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terça-feira, 15 de julho de 2025

O Detaxe e O Soldado-Cidadão: como a inteligência fiscal no exílio se torna ato de resistência

Em tempos de governos que se tornam cada vez mais hostis ao cidadão comum — especialmente no Brasil, onde o Poder Judiciário, longe de limitar o poder estatal, muitas vezes o amplia de forma arbitrária — o exílio voluntário, ou mesmo parcial, emerge como uma forma legítima de resistência. Nesse contexto, o conhecimento técnico sobre elisão fiscal e as leis de imigração se combina com a prática do empreendedorismo moralmente orientado, formando aquilo que denominei em meu Enunciado 05 como o perfil do soldado-cidadão¹.

Dentro dessa lógica, um instrumento aparentemente banal — o sistema de detaxe europeu — adquire grande relevância como parte de uma pedagogia prática da liberdade. Longe de ser apenas um mecanismo de reembolso de impostos para turistas, o detaxe se torna um símbolo e uma ferramenta de luta contra a tirania fiscal exercida por Estados que perderam qualquer conexão com a justiça natural.

1. O que é o detaxe e por que ele importa

O detaxe é um mecanismo que permite ao visitante não residente na União Europeia recuperar o valor do IVA (Imposto sobre o Valor Agregado) pago em compras feitas no território europeu, desde que ele leve os produtos consigo ao sair da região². A prática está amparada por diretrizes europeias e visa incentivar o consumo de turistas estrangeiros, funcionando também como uma forma de "não tributação" da exportação informal.

Contudo, para ter direito a esse benefício, o viajante precisa obedecer a uma série de exigências legais: prazo de permanência, comprovação de residência fora da UE, documentos fiscais válidos, e registro de saída da mercadoria. Isso não só exige conhecimento técnico, mas também disciplina e inteligência moral.

2. O detaxe como instrumento de elisão fiscal legítima

Na prática, o detaxe é um ato de elisão fiscal, ou seja, uma forma de reduzir a carga tributária sem violar a lei³. Enquanto a evasão é crime, a elisão é um direito. O turista que compreende o funcionamento do sistema e o utiliza corretamente age dentro da lógica do cidadão consciente que não se submete a imposições tributárias injustas, sobretudo quando sabe que o valor do imposto não retornará a ele em forma de bens públicos verdadeiros, mas sim em privilégios de castas burocráticas e decisões judiciais destrutivas⁴.

Essa postura é, portanto, um exercício de soberania moral sobre o próprio consumo. O cidadão cristão que compreende isso percebe que o dinheiro poupado por meio da elisão pode ser reinvestido no próprio aperfeiçoamento, no cuidado da família, no suporte a obras de caridade, ou mesmo em novas estratégias de resistência cultural. 

3. A economia missionária e o emigrante como soldado-cidadão

Quem estuda as regras de imigração, observa os tratados fiscais entre países, domina o vocabulário técnico do sistema de reembolsos e se posiciona com inteligência nos circuitos internacionais não é um fujão: é um combatente moral.

O emigrante que se desloca por amor à liberdade e ao conhecimento, e que escolhe terras onde possa servir melhor a Cristo, é uma figura que se coloca na linha de frente da guerra cultural e espiritual de nosso tempo. Ele vive na fronteira, como nos tempos da Reconquista⁵. Sua espada, hoje, é feita de estudo jurídico, inteligência fiscal e prudência cristã.

Ao aplicar corretamente o detaxe:

  • Ele enfraquece os sistemas estatais injustos por meio da retirada de recursos voluntária e legal;

  • Educa a si mesmo e aos seus descendentes na arte da prudência, da ordem e da temperança;

  • Forma uma reserva estratégica de capital intelectual e econômico, capaz de ser empregada futuramente em prol da reconstrução do que foi destruído.

4. Detaxe: um exame de consciência fiscal

O processo de obtenção do reembolso do IVA forma o cidadão para além da economia:

  • Exige ordem (guardar notas fiscais, seguir prazos),

  • Exige humildade (pedir ajuda quando necessário, aprender com sistemas estrangeiros),

  • Exige temperança (consumir com sabedoria),

  • Exige esperança (agir corretamente mesmo quando ninguém está olhando),

  • E exige fé na verdade da lei natural: de que Deus honra quem honra as regras justas, mesmo em terra alheia⁶.

Nesse sentido, o detaxe não é apenas uma devolução de imposto: é uma declaração pública de autonomia moral diante de um Estado que perdeu sua legitimidade espiritual.

5. Conclusão: o soldado da liberdade é também um bom contador

Ao aplicar o detaxe com inteligência, o emigrante se revela como homem livre em Cristo, que toma a si a responsabilidade de multiplicar os talentos dados por Deus — mesmo em terra estrangeira. Cada centavo devolvido pelo Estado é símbolo da restituição do que é justo, e cada estratégia bem-sucedida é um pequeno milagre de Ourique em solo fiscal hostil⁷.

O soldado-cidadão não se rende, não foge, mas também não se deixa capturar. Ele se move com inteligência, honra e propósito — de vitória em vitória, até que Cristo seja tudo em todos.

Notas

  1. DETTMANN, José Octavio. Enunciado 05: A combinação de empreendedorismo, elisão fiscal e conhecimento das leis de imigração fazem do emigrante um soldado-cidadão nesta guerra que travamos contra a tirania do Poder Judiciário (2024).

