arbítrio estatal, gera uma profunda erosão dos vínculos morais comunitários.

Como observa Alasdair MacIntyre:

“No mundo moderno, perdemos a linguagem da virtude justamente porque perdemos a concepção do homem como membro de uma história que o precede”².

3. A irrupção da política relacional: o caso da Lei Magnitsky

A Lei Magnitsky, promulgada em 2012 pelo Congresso dos Estados Unidos, autorizou o poder executivo a aplicar sanções econômicas, migratórias e diplomáticas a indivíduos acusados de graves violações de direitos humanos ou corrupção. Posteriormente, a legislação foi expandida e adotada por outros países como Canadá, Reino Unido, Estônia e Lituânia.

Contudo, o que torna essa lei paradigmática é o fato de que suas sanções muitas vezes se estendem aos entornos dos acusados: empresas ligadas, familiares próximos, aliados políticos e até estruturas estatais que os protejam. Está implícita aí uma mudança de lógica: do ato isolado à rede de cumplicidade; do indivíduo ao contexto relacional.

Não se trata mais apenas de “o que você fez?”, mas: “com quem você se aliou?”, “quem foi favorecido?”, “quem perpetuou o dano social?”. Essa lógica é incompatível com o individualismo jurídico, e evoca uma ética da responsabilidade coletiva.

Charles Taylor observa que uma das marcas do homem moderno é sua “perda da encarnação”, isto é, da percepção de estar situado num contexto histórico e relacional³. A política relacional pode ser vista, nesse sentido, como um retorno — ainda que incipiente e contraditório — a essa encarnação moral.

4. Fundamento metafísico: o ser relacional na tradição cristã

Para que essa nova lógica não se torne mero instrumento de poder geopolítico, é necessário enraizá-la numa antropologia sólida. Essa base é fornecida pela tradição cristã, que entende o homem como um ser relacional por natureza.

Santo Tomás de Aquino, ao tratar da lei natural, ensina que o homem é “por natureza um animal político e social” (Summa Theologica, I-II, q. 94, a. 2). Logo, suas ações têm sempre repercussões na ordem da comunidade. O pecado, por sua vez, “contamina a cidade” (q. 90, a. 1), e a virtude “edifica o corpo místico”.

Na tradição veterotestamentária, essa estrutura é ainda mais explícita: o bem de um pai beneficia os filhos até a milésima geração; o pecado de um líder pode atrair maldição sobre o povo (cf. Ex 20,5; Nm 14,18). Não se trata de culpa automática, mas de vínculo real entre atos e consequências herdadas.

Esse é o fundamento último da política relacional: reconhecer que, em cada ato humano, há uma reverberação comunitária, familiar e até espiritual.

5. Riscos da distorção secular

Sem um fundamento transcendente, essa política relacional pode degenerar:

  • Em perseguições ideológicas, onde meros vínculos afetivos são suficientes para a condenação.

  • Em instrumento geopolítico, onde países impõem suas sanções seletivamente, segundo interesses estratégicos.

  • Em inversão do ônus da prova, punindo não atos, mas conexões.

Por isso, uma política relacional autêntica precisa estar ancorada numa lei moral objetiva, como aquela expressa na tradição naturalista cristã. Caso contrário, ela será apenas a máscara moral de novos totalitarismos.

6. Conclusão

A emergência de leis como a Magnitsky revela o colapso da ideia moderna de sujeito isolado. A política relacional que delas emerge reconhece o homem como ser enraizado em vínculos reais, cujas ações ressoam além de sua própria esfera.

Trata-se de uma reconfiguração profunda da justiça: a volta da noção de comunidade moral, linhagem espiritual, corpo ético. Contudo, sem um fundamento transcendente, esse retorno pode ser manipulado e pervertido.

O desafio contemporâneo, portanto, é o de reconstruir uma teoria política e jurídica que una a eficácia das novas práticas com a sabedoria da tradição perene, onde a justiça relacional não se torne tirania, mas sim instrumento da paz e da ordem.

Notas

  1. LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 17.

  2. MACINTYRE, Alasdair. After Virtue: A Study in Moral Theory. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2007. p. 204.

