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sábado, 18 de outubro de 2025

Empreender no Consumo, Empreender no Social: a extroversão pautada na verdade, enquanto fundamento da liberdade

Introdução

O consumo é, em sua forma mais imediata, um ato de sobrevivência: compramos o que precisamos para viver. Porém, no contexto contemporâneo, marcado por programas de fidelidade, cashback e sistemas de milhas, o consumo pode ser elevado à categoria de empreendimento inteligente. Mais do que gastar, é possível investir no cotidiano, transformando cada compra em uma oportunidade de retorno financeiro. Mas esse retorno não precisa se encerrar no indivíduo: pode ser canalizado para o bem comum, tornando o consumo também um ato de empreendedorismo social.

1. O empreendedorismo no consumo

Ser empreendedor no consumo é aprender a extrair valor de práticas banais.

  • Comprar café, leite ou produtos da cesta básica deixa de ser apenas gasto.

  • Cada transação pode gerar pontos Livelo, cashback em nota fiscal e milhas bonificadas.

  • Com estratégia, os retornos chegam a multiplicar em 4, 6 ou até 10 vezes o valor investido.

Esse modelo rompe a visão passiva do consumidor e coloca-o como investidor ativo, ainda que dentro da esfera doméstica. É a lógica de transformar a despesa em ativo, antecipando, em pequena escala, o que o mercado financeiro faz em larga escala.

2. O empreendedorismo social

Esse mesmo raciocínio pode ser projetado para a dimensão comunitária. Imagine que parte dos lucros obtidos com estratégias de consumo seja revertida em solidariedade organizada:

  • Participar de campanhas do quilo em paróquias.

  • Ajudar vizinhos com produtos essenciais.

  • Financiar, com o excedente das milhas e cashback, novas rodadas de doações.

Neste caso, o indivíduo não apenas compra para si, mas compra para os outros e faz disso um ciclo sustentável. O resultado é uma prática onde a economia pessoal se converte em capital social, sem que uma dimensão anule a outra.

3. A extroversão como virtude

Esse duplo movimento — do consumo para si e para o outro — favorece também a formação de um traço humano essencial: a extroversão.

  • Não a extroversão superficial, baseada em aparências e exibicionismo.

  • Mas uma extroversão pautada na verdade como fundamento da liberdade.

Quando alguém empreende socialmente, sua extroversão não nasce do desejo de aparecer, mas da capacidade de sair de si para servir. O ato de doar e de multiplicar talentos exige contato humano, diálogo, confiança mútua e abertura à comunidade. Nesse processo, a pessoa se fortalece psicologicamente, aprendendo a não se fechar em si mesma, mas a construir pontes.

4. Liberdade na Verdade

A lógica é clara: sem verdade, a extroversão se corrompe em manipulação ou vaidade.

  • Com a verdade, a extroversão é libertadora.

  • Ela cria responsabilidade: o consumo deixa de ser egoísmo e vira compromisso.

  • A liberdade deixa de ser “fazer o que quero” e se torna “servir ao bem comum a partir do que tenho”.

É neste ponto que se encontra a chave do empreendedorismo social: a verdade transforma o ato de comprar em um ato de compartilhar, e a liberdade se realiza na construção comunitária.

Conclusão

Seria possível viver sozinho em um condomínio e, ainda assim, tornar-se um empreendedor social. Basta assumir que o consumo pode ser um terreno fértil de criatividade, inteligência financeira e solidariedade. Ao mesmo tempo em que se colhe lucro por meio de estratégias de pontos e cashback, reparte-se com os outros, transformando uma simples compra em um ato de fé, de liberdade e de construção comunitária.

Esse modelo é mais do que uma técnica de economia doméstica: é uma espiritualidade do consumo. Uma forma de unir inteligência prática, solidariedade e verdade, fazendo do ato cotidiano de comprar um caminho de liberdade e serviço.

📌 Bibliografia Recomendada

  • PAINE, Thomas. Agrarian Justice. (Sobre a origem das ideias de dividendos sociais).

  • LEÃO XIII. Rerum Novarum. (Encíclica sobre capital, trabalho e solidariedade cristã).

  • ROYCE, Josiah. The Philosophy of Loyalty. (A lealdade como base do agir comunitário).

  • GURGEL, Rodrigo. A Inocência do Conhecimento. (Reflexões sobre estudo, verdade e prática intelectual).