  2. EUROPEAN COMMISSION. VAT Refunds for Travellers. Brussels: Taxation and Customs Union. Disponível em: https://taxation-customs.ec.europa.eu. Acesso em: 15 jul. 2025.

  3. CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2021.

  4. GURGEL, Rodrigo. A Corrupção da Inteligência: Intelectuais e Poder no Brasil. São Paulo: Record, 2018.

  5. FREITAS, Gustavo Corção de. O Século do Nada. 4. ed. Rio de Janeiro: Agir, 2002.

  6. PIEPER, Josef. As Virtudes Fundamentais. Trad. Luiz João Baraúna. São Paulo: Quadrante, 1996.

  7. GUERRA, Cláudio. Memórias de uma Guerra Suja. São Paulo: Topbooks, 2012. (Em sentido figurado: a expressão "guerra suja" aqui se refere à guerra fiscal dissimulada contra o cidadão comum). 

Referências

CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2021.

DETTMANN, José Octavio. Enunciado 05: A combinação de empreendedorismo, elisão fiscal e conhecimento das leis de imigração fazem do emigrante um soldado-cidadão nesta guerra que travamos contra a tirania do Poder Judiciário. 2024.

EUROPEAN COMMISSION. VAT Refunds for Travellers. Brussels: Taxation and Customs Union. Disponível em: https://taxation-customs.ec.europa.eu. Acesso em: 15 jul. 2025.

FREITAS, Gustavo Corção de. O Século do Nada. 4. ed. Rio de Janeiro: Agir, 2002.

GUERRA, Cláudio. Memórias de uma Guerra Suja. São Paulo: Topbooks, 2012.

GURGEL, Rodrigo. A Corrupção da Inteligência: Intelectuais e Poder no Brasil. São Paulo: Record, 2018.

PIEPER, Josef. As Virtudes Fundamentais. Trad. Luiz João Baraúna. São Paulo: Quadrante, 1996.

Preferência Temporal, Liberdade e Virtude: a economia das pequenas decisões

No cotidiano, escolhas aparentemente banais carregam dentro de si o embrião de grandes princípios. A forma como decidimos gastar ou esperar, consumir ou investir, pode ser o retrato fiel de nossa hierarquia de valores — uma janela para a alma que se revela na administração dos recursos e do tempo.

Durante o Prime Day da Amazon Brasil, essa dinâmica tornou-se clara em um episódio doméstico: minha mãe comprou café fora da campanha promocional, guiada pela necessidade presente; eu, por outro lado, esperei e utilizei a mesma plataforma para adquirir livros, maximizando recompensas futuras por meio da Livelo, recebendo quatro pontos por real e abrindo caminho para novos investimentos e ganhos.

A diferença entre nós não foi apenas de comportamento, mas de princípio econômico fundamental: a preferência temporal.

A Alta e a Baixa Preferência Temporal

No campo da teoria econômica — especialmente na tradição da Escola Austríaca — a preferência temporal diz respeito ao grau em que um indivíduo valoriza o consumo presente em relação ao consumo futuro. Quanto maior a preferência temporal, maior a tendência de consumir agora, ainda que isso implique menor retorno. Quanto menor a preferência temporal, maior a disposição para adiar o consumo em troca de maiores benefícios mais adiante.

Minha mãe, pautando-se pela necessidade, fez uma escolha perfeitamente compreensível: escolheu o bem do presente — o café —, sem aguardar a oportunidade de pontuar. Eu, por outro lado, recusei o bem do presente em favor de bens futuros, não apenas os livros, mas os pontos que eles me renderiam e o que esses pontos poderiam se tornar: cashback, milhas, reinvestimento, liberdade.

A Liberdade como Recompensa do Espírito que Espera

Aqui não se trata de comparar decisões no plano material, mas de observar a estrutura moral que subjaz a elas. A decisão de postergar o consumo, quando bem orientada, é um exercício de liberdade interior. Trata-se de dizer "não" à urgência do momento para dizer "sim" a um plano mais elevado. Essa disciplina, essa ordem voluntária imposta ao próprio desejo, é uma forma de virtude prática, que os antigos chamariam de prudência.

A liberdade, portanto, não se mede apenas pela ausência de restrições externas, mas pela capacidade de governar os próprios impulsos com sabedoria. Quando preferi esperar o momento certo para fazer a compra e, com isso, garantir pontos que poderão se transformar em um capital maior, eu pratiquei mais do que inteligência financeira: pratiquei domínio de mim mesmo.

A Economia como Via de Santificação

Essa economia da paciência e do planejamento também tem valor espiritual. O próprio Cristo, em Suas parábolas, elogia o servo fiel que investe e multiplica os talentos (Mt 25,14-30), e censura o que enterra o dom recebido por medo ou preguiça. A espera prudente, o esforço de aplicar bem os bens que Deus nos confia, é expressão de um coração disposto a servir ao Senhor com fidelidade.

Dessa forma, preferir os bens futuros aos presentes é um ato de fé: um testemunho de que o tempo está a nosso favor quando ele é consagrado à verdade e à ordem.

Conclusão

A diferença entre gastar por necessidade e investir por visão pode parecer pequena, mas é nela que se revela o espírito que orienta a vida. A disciplina financeira, quando bem compreendida, não é apenas uma técnica para acumular bens, mas um caminho para o aperfeiçoamento interior, para o exercício da liberdade e para a santificação do tempo.