  3. TAYLOR, Charles. Sources of the Self: The Making of the Modern Identity. Cambridge: Harvard University Press, 1989. p. 27.

Bibliografia

  • AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Trad. Alexandre Corrêa. São Paulo: Loyola, 2001.

  • LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

  • MACINTYRE, Alasdair. After Virtue: A Study in Moral Theory. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2007.

  • SCRUTON, Roger. How to Be a Conservative. London: Bloomsbury, 2014.

  • TAYLOR, Charles. Sources of the Self: The Making of the Modern Identity. Cambridge: Harvard University Press, 1989.

  • U.S. Congress. Global Magnitsky Human Rights Accountability Act. Public Law 114-328, Dec. 23, 2016.

sexta-feira, 18 de julho de 2025

O tributo como cashback nos méritos de Cristo: arquitetura, servidão santa e reconstrução da nobreza cristã

Resumo

Este artigo desenvolve uma doutrina tributária e civilizacional inspirada nos princípios do direito natural cristão, segundo a qual o tributo, longe de ser uma exação forçada, pode assumir a forma de uma oferenda voluntária — análoga ao cashback — quando nasce da gratidão de um povo que reconhece no monarca a imagem do verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. Argumenta-se que o tributo pode ser prestado in natura, através do trabalho jubiloso do cidadão, e que esse serviço edifica não apenas obras públicas, mas também formas arquitetônicas sagradas, costumes civilizadores e vínculos sociais nobres. Em resposta, o monarca pode recompensar com títulos e honrarias aqueles que serviram à nação nos méritos de Cristo.

1. Introdução

O tributo, à luz da Tradição cristã, não é apenas exigência fiscal, mas gesto de amor político. Quando um homem serve à liberdade de muitos nos méritos de Cristo, por meio do trabalho, da inteligência e do tempo consagrados ao bem comum, nasce uma dívida da comunidade em relação a ele. Essa dívida pode ser satisfeita com honra, nobreza e preferência política. O tributo, nesse caso, é um dom que retorna — um cashback espiritual.

2. Liberdade Aperfeiçoada como fonte de autoridade

A liberdade, segundo o Evangelho, é fruto da Verdade: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8,32). Quando o vassalo de Cristo consagra sua vida à Verdade, torna-se agente de libertação. A sociedade, por gratidão, tributa esse homem, reconhecendo sua autoridade. Essa autoridade, que nasce do serviço, exige reciprocidade: tributo espiritual, prestígio e, quando necessário, títulos.

3. O tributo como cashback espiritual e social

A noção de cashback aqui não se aplica ao consumo, mas à graça e ao dom. O vassalo oferece sua vida pela pátria; a pátria devolve, não apenas em bens materiais, mas em reconhecimento e preferência social. A moeda é substituída pelo símbolo. O trabalho se converte em memória, e a memória em gratidão política.

4. A forma arquitetônica como fruto do tributo in natura

As formas arquitetônicas que moldaram civilizações inteiras — do Egito faraônico à Cristandade medieval — nasceram precisamente da oferta jubilosa do trabalho popular ao soberano. As pirâmides, os templos gregos, as catedrais francesas e os mosteiros ibéricos não foram erguidos por empresas contratadas, mas por povos inteiros que viam no rei o mediador entre Deus e a terra.

Esse esforço era uma liturgia do espaço, onde a matéria obedecia à alma da civilização. Os estilos arquitetônicos são, portanto, expressão material da teologia política de um povo: românico, gótico, barroco — todos frutos de um tributo que não era imposto, mas voto.

5. A servidão santa e a diferença com a escravidão

Há quem confunda essa oferenda de trabalho com escravidão. Trata-se, no entanto, de distinção essencial:

  • A escravidão é servidão contra a vontade, imposta por força ou coação.

  • A servidão santa é entrega voluntária de si por amor à ordem, à justiça e ao rei, reconhecido como servidor de Cristo.

Essa entrega é jubilosa, pois reconhece que a vida só tem sentido se for doada. E se a doação for grande, grande também será a recompensa.

6. A recompensa justa: títulos, honrarias e preferência

Se o governante não pode pagar em dinheiro, deve pagar com o que é mais precioso: a honra. Os que serviram à nação nos méritos de Cristo têm direito à memória, à distinção e à preferência.