História Contrafactual e planejamento ex nihilo: entre a imaginação crítica e o conservantismo revolucionário

Introdução

A relação entre imaginação e história sempre gerou debates intensos. De um lado, a história contrafactual busca explorar as possibilidades não realizadas do passado, servindo como ferramenta heurística para a ciência social. De outro, a tradição iluminista — sobretudo no contexto da emancipação hispano-americana — produziu projetos políticos que se pretendiam fundadores, muitas vezes desconectados da realidade cultural local. Este artigo propõe distinguir essas duas abordagens, mostrando como a primeira se ancora em possibilidades reais e a segunda deriva de um planejamento ex nihilo, de caráter utópico e artificial.

1. A história contrafactual como método

A história contrafactual não se reduz a ficção ou mera especulação. Ela parte de um dado real e o projeta em direções possíveis que poderiam ter ocorrido sob outras circunstâncias. Trata-se de um exercício de possibilidade, que não cria fatos, mas explora caminhos alternativos.

  • Exemplo: imaginar como seria a política americana se Alberta tivesse se tornado o 51º estado dos EUA na década de 1930.

  • Esse exercício não é gratuito: ajuda a perceber o alcance do New Deal e a visualizar soluções possíveis que estavam latentes, mas não realizadas.

Assim, a contrafactualidade rompe com a rigidez do materialismo histórico ou sociológico, que tende a tomar o fato social como uma "coisa" dada e inquestionável. Ao invés disso, ilumina horizontes invisíveis de decisão, mostrando que a história é feita também por alternativas não concretizadas. 

2. O planejamento iluminista ex nihilo

Em contraste, os libertadores da América Hispânica — de Bolívar a San Martín — muitas vezes operaram num regime de planejamento ex nihilo. Inspirados pela Revolução Francesa ou pelo constitucionalismo norte-americano, tentaram importar tradições políticas alheias, transplantando instituições e modelos sem conexão profunda com a tradição hispano-americana.

Este processo não partia de um “poder do possível” já existente, mas da crença de que seria possível inventar tradições e moldar comunidades inteiras a partir de princípios universais abstratos.

  • Assim nasceram projetos de constituições, confederações e repúblicas que, em grande medida, ignoraram as estruturas locais de poder, costumes e práticas sociais.

  • Mais do que contrafactual, isso se aproximava de uma utopia racionalista, que beirava ao que se pode chamar de conservantismo revolucionário: a tentativa de perpetuar o ímpeto revolucionário como fundamento perene de uma nova ordem.

3. Comunidades Imaginadas e a utopia iluminista

Benedict Anderson, ao falar de "comunidades imaginadas", descreveu como a nação moderna se forma a partir de narrativas partilhadas, mesmo entre indivíduos que nunca se conhecerão. No caso da América Hispânica, porém, a comunidade imaginada iluminista se configurou de modo peculiar:

  • não emergiu de uma tradição cultural orgânica,

  • mas de um ato de vontade política, que pretendia fundar novas nações sobre modelos importados.

Enquanto a história contrafactual trabalha com “e se” enraizados em realidades passadas, o projeto iluminista hispano-americano foi um exercício de “como deveria ser”, sustentado por uma engenharia política descolada do real.

4. Contrafactualidade vs. Conservantismo Revolucionário

A diferença fundamental pode ser assim sintetizada:

  • História contrafactual: imaginação crítica, científica, enraizada em dados reais; ilumina alternativas possíveis e auxilia a compreensão da contingência histórica.

  • Planejamento ex nihilo iluminista: invenção artificial de tradições, projetadas como universais, mas desligadas do contexto local; tende a utopias políticas e ao conservantismo revolucionário.

Um método é ferramenta de compreensão; o outro, tentativa de imposição ideológica.

Conclusão

A história contrafactual e o planejamento iluminista representam dois usos distintos da imaginação no campo da política e da historiografia. Enquanto a primeira contribui para a ciência social ao revelar o não-dito e o não-realizado, a segunda busca moldar realidades a partir de abstrações descoladas da experiência histórica concreta. No contraste entre ambas, percebe-se a tensão entre imaginação crítica e utopia racionalista — tensão que marca a própria história das Américas.

📚 Sugestões de leitura

  • Fogel, Robert W. Without Consent or Contract: The Rise and Fall of American Slavery (exemplo de uso contrafactual aplicado à escravidão).

  • Ferguson, Niall. Virtual History: Alternatives and Counterfactuals.

  • Anderson, Benedict. Imagined Communities.

  • Bolívar, Simón. Carta da Jamaica (exemplo de planejamento ex nihilo).