Enquanto muitos correm atrás das recompensas do agora, quem sabe esperar colhe não só o fruto mais doce, mas também se torna mais livre.

O Centrão e A Classe Senatorial Romana: estabilidade pela adesão

Resumo

Este artigo busca traçar um paralelo entre o chamado centrão da política brasileira contemporânea e a antiga classe senatorial romana. Embora separados por mais de dois milênios, ambos os grupos compartilham traços notáveis no que diz respeito à sua relação com o poder, o pragmatismo político e a manutenção de uma ordem estável, ainda que à custa de princípios ideológicos. A análise será feita à luz da história política romana, da teoria das elites e da realidade institucional brasileira.

1. Introdução

Na política brasileira, o termo centrão refere-se a um conjunto informal de partidos e parlamentares com perfil fisiológico, que se destacam pela sua capacidade de influenciar o Executivo por meio de negociações pragmáticas e adesismo sistemático. Essa prática política, por vezes criticada como oportunista, pode ser melhor compreendida se for observada sob uma lente histórica.

Neste artigo, propomos uma comparação com a classe senatorial da Roma Antiga, especialmente no período da transição da República para o Império, momento em que o Senado também se destacou por seu pragmatismo, sua resistência a reformas e sua busca pela sobrevivência política, mesmo diante da centralização do poder nas mãos dos imperadores.

2. O Centrão: entre o fisiologismo e a governabilidade

O centrão surgiu como força política na redemocratização, mas consolidou-se a partir da Constituição de 1988. Sua lógica interna não é ideológica, mas pragmática: prioriza o acesso a cargos, controle de emendas e distribuição de recursos orçamentários.

"Centrão é a biruta da política brasileira", como bem expressa o senso comum, pois acompanha o vento mais favorável no Executivo — seja ele de esquerda ou de direita.

Esse comportamento adesista serve, paradoxalmente, como estabilizador do sistema, evitando crises institucionais agudas, mas também perpetuando a lógica do toma-lá-dá-cá, o que dificulta reformas estruturais.

Segundo Maria Hermínia Tavares de Almeida (2005), o presidencialismo de coalizão no Brasil só funciona com a cooptação de partidos sem identidade programática clara, cuja lealdade depende da barganha constante com o Executivo¹.

3. O Senado romano: elite pragmática e conservadora

Na Roma Antiga, o Senado era o principal órgão de deliberação da República. Composto inicialmente apenas por patrícios, e mais tarde também por plebeus ricos, o Senado exercia funções políticas, religiosas, jurídicas e administrativas. Seu poder, entretanto, foi gradualmente sendo corroído pela ascensão dos imperadores, sobretudo a partir de Júlio César e, definitivamente, com Augusto.

Apesar disso, o Senado não desapareceu. Ao contrário, adaptou-se ao novo regime, mantendo prerrogativas simbólicas e funções práticas na administração do Império. Muitos senadores preferiram aderir ao novo modelo do que enfrentá-lo, preservando sua influência pessoal e o status quo aristocrático.

Segundo Fergus Millar (2002), o Senado romano, embora eclipsado pelo poder imperial, continuou sendo um fórum central para a elite romana, operando como um espaço de negociação entre a aristocracia e o imperador².

 4. Semelhanças entre Centrão e Senado Romano

Critério Centrão Brasileiro Senado Romano
Pragmatismo político Adesismo ao governo vigente Alinhamento com o imperador
Base de poder Emendas, cargos e clientelismo Terras, clientelas e tradição
Função estabilizadora Evita rupturas e crises Contenção de conflitos entre elite e César
Resistência à mudança estrutural Boicote a reformas que afetem seu poder Conservadorismo aristocrático
Sobrevivência pelo poder de barganha Apoia o governo em troca de benefícios Apoia o imperador para manter privilégios

Ambos representam uma classe dirigente com baixa vocação reformadora, mas com alta capacidade de adaptação.

5. Diferenças estruturais relevantes

Apesar das semelhanças funcionais, há diferenças relevantes:

  • O Senado era uma instituição formal e centenária; o centrão é uma aliança informal e fluida.

  • A elite senatorial romana era hereditária e socialmente distinta; o centrão é transversal a partidos e origens.

  • O Senado, ao menos em teoria, competia com o Executivo; o centrão vive da simbiose com o Executivo.

Como observa Norberto Bobbio (2000), a diferença entre a aristocracia clássica e os grupos de pressão modernos reside na formalização da autoridade. O centrão é um grupo de pressão fluido, não uma aristocracia institucionalizada³.

6. Conclusão

A comparação entre o centrão e o Senado romano ilumina a persistência de estruturas políticas intermediárias que operam com base no pragmatismo e no conservadorismo, mesmo em regimes formalmente distintos. Embora o centrão não tenha o prestígio simbólico do Senado romano, exerce função análoga: manter a máquina funcionando, mesmo ao custo de inércia institucional.

Ambos são birutas — não por fraqueza, mas por cálculo: giram ao sabor dos ventos, mas sempre aterrissam onde está o poder.

Referências

  1. ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de. A cabeça do poder: Presidencialismo, coalizão partidária e sistema de governo no Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2005.

  2. MILLAR, Fergus. The Emperor in the Roman World (31 BC–AD 337). Ithaca: Cornell University Press, 2002.

  3. BOBBIO, Norberto. Teoria das formas de governo. Brasília: UnB, 2000.

Notas de rodapé

  1. ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de. A cabeça do poder: Presidencialismo, coalizão partidária e sistema de governo no Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2005, p. 97-103.