Essa é a origem legítima dos títulos nobiliárquicos:

  • Não como privilégio hereditário injustificado,

  • Mas como herança espiritual de famílias que doaram tempo, sangue e alma para a pátria cristã.

A pequena lei que dá preferência a tais famílias é justa: reconhece que o passado importa, e que a lealdade dos pais deve contar em favor dos filhos. Essa relação entre o monarca e o súdito é análoga à do pai e do filho — uma reciprocidade nos méritos de Cristo.

7. A possibilidade brasileira

Se houver no Brasil um monarca legítimo que governe nos méritos de Cristo, surgirá novamente essa reciprocidade de serviço e honra. E, com ela, a arquitetura deixará de ser cópia estrangeira e voltará a ser símbolo do espírito nacional redimido.

As catedrais, escolas, hospitais e obras públicas erguidas pelo povo fiel serão marcos de uma nova civilização. E os títulos concedidos aos seus construtores não serão vaidade, mas justiça.

8. Conclusão

O tributo cristão, quando prestado por um povo que ama seu rei e serve nos méritos de Cristo, não apenas financia o Estado, mas constrói civilizações. Ele gera estilos arquitetônicos, cultura, leis e nobreza. Ele edifica a beleza e a memória. E, em troca, quem serviu com fé deve ser distinguido com títulos, preferências e honra — para que a justiça reine e a gratidão permaneça viva de geração em geração.

Referências Bibliográficas

ASSMANN, Jan. A mente egípcia: história e significado da religião faraônica. Petrópolis: Vozes, 2006.
PIEPER, Josef. Ócio e a vida intelectual. São Paulo: É Realizações, 2010.
BELLLOC, Hilaire; CHESTERTON, G. K. O Estado Servil. São Paulo: LVM, 2020.
SANTA BÍBLIA. Evangelhos de João (8,32) e Mateus (25,21).

Notas de Rodapé

¹ Cf. ASSMANN, Jan. A mente egípcia, p. 112-114.
² Cf. PIEPER, Josef. Ócio e a vida intelectual, p. 88.
³ Ibid.






O tributo sobre a renda como expressão de gratidão ao vassalo de Cristo: uma perspectiva jurídico-teológica

A doutrina jurídica que interpreta o tributo sobre a renda sob a ótica monárquica e cristã encontra fundamento histórico e teológico nas práticas tradicionais do Império Português. Um exemplo paradigmático dessa compreensão se dá quando observamos o patrocínio régio às atividades da Companhia de Jesus. A monarquia portuguesa remunerava os padres jesuítas para que evangelizassem e instruíssem os súditos na América Portuguesa, transmitindo-lhes as verdades fundamentais fundadas na conformidade com o Todo que vem de Deus.

Esse é o típico caso de uma autoridade que aperfeiçoava a liberdade de muitos nos méritos de Cristo. Tal ação pode ser comparada à figura do pai de família que remunera sua esposa, dona de casa, para cuidar dos filhos, ao invés de colocá-la a serviço de um patrão. A autoridade serve e santifica, em vez de dominar e explorar. Ela patrocina a liberdade e a elevação do povo.

É precisamente por conta de patrocínios dessa natureza — como a evangelização jesuítica ou o desenvolvimento de indústrias do luxo na França, que retiraram muitas pessoas da miséria na época de São Vicente de Paulo — que se faz justo pagar o imposto de renda. Esse tributo não deve ser visto como um confisco, mas como um ato de gratidão. Ele é o reconhecimento de que a autoridade cristã aperfeiçoa a liberdade de seus súditos ao investir em obras que glorificam a Deus e promovem o bem comum.

Nesse sentido, o imposto sobre a renda assume a natureza de um dízimo dirigido não a um mendigo ou necessitado, mas ao vassalo de Cristo. É como se disséssemos: “Senhor, recebei o meu tributo — não é uma esmola porque não sois mendigo, nem um auxílio porque não precisais dele. Esta oferta representa a minha gratidão, pois o que eu tenho eu recebi de vós, nos méritos de Cristo.”