  • Lynch, John. The Spanish American Revolutions, 1808–1826.

O mundo atual sob o New Deal distributivo: aspectos geopolíticos desse ensaio de história contrafactual

Introdução

Se Alberta tivesse se tornado o 51º estado americano nos anos 1930, trazendo consigo a tradição do crédito social, o New Deal teria incorporado a ideia de dividendos sociais universais como parte de sua arquitetura. Isso não apenas alteraria a economia doméstica, mas também teria repercussões profundas na política internacional e na ordem global que emergiu após 1945.

Neste artigo, exploramos como seria o mundo atual — economia, geopolítica e relações EUA-China — caso os Estados Unidos tivessem inaugurado já na década de 1930 um modelo distributivo de renda universal.

1. Os Estados Unidos como pioneiros do welfare distributivo

No mundo real, os EUA construíram um welfare state limitado, em contraste com a Europa do pós-guerra. No contrafactual, os dividendos sociais fariam parte do tecido constitucional americano desde o New Deal.

  • Legitimidade interna reforçada: a pobreza estrutural e os guetos urbanos, que se agravaram nos anos 1960-70, seriam mitigados.

  • Crise de 2008 menos devastadora: com dividendos nacionais, a população teria maior resiliência diante do colapso hipotecário, reduzindo a polarização política que emergiu na era pós-crise.

  • Base cultural distinta: a narrativa americana se apoiaria não apenas no "sonho individual", mas também na "cidadania distributiva", equilibrando mérito e solidariedade.

2. A Guerra Fria em chave distributiva

  • Concorrência com a URSS:
    Em vez de ser acusado de capitalismo selvagem, os EUA poderiam confrontar a URSS como um regime que garantia não apenas liberdades civis, mas também segurança econômica universal. Isso reduziria o apelo comunista em países do Terceiro Mundo.

  • Plano Marshall ampliado:
    Ao exportar sua experiência de dividendos sociais, os EUA poderiam ter incluído transferências diretas de renda na reconstrução da Europa, vinculando o continente ainda mais fortemente ao modelo americano.

  • Movimentos sociais domésticos:
    A luta pelos direitos civis nos anos 1960 teria encontrado um cenário menos desigual. Líderes como Martin Luther King Jr., que já falava em "renda garantida", teriam visto suas demandas atendidas décadas antes.

3. A globalização sob um paradigma distributivo

Quando a globalização neoliberal ganhou força nos anos 1980-90, os EUA entraram nesse processo já marcados pela desigualdade crescente. Mas sob o contrafactual:

  • Tecnologia e dividendos:
    A revolução digital e a automação seriam vistas como libertadoras de tempo humano, não como ameaça ao emprego. A sociedade americana aceitaria mais facilmente a transição para uma economia de serviços de alta produtividade.

  • Efeito demonstrativo global:
    Se os EUA praticassem dividendos universais desde os anos 1930, outras economias avançadas teriam imitado. O resultado seria uma globalização distributiva, com menos pobreza no Sul Global.

4. EUA-China: um confronto diferente

Hoje, a disputa entre EUA e China gira em torno de tecnologia, comércio e influência global. Mas, no contrafactual:

  • Soft power americano ampliado:
    A China usa o crescimento econômico como legitimidade política. Um EUA distributivo teria exportado, desde 1945, um modelo alternativo de prosperidade social. Isso reduziria a capacidade da China de se apresentar como campeã do desenvolvimento econômico inclusivo.

  • Economia interna mais resiliente:
    Com dividendos sociais, a indústria americana teria lidado melhor com a competição chinesa nos anos 2000, pois o consumo interno sustentaria a demanda mesmo diante da desindustrialização.

  • Diplomacia distributiva:
    Em vez de apenas tratados de livre comércio, os EUA poderiam ter promovido acordos internacionais para criação de fundos distributivos globais, financiados por recursos naturais e tecnologia.

Conclusão

Se Alberta tivesse se tornado parte da União na década de 1930, o New Deal teria incorporado uma dimensão distributiva universal. Isso teria mudado a trajetória dos EUA e do mundo: menos desigualdade, mais legitimidade democrática, uma Guerra Fria travada também no campo da justiça social, e uma globalização menos excludente.

No século XXI, os EUA não apenas competiriam com a China em inovação tecnológica e poder militar, mas também ostentariam o título de pioneiros da renda básica universal. Em vez de estarmos hoje debatendo a viabilidade de programas pilotos de renda básica, viveríamos em um mundo em que esse princípio já seria um pilar da ordem internacional desde 1945.