  2. MILLAR, Fergus. The Emperor in the Roman World (31 BC–AD 337). Ithaca: Cornell University Press, 2002, p. 18-22.

  3. BOBBIO, Norberto. Teoria das formas de governo. Brasília: UnB, 2000, p. 134.

domingo, 13 de julho de 2025

A cultura da influência e o dom da direção: economia da salvação na simulação da vida

I. Introdução: Entre o simulacro e o sagrado

A série The Sims é, à sua maneira, uma pedagogia da vida. Por trás de sua estética lúdica e suas mecânicas de simulação, esconde-se um laboratório ético, onde liberdade, dom, reciprocidade e trabalho são continuamente postos à prova. O que parecia mero entretenimento revela-se, para os atentos, um simulacro da economia da salvação — não como substituto da vida real, mas como reflexo simbólico da vida que se vive à luz de Cristo.

Neste artigo, trato de dois momentos emblemáticos:

  1. O sistema de influência e gratidão de The Sims 2: Universidade.

  2. A experiência simbólica de ensinar carpintaria em The Sims 4, que culmina no dom de um violão feito à mão.

Ambos os casos se articulam numa mesma lógica espiritual: a transmissão da liberdade por meio da verdade, a formação de discípulos, e a capitalização moral dos dons, como expressão concreta da economia da salvação.

II. A influência no The Sims 2: formar é redimir

No The Sims 2: Vida Universitária, o sistema de influência permite que um Sim com certo domínio em uma área ensine ou induza outro a agir. Quando esse outro, por sua vez, transmite aquilo que recebeu, entra-se num ciclo de formação e missão. Nesse gesto, o Sim mais capacitado se torna diretor do trabalho do outro — não por tirania, mas por autoridade de mérito, como um mestre espiritual.

Esse sistema antecipa pedagogicamente a ideia de discipulado cristão: aquele que recebeu a verdade não a enterra, mas a multiplica. E o mestre — que forma um protegido — recebe reconhecimento simbólico por meio de recompensas materiais (móveis, computadores, obras de arte) entregues com gratidão. Não há troca comercial, mas sim retribuição moral. É o dom que volta como dom, o bem que se multiplica.

III. O dom no The Sims 4: gratidão encarnada

No The Sims 4, vivi um episódio com meu Sim morando na região da Isolação da Corrente, em Willow Creek, onde, por meio da habilidade de mecânica, ele fabricava móveis e esculturas a partir de material reciclado, especialmente durante eventos da expansão "Chamado à Natureza".

Durante uma tempestade de verão, sua namorada — Summer Holiday — buscou abrigo em sua casa, que, por decisão de confiança, estava aberta para ela. Como não gostava de cozinhar, mas prometera ser sua aprendiz, ele resolveu ensinar-lhe carpintaria. Dias depois, num gesto de retribuição tocante, ela bateu à sua porta e lhe entregou um violão feito com as próprias mãos.

Esse gesto, à primeira vista pequeno, revela-se profundamente cristocêntrico: Summer transforma o saber recebido num presente cultural, que não apenas agradece, mas potencializa a missão do Sim que a ensinou. O violão torna-se instrumento de trabalho, meio de empreendedorismo, arte e partilha — símbolo de que o amor, quando verdadeiro, se converte em bem comum.

IV. A lógica do dom e a capitalização moral

Ambas as situações — a influência no The Sims 2 e o presente no The Sims 4 — compartilham uma estrutura espiritual comum:

  • Um saber é transmitido.

  • Um aprendiz o acolhe com fidelidade.

  • A resposta é criativa, frutífera e voltada à comunidade.

  • O mestre é honrado com reconhecimento.

Essa lógica é a mesma da economia da salvação, onde Cristo, ao transmitir a graça, forma discípulos para que a transmitam, não por obrigação, mas por amor e fidelidade. O termo técnico para isso é capitalização moral: os dons recebidos se convertem em novos dons, os protegidos se tornam mestres, e a cadeia de bem se expande, formando uma cultura da missão.

No universo polonês, essa lógica aparece na tensão entre ubogi (pobre) e bogaty (rico): o bogaty, ao ensinar e elevar o ubogi, torna-se responsável por uma missão. E quando o ubogi retorna com gratidão e virtude, o bogaty é exaltado — não por status, mas por fidelidade à verdade. É por isso que, nos méritos de Cristo, a transmissão de um saber se torna obra redentora.

V. A verdade como fundamento da liberdade

Cristo ensinou: "Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará" (Jo 8,32). A liberdade que se manifesta nos jogos, quando bem dirigida, é sempre fundada na verdade. O Sim que ensina o que realmente sabe, e a aprendiz que responde com gratidão verdadeira, vivem a liberdade como resposta ao dom recebido.

O violão feito por Summer é um ícone disso: uma liberdade frutífera, nascida da verdade aprendida, e voltada ao serviço. Em San Myshuno, o Sim tocará esse violão diante dos transeuntes — e cada nota será uma semente de cultura fundada em caridade, dom e sacralidade do cotidiano.

VI. Conclusão: simulação e missão

Quando jogamos The Sims com consciência simbólica, ele deixa de ser apenas simulação e se torna formação imaginativa da missão cristã.

O sistema de influência, a cultura do presente, a transmissão do saber e os vínculos de direção e gratidão refletem, em escala simbólica, a estrutura da Igreja, a lógica da graça e a missão dos santos.