A necessidade de pagar esse tributo pode nascer do costume, fundado a partir do reconhecimento de que o povo vê Cristo na figura do monarca. Após gerações e gerações praticando esse costume, a lei é criada de modo a proteger esse costume, pois a obrigação nasceu a partir do reconhecimento — da lei nascida na carne, não de uma imposição exterior arbitrária. Assim, o tributo se torna expressão concreta de uma aliança orgânica e espiritual entre o governante e os governados, tendo como mediador o próprio Cristo Rei.

Essa concepção confere ao tributo sobre a renda, no contexto de uma monarquia cristã, um caráter sacramental e não meramente fiscal. Trata-se de um ato jurídico fundado em relações reais, espirituais e históricas, que ultrapassa o positivismo jurídico moderno e se ancora no reconhecimento recíproco de dons, deveres e graças. O tributo torna-se, assim, uma das formas visíveis pelas quais se manifesta a política como arte de santificação no tempo, e não como técnica de dominação ou mera administração de interesses.

Referências

  • COSTA, João Paulo Oliveira e. D. João III. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

  • SARAIVA, José Hermano. História Concisa de Portugal. Lisboa: Europa-América, 1993.

  • ROCHA, Heleno Taveira Torres da. Tributação e Justiça Distributiva. São Paulo: Malheiros, 2001.

  • VICENTE DE PAULO, São. Escritos e Conferências. Tradução: Irmãs Vicentinas. Lisboa: Paulinas, 1985.

  • LEÃO XIII, Papa. Rerum Novarum. 1891.

Nota: Este artigo propõe uma reconstrução teórico-histórica e simbólica da função tributária no interior de uma monarquia cristã. Ele não se propõe a oferecer diretrizes práticas para a legislação atual, mas contribuir à reflexão sobre as raízes espirituais e jurídicas da tributação.

A legiimidade da tributação sobre a renda como gratidão à autoridade que aperfeiçoa a liberdade de muitos nos méritos de Cristo

Resumo

Este artigo propõe uma reinterpretação teológico-jurídica do imposto de renda como expressão legítima da gratidão dos cidadãos a uma autoridade política que, reconhecendo-se como vassala de Cristo, patrocina obras que aperfeiçoam a liberdade espiritual e material do povo. Partindo de exemplos históricos como o patrocínio régio à Companhia de Jesus na América Portuguesa e o financiamento das indústrias de luxo na França absolutista, demonstra-se que a tributação é justa quando deriva de uma autoridade ordenada ao bem comum segundo a ordem natural e divina. A perspectiva aqui adotada recupera os fundamentos tradicionais do direito natural, opostos ao modelo fiscal expropriatório e burocrático do Estado moderno, e propõe critérios teológicos e morais para a legitimidade do imposto sobre a renda.

Palavras-chave: imposto de renda; autoridade; direito natural; monarquia católica; liberdade; bem comum.

1. Introdução

Na tradição jurídica ocidental, especialmente sob a influência do pensamento cristão, o poder político não é autônomo, mas derivado da ordem natural estabelecida por Deus. A autoridade legítima é aquela que se reconhece vassala do verdadeiro Rei, o Cristo, e que exerce o poder temporal para servir à verdade e ao bem comum. A tributação, nesse contexto, não é mero instrumento de arrecadação, mas expressão concreta da justiça distributiva e da gratidão do povo a uma autoridade que, servindo a Deus, aperfeiçoa a liberdade dos súditos.

Este artigo busca demonstrar que o imposto de renda, especificamente, só é moral e juridicamente legítimo quando recolhido por uma autoridade que emprega os recursos públicos para elevar espiritualmente e civilizar moralmente o povo, como exemplificado no patrocínio da Monarquia Portuguesa às missões jesuíticas ou na política de incentivo às indústrias de luxo sob o reinado de Luís XIII e Luís XIV, contexto no qual atuou São Vicente de Paulo.

2. O fundamento natural e teológico da autoridade política

A autoridade política, segundo o ensinamento clássico da Igreja, não é invenção do contrato social, mas sim deriva da própria natureza social do homem, criada por Deus. São Paulo já ensinava que “não há autoridade que não venha de Deus” (Rm 13,1), e Santo Tomás de Aquino reafirma que a política é uma arte ordenada ao bem comum⁽¹⁾.