📚 Bibliografia Comentada

  • Friedman, Milton. Capitalism and Freedom. Chicago: University of Chicago Press, 1962.
    Referência obrigatória para contrastar como a hegemonia neoliberal poderia ter sido evitada por um modelo distributivo alternativo.

  • King Jr., Martin Luther. Where Do We Go from Here: Chaos or Community? Nova York: Harper & Row, 1967.
    Obra em que King defende explicitamente uma renda garantida — ponto que teria sido antecipado em décadas pelo contrafactual.

  • Paine, Thomas. Agrarian Justice. Londres, 1797.
    Fonte primária que fundamenta a tradição americana de dividendos sociais.

  • Stiglitz, Joseph. Globalization and Its Discontents. Nova York: W.W. Norton, 2002.
    Análise crítica da globalização real, útil para pensar como teria sido uma globalização distributiva.

  • Van Parijs, Philippe; Vanderborght, Yannick. Basic Income: A Radical Proposal for a Free Society and a Sane Economy. Cambridge: Harvard University Press, 2017.
    Base contemporânea para pensar como o contrafactual americano teria antecipado o debate da renda básica.

O New Deal distributivo e o Século Americano: como Alberta poderia ter mudado os EUA? Um ensaio de história contrafactual

Introdução

A incorporação de Alberta como o 51º estado da União durante a Grande Depressão de 1929 teria trazido consigo a tradição do crédito social, inspirada em C.H. Douglas. Essa corrente econômica, ao propor dividendos sociais universais, oferecia uma alternativa radical à abordagem keynesiana do New Deal.

Neste exercício de história contrafactual, exploramos como a presença de Alberta poderia ter moldado não apenas as políticas de Roosevelt nos anos 1930, mas também o rumo do século americano: a luta contra o fascismo, a Guerra Fria e os dilemas contemporâneos da globalização.

O “New Deal distributivo” e suas consequências

Se as ideias do crédito social tivessem sido incorporadas no New Deal, os EUA teriam consolidado um modelo híbrido: obras públicas e regulação financeira, somadas a um dividendo nacional permanente. Essa inovação teria gerado efeitos cumulativos ao longo do século XX:

  1. Economia de consumo fortalecida:
    A distribuição de renda universal garantiria que os ganhos de produtividade da era fordista fossem acompanhados por aumento proporcional da demanda. Isso poderia ter reduzido crises cíclicas de superprodução e fortalecido o mercado interno.

  2. Desigualdade estrutural reduzida:
    Com uma base de renda assegurada, a disparidade entre capital e trabalho não teria crescido tanto a partir dos anos 1970, quando o neoliberalismo abriu caminho para a financeirização.

  3. Mudança no perfil do welfare state:
    Ao contrário do modelo europeu, focado em seguros sociais ligados ao emprego, os EUA teriam desenvolvido um welfare universalista baseado em dividendos. Isso mudaria a percepção cultural americana, conciliando individualismo com solidariedade econômica.

Impactos na política externa e na Guerra Fria

  1. Concorrência com o socialismo soviético:
    Se os EUA já contassem com um programa nacional de dividendos sociais, poderiam se apresentar ao mundo não apenas como a “terra da liberdade”, mas também como a terra da justiça econômica distributiva. O apelo do socialismo nos países do Terceiro Mundo seria enfraquecido diante de um capitalismo com rosto humano.

  2. Plano Marshall mais ousado:
    A tradição distributiva americana poderia ter se projetado internacionalmente. Em vez de apenas reconstrução via empréstimos, o Plano Marshall poderia ter incluído mecanismos de dividendos sociais aplicados nos países aliados, aproximando ainda mais a Europa Ocidental dos EUA.

  3. Descolonização em chave americana:
    O discurso da Guerra Fria teria mudado. Os EUA poderiam apresentar sua política social como alternativa não apenas ao comunismo, mas também ao neocolonialismo europeu, oferecendo dividendos a partir da exploração de recursos em parceria com ex-colônias.

Efeitos no constitucionalismo americano

  • Segunda Declaração de Direitos consolidada:
    A “Segunda Declaração de Direitos” proposta por Roosevelt em 1944 — que falava em direito ao emprego, à saúde e à segurança econômica — teria incluído explicitamente o direito ao dividendo social. Isso transformaria a Constituição americana, fortalecendo o papel da União na redistribuição de renda.