Que possamos, então, ser diretores de trabalhos que não nos pertencem, formar protegidos que nos superem, e receber, às vezes em silêncio, o dom que só pode vir das mãos de quem aprendeu a amar — nos méritos do verdadeiro Deus e verdadeiro Homem.

Bibliografia

  1. Catecismo da Igreja Católica.
    §1076–1209 — Sobre a economia sacramental da salvação. A pedagogia de Deus passa por sinais, dons e relações.

  2. João Paulo II. Laborem Exercens (1981).
    O trabalho como participação na criação. Ensinar uma habilidade é um ato de redenção.

  3. Bento XVI. Caritas in Veritate (2009).
    A verdade é o fundamento da liberdade. Sem verdade, o dom se dissolve no sentimentalismo.

  4. São Tomás de Aquino. Suma Teológica, II-II, q. 183 — Sobre a direção espiritual.
    O mestre espiritual é um formador, não um dominador. A influência verdadeira é caridosa.

  5. Jean-Luc Marion. Étant donné (1997).
    O dom como fenômeno: excedente, graça, transbordamento. O presente de Summer é um dom pleno.

  6. Josiah Royce. The Philosophy of Loyalty (1908).
    A lealdade como eixo da ação moral comunitária. O protegido é leal ao mestre ensinando o que recebeu.

  7. Olavo de Carvalho. O Jardim das Aflições (2000).
    A missão civilizacional depende da ordem espiritual. A cultura do dom é antídoto contra o niilismo.

  8. Maxis. The Sims 2: University (2005) e The Sims 4: Green & Eco Lifestyle (2020–2025).
    Fontes simbólicas de cultura e moralidade aplicada ao cotidiano digital, com alto potencial pedagógico.

Um conto cristocêntrico sobre a economia do dom

I. Introdução: uma narrativa ordinária sob a luz do extraordinário

No universo simulado de The Sims 4, onde cada escolha modela destinos, vivi recentemente uma experiência que, à primeira vista, pareceria simples: um Sim com elevada habilidade em mecânica ensina sua namorada a esculpir, e, em gratidão, ela lhe presenteia com um violão feito por suas próprias mãos. Contudo, quando lida à luz da tradição cristã, essa experiência revela-se como uma rica alegoria da economia da salvação.

Esse artigo pretende demonstrar como um gesto de amor fundado na reciprocidade e na formação pode ser entendido como ato soteriológico — ou seja, inserido na dinâmica concreta da salvação que passa pelo corpo, pelo trabalho, pela cultura e pelo dom.

II. O princípio da economia da salvação

A expressão “economia da salvação” refere-se, na teologia cristã, ao modo como Deus dispôs todas as coisas para conduzir a humanidade à salvação através de uma economia — oikonomia, em grego —, ou seja, uma administração sábia, gradual e encarnada da graça ao longo do tempo.

Nessa economia divina, tudo que é verdadeiro, belo e bom pode tornar-se instrumento de salvação — inclusive um violão feito artesanalmente, dentro da realidade de um jogo eletrônico, quando tal gesto for expressão de amor gratuito, de retribuição virtuosa e de desejo de elevar o outro.

III. A pedagogia da liberdade no dom

Ao ensinar carpintaria à sua companheira, o Sim realiza um ato de serviço pedagógico, transmitindo uma habilidade concreta que amplia a liberdade da outra. Isso é mais do que ensinar: é libertar. E essa libertação não é egoísta, mas generativa: ela dá origem a um dom (o violão) que, por sua vez, se tornará meio de sustento, cultura e missão pública.

Aqui vemos uma dinâmica de graça que gera graça: o dom recebido (o ensino) é devolvido, não na mesma moeda, mas transfigurado — o que nos lembra que a gratidão, quando cristã, é criativa, não repetitiva. Tal como o Cristo que, recebendo do Pai, nos entrega sua vida, também o discípulo cristão, ao receber, entrega-se com liberdade.

Esse é o ciclo da economia da salvação: tudo começa na graça, é acolhido com liberdade e volta como dom, agora enriquecido, à comunidade e ao próprio Deus.

IV. Ubogi e bogaty: o intercâmbio que santifica

A tradição polonesa expressa bem essa tensão frutuosa entre o pobre (ubogi) e o rico (bogaty). O bogaty é rico não apenas de bens, mas de estrutura, de saber, de ordem. O ubogi, por sua vez, é carente, sim, mas também chamado à elevação por meio de uma relação justa com o dom que recebe.

Na narrativa que vivi, o Sim é o bogaty — tem conhecimento, espaço, estrutura. A namorada é uboga — recebe dele não esmola, mas ensinamento e abrigo. E o que faz ela? Ao invés de se manter passiva, retribui criando um instrumento que devolverá ao bogaty a possibilidade de servir ainda mais ubogis através da cultura.

Isso é capitalização moral: o dom recebido se converte em instrumento que promove o bem comum. O violão, nesse contexto, torna-se símbolo de um empreendedorismo cristão, onde o capital não é acúmulo ganancioso, mas serviço organizado e frutífero.

V. A verdade como fundamento da liberdade

A liberdade que aqui se manifesta — tanto na partilha do conhecimento quanto na criação do instrumento — está fundada na verdade, e não na arbitrariedade ou na autossuficiência. O ensino do Sim é verdadeiro, porque nasce do que ele realmente sabe. O gesto da namorada é verdadeiro, porque brota do reconhecimento justo do dom recebido.