O Papa Leão XIII, na encíclica Diuturnum Illud, reafirma que:

“A autoridade, como a sociedade, tem sua origem na natureza, e é, por consequência, estabelecida por Deus.”⁽²⁾

Esse princípio implica que a legitimidade do tributo está condicionada à legitimidade da autoridade que o exige. O tributo é justo não por si mesmo, mas porque é recolhido por uma autoridade que realiza sua função natural e divina: proteger os bons, punir os maus e promover o bem comum em conformidade com a verdade.

3. A Monarquia Portuguesa e o patrocínio à evangelização como exemplo de autoridade legítima

Durante o período em que éramos parte de Portugal, a Monarquia Portuguesa financiou largamente as missões da Companhia de Jesus na América. Não se tratava apenas de uma política de domínio territorial, mas de uma missão espiritual civilizadora: formar almas para Cristo, estabelecer escolas, alfabetizar os indígenas, ensinar ofícios e organizar a vida comunitária segundo o Evangelho⁽³⁾.

Serafim Leite relata:

“O Padre, mestre e missionário, substituía a autoridade ausente e tornava-se, em muitos casos, o verdadeiro pai espiritual e civilizador do gentio. E para isso era sustentado pelo próprio rei.”⁽⁴⁾

Esse modelo confirma que a Coroa portuguesa exercia autoridade conforme o direito natural, pois subsidiava não o mero domínio político, mas a difusão da verdade e a formação moral dos súditos, que é o que verdadeiramente liberta (cf. Jo 8,32).

4. A indústria do luxo no tempo da Monarquia Francesa e a superação da miséria

Outro exemplo de autoridade que aperfeiçoa a liberdade nos méritos de Cristo encontra-se na França dos séculos XVII e XVIII, onde a monarquia absolutista investia no desenvolvimento das chamadas indústrias de luxo — tapeçarias, manufaturas, porcelanas, alta-costura — como forma de promover a economia e gerar trabalho para os mais pobres.

Nesse mesmo contexto, São Vicente de Paulo atuava em Paris e nas províncias, organizando instituições de caridade, hospitais, orfanatos, e conciliando a ação da Igreja com a política de promoção social indireta promovida pela Coroa⁽⁵⁾.

Portanto, quando o soberano utiliza os tributos para financiar obras que elevam moral e espiritualmente o povo, a cobrança do imposto de renda é justa, pois representa a participação do cidadão nos frutos de uma autoridade santificadora.

5. O tributo sobre a renda como sinal de gratidão à autoridade justa

Assim compreendido, o tributo sobre a renda não é mera prestação pecuniária compulsória ao Estado, mas expressão de justiça e gratidão para com aquele que, no exercício da autoridade, aperfeiçoa a liberdade dos governados por meio do patrocínio a instituições de ensino, arte, religião, e assistência.

Esse tributo se justifica nos méritos de Cristo, quando recolhido por uma autoridade que não busca a sua glória, mas a glória de Deus na santificação da sociedade. Tal autoridade não é tirânica nem burocrática, mas paternal e subsidiária, como ensina Pio XI:

“Não se pode tirar aos particulares e transferir para a comunidade o que eles podem realizar por sua própria iniciativa e com seus próprios meios.”⁽⁶⁾

6. O imposto de renda como dízimo à autoridade vassala de Cristo

O imposto de renda, quando recolhido por uma autoridade que se reconhece vassala de Cristo, assume natureza de dízimo: não se trata de caridade, nem de auxílio, mas de reconhecimento e justiça. Assim como os hebreus ofereciam o dízimo ao Templo em gratidão pelo Deus que os libertou do Egito, o cidadão cristão oferece parte de sua renda ao soberano que, nos méritos de Cristo, o livra da ignorância, da tirania e da miséria.

Essa concepção eleva o tributo a uma forma de ato ritual de gratidão ordenada, cujo significado pode ser expresso na seguinte fórmula:

“Senhor, recebei o meu tributo — não é uma esmola, porque não sois mendigo; nem um auxílio, porque não precisais dele. Esta oferta representa a minha gratidão, pois o que eu tenho eu recebi de vós, nos méritos de Cristo.”