  • Federalismo fiscal mais equilibrado:
    Com Alberta e o Alaska como exemplos, estados ricos em recursos naturais pressionariam por modelos de dividendos estaduais, mas dentro de uma moldura nacional. Isso teria dado mais coesão ao federalismo norte-americano, evitando tensões fiscais entre estados ricos e pobres.

  • Precedente global:
    O constitucionalismo americano teria exportado o modelo de renda básica antes da Europa. A ONU, em sua Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), poderia ter incluído o direito ao dividendo como cláusula econômica universal.

O século XXI sob um New Deal distributivo

Se essa tradição tivesse vingado, os EUA de hoje seriam bastante diferentes:

  • Desigualdade menor: a polarização entre “1% e 99%” que marcou a crise de 2008 teria sido atenuada.

  • Maior legitimidade democrática: a renda básica teria reduzido a vulnerabilidade política ao populismo.

  • Transição tecnológica mais suave: com dividendos garantidos, a automação e a inteligência artificial seriam vistas como oportunidade de libertar tempo humano, não como ameaça ao emprego.

  • Papel global renovado: em vez de importar o welfare state europeu, os EUA teriam exportado um modelo próprio de justiça social baseado no dividendo.

Conclusão

A história não se escreve com “ses”, mas o exercício contrafactual mostra que a presença de Alberta nos EUA desde os anos 1930 poderia ter dado à democracia americana uma dimensão mais distributiva. O “New Deal distributivo” uniria Roosevelt, Douglas e Paine em uma síntese histórica singular, capaz de oferecer ao século XX uma alternativa ao socialismo soviético e ao neoliberalismo global.

No século XXI, os EUA poderiam ser lembrados não apenas como a potência da liberdade e do mercado, mas também como a nação que inaugurou, já em 1933, o direito universal ao dividendo social — antecipando de quase um século o debate contemporâneo sobre renda básica universal.

📚 Bibliografia Comentada

  • Douglas, C.H. Credit-Power and Democracy. Londres: Cecil Palmer, 1920.
    A formulação central da doutrina do crédito social, base do movimento em Alberta.

  • Finkel, Alvin. The Social Credit Phenomenon in Alberta. Toronto: University of Toronto Press, 1989.
    Análise do impacto político do crédito social em Alberta, essencial para pensar sua exportação ao contexto americano.

  • Kennedy, David M. Freedom from Fear: The American People in Depression and War, 1929–1945. Nova York: Oxford University Press, 1999.
    Contexto histórico indispensável para entender a Grande Depressão e o New Deal.

  • Roosevelt, Franklin D. The Second Bill of Rights. Discursos, 1944.
    Proposta inacabada de Roosevelt, que poderia ter incluído o direito ao dividendo social.

  • Van Parijs, Philippe; Vanderborght, Yannick. Basic Income: A Radical Proposal for a Free Society and a Sane Economy. Cambridge: Harvard University Press, 2017.
    Obra contemporânea que ajuda a pensar como uma renda básica poderia ter moldado o século americano se tivesse sido implementada já nos anos 1930.

Alberta como 51º estado e o New Deal: um exercício de história contrafactual

Introdução

A Grande Depressão de 1929 foi, segundo muitos historiadores, uma crise de superprodução e subconsumo. Enquanto as fábricas e o setor agrícola norte-americano inundavam o mercado com bens, os salários não acompanhavam esse crescimento, resultando em estoques acumulados, queda de preços e falências em massa. O presidente Franklin D. Roosevelt respondeu com o New Deal, um conjunto de políticas de estímulo ao emprego, obras públicas, seguridade social e regulação financeira.

Mas e se, nesse cenário, a província canadense de Alberta já fosse um estado da União Americana? Conhecida como o berço do movimento de crédito social inspirado em C.H. Douglas, Alberta teria levado para Washington uma tradição econômica alternativa, baseada na emissão de crédito nacional e na distribuição de dividendos sociais. Este artigo propõe um exercício de história contrafactual: como a presença de Alberta poderia ter alterado os rumos do New Deal e, por consequência, do constitucionalismo americano?

A tradição do crédito social de Alberta

O engenheiro escocês C.H. Douglas formulou a teoria do crédito social nos anos 1920, defendendo que o sistema financeiro criava um “gap” entre preços e salários, tornando impossível que a produção fosse consumida em sua totalidade. Sua solução era a emissão de crédito nacional e a distribuição de dividendos sociais à população, garantindo poder de compra suficiente para sustentar a demanda.