Cristo afirmou: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8,32). Esta narrativa confirma esse princípio: quando a verdade é transmitida com amor, ela gera liberdade; e quando a liberdade é exercida com gratidão, ela gera cultura e serviço.

A verdade aqui não é só um conjunto de dados, mas um modo de vida fundado no mérito do verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, aquele que santifica os gestos do cotidiano e os transforma em degraus para o Céu.

VI. Conclusão: o violão como ícone do Reino

Na economia da salvação, nada é perdido. Tudo pode ser aproveitado se for ofertado com o coração puro e orientado para o bem comum. Um violão feito artesanalmente numa oficina simples, após uma tempestade, pode tornar-se símbolo de algo muito maior: o Reino de Deus que se constrói nas pequenas fidelidades, nos talentos partilhados, nas mãos que amam e trabalham.

Que cada um de nós possa ser, à sua maneira, um artesão de instrumentos que libertam — no corpo, no saber, na cultura, na graça. Pois no final, é o próprio Cristo quem transforma cada gesto verdadeiro em parte de Sua economia redentora.

Bibliografia Comentada

1. Catecismo da Igreja Católica.
§1076–1209 (Parte II: A celebração do mistério cristão)

Fundamenta a noção de economia sacramental da salvação, ou seja, como Deus dispôs os sinais sensíveis (e os gestos concretos da vida humana) como vias eficazes de graça. A experiência do violão e da carpintaria se insere, por analogia, nesse mesmo esquema.

2. João Paulo II. Laborem Exercens. Carta Encíclica sobre o trabalho humano (1981).

O trabalho é participação na obra criadora de Deus. O gesto de ensinar carpintaria e o gesto de esculpir um violão são expressão concreta do trabalho como vocação e dom, fundamento da dignidade humana.

3. Bento XVI. Caritas in Veritate. Encíclica sobre o desenvolvimento humano integral (2009).

“Sem verdade, a caridade desliza para o sentimentalismo” (n. 3). Aqui se reforça a tese de que a verdade é o fundamento da liberdade — a base para qualquer relação moral autêntica e duradoura.

4. Jean-Luc Marion. Étant donné: Essai d'une phénoménologie de la donation. Paris: PUF, 1997.

A fenomenologia do dom como horizonte de sentido: todo dom verdadeiro excede a lógica da troca e insere o sujeito numa economia da gratuidade que transforma. O violão dado por amor é símbolo claro desse excesso.

5. Josiah Royce. The Philosophy of Loyalty. New York: Macmillan, 1908.

A lealdade como princípio ético e social que articula indivíduo e comunidade. O gesto de ensinar e retribuir está inserido em uma cadeia de fidelidades mútuas — não como dever legal, mas como vocação interior.

6. Olavo de Carvalho. O Jardim das Aflições. Rio de Janeiro: Record, 2000.

Ao tratar da decadência da cultura ocidental e da necessidade de restauração de valores superiores, a obra sugere a retomada do Logos e da ordem espiritual como base para qualquer civilização, inclusive na esfera econômica.

7. São Tomás de Aquino. Suma Teológica, I-II, q. 110 (Sobre a Graça).

Discute-se o dom da graça como algo que eleva e aperfeiçoa a natureza. Ao ensinar, o Sim participa dessa graça elevadora, que torna o outro mais plenamente livre e apto para o bem.

quinta-feira, 10 de julho de 2025

E se o automóvel nunca tivesse vencido? Uma releitura contrafactual da urbanidade moderna

Resumo

Este artigo propõe uma releitura crítica da história urbana do século XX a partir de uma hipótese contrafactual: e se o automóvel não tivesse se tornado o centro do planejamento urbano moderno? Considerando o impacto da motorização em massa nas formas de vida urbana, o trabalho argumenta que o automóvel foi um erro sistêmico que moldou negativamente as cidades. Em contraposição, analisa a ascensão dos serviços de mobilidade por demanda no século XXI, como o Uber, e o surgimento de uma geração que não valoriza mais a posse de veículos. Através desse contraste entre passado e presente, vislumbra-se um futuro urbano alternativo, mais eficiente, humano e racional.

Palavras-chave: urbanismo; automóvel; história contrafactual; mobilidade; Uber; cidades.

1. Introdução

A história humana é, muitas vezes, definida por decisões críticas que moldam o futuro de civilizações inteiras. Nem sempre essas decisões são acertadas. A ascensão do automóvel como eixo estruturador da vida urbana, especialmente no século XX, pode ser lida, retrospectivamente, como um erro coletivo de proporções civilizatórias. Este artigo explora essa hipótese e sugere um exercício de imaginação histórica: o que teria acontecido com nossas cidades se tal erro não tivesse sido cometido?

2. O erro original: a centralidade da vida urbana no automóvel

O automóvel foi alçado, entre as décadas de 1920 e 1970, à condição de símbolo de liberdade, progresso e mobilidade individual. Cidades como Los Angeles, Detroit e São Paulo foram remodeladas para atender a essa nova lógica da circulação motorizada. As consequências dessa decisão foram profundas:

  • Suburbanização massiva e dependência de grandes distâncias;

  • Degradação do transporte coletivo e abandono dos sistemas ferroviários urbanos;

  • Aumento da poluição atmosférica, ruído urbano e aquecimento global;

  • Fragmentação social e marginalização de populações periféricas sem acesso ao automóvel1.