É esse o verdadeiro espírito da tributação cristã: o tributo sobre a renda é o dízimo social da liberdade recebida por meio da autoridade justa, e sua legitimidade depende de estar a serviço da verdade e ordenado ao bem comum sobrenatural.

7. Conclusão

O tributo sobre a renda, na perspectiva cristã clássica, só é legítimo quando cobrado por uma autoridade que age como vassala de Cristo, buscando o bem espiritual e material de seus súditos. O patrocínio à educação religiosa, às artes, ao cuidado dos pobres e ao desenvolvimento de ofícios são expressões de um governo justo, e a resposta justa a esse governo é a gratidão expressa no tributo voluntário e moralmente devido.

Ao contrário da exação moderna, fundada na soberania autônoma do Estado, o modelo tradicional nos ensina que a liberdade dos cidadãos cresce na medida em que a autoridade se ordena ao Todo que vem de Deus. Esse é o verdadeiro fundamento jurídico e moral do tributo sobre a renda.

Referências Bibliográficas

  1. TOMÁS DE AQUINO, Santo. Suma Teológica. Trad. Alexandre Corrêa. São Paulo: Loyola, 2001, I-II, q. 90-97.

  2. LEÃO XIII. Diuturnum Illud, 1881. In: Cartas Encíclicas. Petrópolis: Vozes, 2003.

  3. MARITAIN, Jacques. O Homem e o Estado. São Paulo: É Realizações, 2005.

  4. LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: Livraria Portugália, 1938, v. I, p. 203.

  5. BERDIAEFF, Nicolas. A Idade Moderna e o Destino do Homem. São Paulo: Paulus, 2000.

  6. PIO XI. Quadragesimo Anno, 1931. Disponível em: https://www.vatican.va

  7. BENTO XVI. Caritas in Veritate. Vaticano, 2009.

  8. BENTO XVI. Jesus de Nazaré: Do Batismo no Jordão à Transfiguração. São Paulo: Planeta, 2007.

Tributação Territorialista e Imposto de Renda no Império Português: justiça, liberdade e serviço a Cristo em terras distantes

1. Introdução

O Império Português, diferentemente das potências coloniais modernas, fundou sua expansão em um regime de povoação municipalista, marcado por uma capilaridade política assentada nas câmaras locais e pela aliança entre a Coroa e os súditos em cada território. A relação entre o Rei e seus vassalos não era genérica ou centralizada, mas orgânica, pessoal e fundada na justiça. Nesse contexto, a tributação seguia o princípio do territorialismo, segundo o qual cada terra contribuía conforme sua realidade, através de pactos locais ajustados ao bem comum e à glória de Deus.

Entretanto, essa estrutura descentralizada e personalizada não exclui a possibilidade de um imposto de renda. Pelo contrário: dentro do espírito cristão da monarquia portuguesa, um tributo sobre a renda pessoal poderia ser perfeitamente concebido como uma prestação voluntária e justa ao soberano, caso existisse tal instrumento fiscal no tempo histórico.

2. O Regime de Povoação Municipalista

A expansão portuguesa na América, África, Ásia e Oceania foi marcada pela fundação de núcleos urbanos dotados de câmaras municipais que, desde cedo, gozaram de grande autonomia administrativa e judicial. Como destaca Vitorino Magalhães Godinho, "a administração ultramarina portuguesa baseava-se mais na autoridade local das câmaras do que numa presença efetiva e constante da metrópole"¹.

Essas câmaras representavam o povo local e atuavam em consonância com a autoridade régia, gerando um modelo de pacto federativo orgânico, muito distinto do centralismo ilustrado das potências posteriores. O Rei era visto como pai da pátria, guardião da justiça e promotor da unidade moral do império. A monarquia portuguesa, especialmente após a revolução de Avis e o milagre de Ourique, consolidou-se como um projeto espiritual: um povo eleito, conduzido por um Rei eleito, a serviço de Cristo.