Em Alberta, o movimento ganhou força na década de 1930, durante a própria Depressão. O governo de William Aberhart chegou a tentar aplicar medidas de crédito social, embora com forte resistência do governo federal canadense e do sistema bancário.

Se Alberta fosse parte dos EUA nesse período, essa tradição teria se deslocado para o Congresso americano, justamente quando o país buscava soluções radicais para a crise.

O New Deal e a ausência de uma renda nacional

O New Deal foi revolucionário ao criar programas de emprego, seguridade social e instituições regulatórias. No entanto, manteve intacta a estrutura do sistema bancário e não chegou a implementar uma política de dividendos universais. A resposta foi essencialmente keynesiana: gastar mais via obras públicas para estimular a demanda.

A entrada de Alberta como estado, porém, teria levado para o debate federal a lógica de que não bastava criar empregos: era preciso redistribuir poder de compra diretamente. Isso teria oferecido um contraponto ao keynesianismo pragmático de Roosevelt, evocando a herança americana de Thomas Paine, que no século XVIII já defendia dividendos sociais a partir da propriedade comum da terra.

Contrafactual: Alberta e o New Deal distributivo

Se Alberta tivesse representantes no Congresso nos anos 1930, é plausível imaginar os seguintes desdobramentos:

  1. Propostas legislativas de dividendos sociais: deputados e senadores albertanos poderiam ter defendido a criação de um dividendo nacional, financiado pela emissão de crédito ou pela exploração de recursos naturais, em paralelo ao modelo do Alaska criado meio século depois.

  2. Reforma do Federal Reserve: a pressão política de Alberta questionaria o monopólio do FED na emissão de moeda, fortalecendo a posição do Tesouro como emissor direto de crédito social.

  3. Constitucionalização do direito à renda: o diálogo entre Paine, Douglas e Roosevelt poderia ter produzido uma “Segunda Declaração de Direitos Econômicos” mais robusta, incorporando o direito ao dividendo social como parte do Estado Social americano.

  4. Um welfare state americano original: em vez de seguir o modelo europeu de seguridade social pós-guerra, os EUA poderiam ter consolidado um Estado Social distributivo baseado em dividendos universais, antecipando em décadas os debates atuais sobre renda básica universal.

Repercussões de longo prazo

Se esse contrafactual tivesse se materializado, os efeitos poderiam ter sido significativos:

  • Redução estrutural da desigualdade nos EUA já no século XX.

  • Legitimidade popular do sistema federal, pois a renda universal reforçaria o contrato social entre Estado e cidadão.

  • Mudança na Guerra Fria: os EUA poderiam ter respondido ao desafio soviético não apenas com crescimento econômico, mas também com uma política social distributiva própria, enfraquecendo as críticas sobre desigualdade capitalista.

Conclusão

A história contrafactual nos permite pensar o que poderia ter sido. Se Alberta tivesse sido incorporada como o 51º estado nos anos 1930, sua tradição de crédito social teria se somado ao pragmatismo do New Deal. O resultado plausível seria uma reforma mais radical do federalismo fiscal americano, com a institucionalização de dividendos sociais como política nacional.

Assim, a depressão de 1929, em vez de inaugurar apenas a era keynesiana, poderia ter marcado o início de uma tradição americana de renda básica universal, conciliando a visão de Thomas Paine, C.H. Douglas e Roosevelt sob o manto da Constituição dos Estados Unidos.

📚 Bibliografia Comentada

  • Douglas, C.H. Economic Democracy. Londres: Cecil Palmer, 1920.
    Obra fundadora do crédito social, onde Douglas expõe a ideia do “gap” entre preços e salários.

  • Finkel, Alvin. The Social Credit Phenomenon in Alberta. Toronto: University of Toronto Press, 1989.
    Estudo clássico sobre como o crédito social moldou a política de Alberta nos anos 1930 e 1940.

  • Paine, Thomas. Agrarian Justice. Londres, 1797.
    Panfleto em que Paine defende dividendos sociais financiados pela propriedade comum da terra, antecipando ideias modernas de renda básica.

  • Roosevelt, Franklin D. The Public Papers and Addresses of Franklin D. Roosevelt. Nova York: Random House, 1938.
    Coletânea essencial para compreender o New Deal e a “Segunda Declaração de Direitos”.

  • Kennedy, David M. Freedom from Fear: The American People in Depression and War, 1929–1945. Nova York: Oxford University Press, 1999.
    Panorama fundamental do impacto da Grande Depressão e do New Deal.