A prioridade dada ao carro individual moldou o próprio imaginário urbano, reduzindo o espaço para a convivência, a cultura de bairro e o transporte público.

3. A releitura contrafactual: e se o carro não tivesse vencido?

Uma hipótese contrafactual nos permite fazer julgamentos morais e estratégicos sobre o passado a partir de pontos de bifurcação históricos2. Ao imaginar um mundo no qual o automóvel não tivesse conquistado tal centralidade, podemos pensar em cidades muito diferentes:

  • Centros urbanos mais compactos, caminháveis e sustentáveis;

  • Fortalecimento de trens urbanos, bondes e redes integradas de transporte público;

  • Preservação de espaços de convivência e de lazer;

  • Menor consumo de energia e menor emissão de gases do efeito estufa;

  • Custo de vida urbano reduzido e maior tempo disponível para a vida em comunidade.

Modelos urbanos como os de Amsterdã, Zurique ou Kyoto mostram que era possível seguir um caminho distinto3.

4. A reversão do desejo: A geração pós-carro

No século XXI, um fenômeno curioso vem ocorrendo: uma nova geração de cidadãos urbanos, conectados digitalmente e mais atentos à questão ambiental, tem abandonado o fetiche do carro próprio. A posse dá lugar ao acesso — e plataformas como Uber, 99 e BlaBlaCar tornam o automóvel um serviço e não uma propriedade.

O carro passa a ser visto como um fardo econômico (IPVA, seguro, manutenção) e um problema urbano (engarrafamentos, falta de estacionamento, insegurança)4.

No Brasil, a precariedade dos transportes públicos ainda faz com que o carro permaneça relevante, especialmente em deslocamentos de emergência ou em regiões periféricas. Contudo, mesmo aí, a chegada do Uber reduziu significativamente a demanda por veículos próprios, especialmente entre jovens solteiros e profissionais liberais5.

5. Conclusão: imaginação, julgamento e planejamento

A imaginação histórica, quando bem utilizada, nos permite formular diagnósticos mais precisos sobre o presente. O automóvel, ao tomar o lugar de protagonista na história urbana, afastou as cidades de seu destino natural: ser o lugar da convivência, da polis, da comunidade viva. O surgimento de alternativas tecnológicas e comportamentais sugere que há espaço para corrigir esse erro histórico — ao menos em parte.

A experiência contemporânea dos jovens urbanos, que já não veem o carro como ideal de liberdade, indica que o futuro alternativo esboçado neste artigo não é apenas uma utopia do passado, mas uma possibilidade concreta de reorganização das cidades.

Como afirmou Jane Jacobs: “As cidades têm a capacidade de prover algo para todos, apenas porque, e somente quando, são criadas por todos”6.

 Referências Bibliográficas

  1. GEHL, Jan. Cidades para pessoas. São Paulo: Perspectiva, 2013.

  2. FERGUSON, Niall. Virtual History: Alternatives and Counterfactuals. New York: Basic Books, 1999.

  3. MONDERMAN, Hans. “Shared Space and the Reclamation of the Street.” In: GEHL, Jan; NEWMAN, Peter. Sustainable Urbanism. Washington, DC: Island Press, 2009.

  4. KLEIN, Naomi. Isso muda tudo: capitalismo vs. o clima. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

  5. PEREIRA, Rafael H. M. “O Uber e a mobilidade urbana no Brasil: diagnóstico e desafios.” In: Revista Transporte e Desenvolvimento, v. 41, n. 2, 2018.

  6. JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

Jogos como vinho: submetendo Cronos ao Kairós na economia dos amores ordenados

Resumo

Este artigo oferece uma leitura teológico-filosófica do consumo de jogos digitais como prática de formação espiritual e disciplina temporal. Critica-se a lógica da antecipação do desejo fomentada pela indústria dos games — que vende o amanhã para um público que deseja o agora — e analisa-se sua relação com os pecados da concupiscência e da curiosidade, conforme a tradição cristã. Como alternativa, propõe-se uma economia contemplativa do luxo, fundamentada nos conceitos de studiositas e kairós, segundo autores como Aristóteles, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, São Boaventura e São Josemaría Escrivá. Ao disciplinar o desejo e reordenar o tempo segundo a verdade, o jogador transforma o consumo em liturgia e o lazer em ascese.

1. Introdução

A indústria dos games, em seu estágio atual de hiperconsumo, construiu uma estratégia central: seduzir o consumidor com a promessa do amanhã — trailers, roadmaps, acessos antecipados, pré-vendas. Essa antecipação manipula os afetos mais profundos do jogador, alimentando o desejo desordenado de prazer imediato e a busca vazia por novidades. Longe de ser uma simples tática de mercado, tal prática encarna duas paixões desordenadas: a concupiscência e a curiosidade.

Neste artigo, propõe-se compreender essa dinâmica à luz da ética clássica e da espiritualidade cristã. A partir dessa crítica, delineia-se uma alternativa: o consumo diferido e contemplativo dos jogos digitais como expressão de uma economia ordenada pelos bens espirituais.

2. A pedagogia da concupiscência e da curiosidade

Santo Agostinho identificava na concupiscência dos olhos o impulso de ver tudo por ver, não para aprender, mas por vaidade sensível¹. São Tomás de Aquino, por sua vez, concebe a curiosidade como o desejo desordenado de saber, caracterizado por sua inutilidade para a salvação². A indústria dos games, ao explorar essa tendência, promove um culto ao efêmero. O consumo se converte em culto à novidade vazia. Já a concupiscência manifesta-se como desejo ansioso de fruição: adquirir o jogo antes mesmo de ele estar pronto, jogá-lo no lançamento mesmo sem hardware adequado, sem disciplina nem propósito³.