3. Tributação Territorialista: um império de pactos

A estrutura fiscal portuguesa nos territórios ultramarinos era, majoritariamente, territorialista. Os tributos variavam segundo a natureza econômica da terra e eram resultado de concessões régias, contratos, forais e compromissos locais. Como explica Diogo Ramada Curto:

"A arrecadação de impostos no império português estava longe de obedecer a um modelo centralizado; antes, configurava-se como um conjunto de arranjos locais mediados por agentes régios e pelas câmaras municipais"².

Isso significa que a justiça tributária era adaptada à realidade local, favorecendo a prosperidade da terra e permitindo que a liberdade do povo se aperfeiçoasse na ordem cristã. Não havia espaço para a espoliação ou o nivelamento: cada qual contribuía conforme podia, como os membros de um corpo que servem à cabeça.

4. O Imposto de Renda como possibilidade histórica

Embora o imposto de renda não existisse como figura tributária no período colonial português, nada impede, em termos de estrutura política e teológica, que esse tipo de tributo fosse implementado dentro da lógica monárquica e territorialista. Ao contrário dos modelos modernos, em que o imposto de renda é instrumento de engenharia social e redistributiva centralizada, no império português tal tributo seria expressão de gratidão e responsabilidade pessoal perante o soberano, nos méritos de Cristo, e com vistas ao bem comum local.

A relação entre o vassalo e o Rei não era puramente jurídica, mas sacramental e cristológica: o Rei, imagem de Cristo, recebia a oblação voluntária do povo como expressão de ordem, fidelidade e justiça. O imposto de renda, nesse espírito, poderia existir como uma prestação de contas espiritualizada, prestada àquele que exerce o poder para proteger, não para espoliar.

5. O Caso da Câmara de São Paulo de Piratininga

Tomemos como exemplo a câmara republicana de São Paulo de Piratininga. Sendo uma terra de difícil acesso, com economia inicialmente pobre e baseada na agricultura de subsistência e na caça, qualquer pacto tributário deveria ser cuidadosamente ajustado à sua realidade. Mas, com o passar do tempo, à medida que a terra prosperasse e os vassalos servissem a Cristo através do trabalho e da justiça, nada impediria que um imposto sobre a renda – entendido como fruto legítimo da atividade ordenada – fosse pactuado com o Rei.

Esse imposto seria:

  • Personalizado;

  • Proporcional à capacidade do território;

  • Instrumento de gratidão e não de punição;

  • Regido por acordos livres e não por decretos unilaterais.

6. Conclusão: tributar nos méritos de Cristo

O Império Português, enraizado na tradição católica, mostrou que é possível governar vastos territórios sem ceder ao centralismo revolucionário ou ao totalitarismo fiscal. O municipalismo cristão e o territorialismo fiscal não impedem a existência de um imposto sobre a renda, desde que este se subordine à ordem moral, à justiça concreta e ao serviço de Cristo.

Um imposto de renda assim concebido não seria um mecanismo de dominação, mas uma forma de aperfeiçoar a liberdade de muitos nos méritos de Cristo, a ponto de a autoridade monárquica servir a Cristo em terras distantes, por meio da força de sua justiça e de seu exemplo.

Notas de rodapé

  1. GODINHO, Vitorino Magalhães. Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa. Lisboa: Arcádia, 1968, p. 197.

  2. CURTO, Diogo Ramada. A circulação das elites no império português. In: SCHAUB, Jean-Frédéric; CURTO, Diogo Ramada (Org.). O Antigo Regime nos Trópicos. Lisboa: ICS, 2001, p. 35.

Referências Bibliográficas

CURTO, Diogo Ramada. A circulação das elites no império português. In: SCHAUB, Jean-Frédéric; CURTO, Diogo Ramada (Org.). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Lisboa: Instituto de Ciências Sociais, 2001.

GODINHO, Vitorino Magalhães. Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa. Lisboa: Arcádia, 1968.

MATTOSO, José. Identificação de um país: ensaio sobre as origens de Portugal (1096–1325). Lisboa: Estampa, 1985.

VIEIRA, Padre António. Sermões. Lisboa: Círculo de Leitores, 2002.

SUÁREZ, Francisco. De Legibus ac Deo Legislatore. Madrid: BAC, 1965.