Petróleo, crédito social e a possível trajetória de Alberta como “estado 51” dos EUA

Introdução

A província canadense de Alberta, tradicionalmente marcada por seu petróleo e por uma política muitas vezes divergente de Ottawa, revive hoje debates antigos sob novas formas: de um lado, o legado do crédito social de C.H. Douglas, que marcou profundamente sua cultura política; de outro, o separatismo energético, que vê nas políticas ambientais federais um obstáculo ao desenvolvimento local. A hipótese de que Alberta possa, como o Texas no século XIX, buscar sua independência para posteriormente unir-se aos Estados Unidos não é apenas retórica política, mas reflete uma tensão histórica entre centro e periferia, ideologia e recurso material.

1. O crédito social em Alberta: raízes históricas

A doutrina de Major C.H. Douglas, formulada nas décadas de 1920-1930, defendia a ideia de que a produção moderna gerava bens em excesso em relação ao poder de compra dos consumidores. Para equilibrar esse descompasso, o Estado deveria emitir dividendos sociais a cada cidadão, lastreados na riqueza real do país.

Em Alberta, essa ideia encontrou terreno fértil:

  • O Social Credit Party venceu as eleições de 1935 e governou até 1971.

  • Ainda que as propostas de Douglas nunca tenham sido aplicadas integralmente, elas consolidaram em Alberta uma tradição de política econômica distributiva, marcada por resistência ao controle financeiro de Ottawa e ênfase na autonomia dos recursos locais.

2. O petróleo como novo “lastro” de crédito social

O petróleo em Alberta não é apenas uma commodity: é a base da arrecadação fiscal, do bem-estar social e do peso político da província.

  • Assim como o ouro já foi lastro monetário, o petróleo pode ser visto como lastro de dividendos sociais, funcionando como um fundo de distribuição direta de riqueza.

  • A experiência mais próxima disso nos EUA é o Alaska Permanent Fund, criado em 1976, que distribui anualmente dividendos à população a partir dos lucros do petróleo.

  • Nessa lógica, Alberta poderia atualizar o crédito social de Douglas, substituindo o lastro abstrato (crédito emitido pelo Estado) por um lastro concreto em hidrocarbonetos.

Em termos práticos, o petróleo permitiria a criação de uma renda básica de cidadania, garantida por um recurso físico e exportável, blindado das flutuações ideológicas de Ottawa.

3. A tradição americana de dividendos sociais

Os Estados Unidos têm uma longa tradição intelectual de defesa de uma renda básica universal:

  • Thomas Paine, em Agrarian Justice (1797), propôs que todos os cidadãos recebessem uma compensação pelo uso comum da terra, uma forma inicial de “dividendo social”.

  • Experimentos modernos, como o Alaska Permanent Fund, mostram que essa tradição se materializa em realidades locais, sobretudo em regiões de fronteira, onde a natureza e os recursos são a principal fonte de riqueza.

Se Alberta se aproximasse dos EUA, sua lógica de dividendos petrolíferos se encaixaria com naturalidade nessa tradição norte-americana.

4. Separatismo e o paralelo com o Texas

O movimento separatista de Alberta encontra ressonância na história do Texas:

  • Em 1836, o Texas se separou do México e permaneceu independente por nove anos.

  • Em 1845, tornou-se parte dos EUA, levando consigo sua riqueza em algodão e petróleo.

De forma análoga, Alberta poderia seguir uma trajetória de independência breve, sustentada por sua riqueza petrolífera, antes de negociar sua adesão à federação americana como o “Estado 51”. Essa união seria lógica, considerando que sua economia já é fortemente integrada ao mercado dos EUA, e que Ottawa impõe, segundo a visão separatista, políticas ambientais que reduzem sua competitividade.

5. Conclusão

O crédito social em Alberta foi uma tentativa, no século XX, de redistribuir o excedente econômico em favor dos cidadãos. No século XXI, o petróleo pode assumir o papel de lastro material para uma nova versão dessa política, ancorada na realidade do mercado energético global.

A tradição americana de renda básica, desde Thomas Paine até o Alasca, fornece o modelo cultural e político no qual Alberta poderia se inserir caso se tornasse parte dos EUA. Assim como o Texas no século XIX, Alberta poderia primeiro afirmar sua independência e, depois, encontrar nos EUA não apenas um mercado, mas um quadro institucional que legitime o petróleo como base de uma cidadania econômica.