3. Crematística e a inversão da economia

Aristóteles distingue duas formas de lidar com os bens: a oikonomiké (economia doméstica, voltada ao bem viver) e a krematistiké (crematística, voltada ao acúmulo ilimitado de riqueza). A primeira está ordenada pela finalidade natural; a segunda, é “contrária à natureza”, pois transforma o dinheiro em fim absoluto⁴. No consumo digital, essa perversão aparece com nitidez: edições limitadas, microtransações, paywalls e conteúdos “exclusivos” criam uma escassez artificial, cultivando uma pedagogia da carência e da ansiedade permanente⁵.

4. Contra a crematística: a economia do luxo contemplativo

A resposta não está na fuga do mundo, mas na sua reintegração à ordem do espírito. É possível consumir jogos de maneira virtuosa, quando tal consumo é orientado por inteligência, temperança e finalidade elevada.

Comprar um jogo e guardá-lo para o momento certo, após anos de poupança, estudo e aprimoramento do equipamento, transforma o consumo em ascese. Tal atitude configura-se como investimento espiritual, e não gasto fútil. Como um vinho que amadurece no tempo certo, o jogo ganha valor na espera paciente⁶:

“Quando eu compro um jogo e espero de 5 a 15 anos para ter um computador que o rode bem, eu estou comprando um vinho no formato de jogo.”⁷

Esse é o verdadeiro luxo contemplativo — não de ostentação, mas de nobreza interior, onde o tempo é valorizado como dom. Aristóteles já afirmava que há bens que não apenas satisfazem as necessidades, mas que elevam a alma racional por meio do lazer contemplativo⁸.

5. O jogo como liturgia do tempo: entre Chronos e Kairós

Na espiritualidade cristã, há distinção entre Chronos (tempo cronológico) e Kairós (tempo da graça). Submeter o tempo comum ao tempo da eternidade é o caminho da santificação — inclusive nos jogos.

São Boaventura chama de studiositas a virtude que ordena o desejo de saber à contemplação da verdade⁹. Essa virtude se opõe diretamente à curiositas desordenada. Quando o jogo, antes objeto de impulso, torna-se ocasião de formação espiritual e de descanso regenerador, realiza-se o princípio do apostolado da diversão, como ensinava São Josemaría Escrivá:

“Santifica o tempo de descanso, dando-lhe um fim nobre: que sirva também para descansar os outros, para sorrir, para esquecer as preocupações e para servir.”¹⁰

O consumo torna-se culto, o lazer torna-se liturgia, e o tempo livre, um campo fértil para a graça.

6. Conclusão: a sabedoria que espera

Pagar um jogo hoje em 12 parcelas para só usufruí-lo plenamente em anos não é loucura — é sabedoria. A alma que sabe esperar venceu os bens do presente e preferiu os do futuro. Tal prática é expressão da economia dos amores ordenados, onde o consumo é submetido à verdade, o prazer ao bem, e o tempo à eternidade.

Assim, a indústria dos jogos, embora marcada pela lógica do mercado e do efêmero, pode ser transfigurada pela graça. Basta que o jogador opte por um caminho mais alto: o do luxo espiritual, da disciplina do desejo e da santificação do tempo.

Notas de rodapé

  1. AGOSTINHO, Santo. Confissões, X, 35: “Curiosidade vã é o desejo de ver coisas vãs ou saber coisas fúteis, não para viver melhor, mas por impulso dos olhos e dos ouvidos.”

  2. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II-II, q. 167, a. 1: “Quando se busca conhecer o que não é útil à salvação, ou se busca conhecer por vaidade...”

  3. Cf. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I-II, q. 30, a. 1: define a concupiscência como apetite desordenado do prazer sensível.

  4. ARISTÓTELES. Política, I, 9–10. A krematistiké visa o acúmulo ilimitado e é distinta da economia doméstica (oikonomiké), voltada à vida virtuosa.

  5. Como no caso de jogos freemium, que vendem moedas virtuais ou cosméticos para criar uma escassez simulada.

  6. Esse tipo de relação com o jogo exige paciência, autocontrole e visão de longo prazo — virtudes associadas ao tempo da eternidade.

  7. DETTMANN, José Octavio. Notas de Diário, 2025.

  8. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, X, 7–8: “A felicidade consiste principalmente na contemplação.”

  9. BOAVENTURA. Breviloquium, Prologus, n. 5: “Studiositas est virtus appetitiva qua mens humana ordinatur ad studium veritatis.”

  10. ESCRIVÁ, Josemaría. Sulco, n. 529.

Referências 

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução de J. Oliveira. São Paulo: Paulus, 2002.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. 6. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Coleção Os Pensadores).

ARISTÓTELES. Política. Tradução de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora da UnB, 1985.

BOAVENTURA. Breviloquium. In: Opera Omnia, Tomus V. Quaracchi: Collegium S. Bonaventurae, 1882.

ESCRIVÁ, Josemaría. Sulco. São Paulo: Quadrante, 2014.

TOMÁS DE AQUINO, Santo. Suma Teológica. Tradução da Comissão de Estudos Tomistas. São Paulo: Loyola, 2001.