Bibliografia comentada

  • Douglas, C.H. – Economic Democracy (1920)
    Obra seminal do engenheiro britânico que deu origem ao movimento de crédito social, defendendo dividendos sociais universais.

  • Finkel, Alvin – The Social Credit Phenomenon in Alberta (1989)
    Estudo clássico que analisa o impacto do crédito social na política e sociedade albertana durante o século XX.

  • Paine, Thomas – Agrarian Justice (1797)
    Texto fundamental que antecipa a noção de dividendos sociais como direito de todos, ligando propriedade da terra à justiça social.

  • Knapp, Gunnar – The Alaska Permanent Fund: Assessing the Dividend Program (2004)
    Análise do fundo do Alasca, exemplo prático de redistribuição de riqueza petrolífera em forma de renda básica.

  • Resnick, Philip – The European Roots of Canadian Identity (2005)
    Explora como tradições políticas importadas da Europa, como o crédito social, moldaram a identidade de províncias como Alberta.

Crédito Social Canadense x Crédito Social Chinês: uma comparação

Embora compartilhem o mesmo nome, o Crédito Social canadense (inspirado em C. H. Douglas) e o Crédito Social chinês (sistema de vigilância contemporâneo) são realidades absolutamente distintas.

Natureza

  • Canadá (anos 1930–1970): Movimento econômico e populista, centrado em corrigir falhas do capitalismo financeiro.

  • China (2010s–atualidade): Sistema político e tecnológico de governança, voltado ao controle social e disciplinamento comportamental.

Objetivos

  • Canadense: garantir justiça econômica, ampliar o poder de compra e democratizar o crédito.

  • Chinês: assegurar a conformidade com normas políticas, jurídicas e morais, moldando comportamentos sociais.

Instrumentos

  • Canadense: proposta de dividendo social e emissão de crédito público pelo Estado.

  • Chinês: monitoramento digital, big data, algoritmos de pontuação, sanções e recompensas.

Consequências

  • No Canadá: gerou governos provinciais duradouros, debates sobre soberania econômica e populismo regional, mas sem implementar a doutrina original em sua totalidade.

  • Na China: estabeleceu um modelo de vigilância de alcance nacional, que afeta desde empresas até indivíduos, com repercussões em direitos civis, liberdades individuais e economia.

Diferença essencial

  • O crédito social canadense era uma tentativa de empoderamento econômico dos cidadãos, nascida de uma crítica ao sistema bancário.

  • O crédito social chinês é uma tentativa de disciplinamento social, usando a tecnologia para reforçar a autoridade estatal.

📌 Conclusão

  • No Canadá, “crédito social” foi sinônimo de um projeto populista e reformista, hoje parte da história política.

  • Na China, “crédito social” tornou-se um instrumento de governança digital e controle social no século XXI.

O mesmo nome, portanto, carrega dois projetos de sociedade radicalmente diferentes: um de justiça econômica, outro de disciplina política.

Bibliografia comentada 

  • Creemers, Rogier. “China’s Social Credit System: An Evolving Practice of Control.” SSRN Electronic Journal, 2018.
    → Um dos estudos mais citados sobre o crédito social chinês. Analisa seu funcionamento, lógica política e implicações para o controle social.

  • Dai, Xin. “Toward a Reputation State: The Social Credit System Project of China.” SSRN Electronic Journal, 2018.
    → Explora o crédito social chinês como sistema de reputação estatal, mostrando como ele busca resolver a desconfiança social.

  • Botsman, Rachel. Who Can You Trust? How Technology Brought Us Together and Why It Might Drive Us Apart. Nova York: PublicAffairs, 2017.
    → Aborda a economia da confiança e como sistemas como o crédito social chinês transformam relações sociais e institucionais.

  • Finkel, Alvin. The Social Credit Phenomenon in Alberta. Toronto: University of Toronto Press, 1989.
    → Útil para o contraste: enquanto o crédito social chinês é digital e coercitivo, o canadense surgiu como utopia econômica.

  • Chen, Yihan. “Social Credit System and the Rule of Law: A Contextual Analysis.” China Perspectives, n. 4, 2019.
    → Estudo sobre os impactos legais do sistema chinês e suas tensões com noções ocidentais de Estado de Direito.

  • Macpherson, C. B. Democracy in Alberta. Toronto: University of Toronto Press, 1953.
    → Essencial para entender o contraste histórico: um crédito social “democrático e econômico” no Canadá versus um crédito social “tecnológico e disciplinador” na China.