Usura não significa juros altos,
e sim qualquer cobrança de juros, mesmo baixos, sobre um empréstimo
improdutivo. Não é apenas imoral (tendo sido, em decorrência disso,
condenada por todos os códigos morais – pagãos, muçulmanos ou
católicos), mas também, em última análise, destrutiva da sociedade.
Somente tornou-se prática usual do nosso comércio após o colapso europeu
que se seguiu à Reforma Protestante. A Usura destruirá nossa sociedade,
mas não há como escapar-lhe nesse meio-tempo. Aproximamo-nos do final
de sua ação maléfica, não devido à conscientização sobre seus males, mas
sim por ela beirar o esgotamento de seus recursos. Os empréstimos da
Grande Guerra, usurários em sua quase totalidade, aceleraram
intensamente esse processo.
O mundo moderno se organiza segundo o princípio de que o dinheiro,
por sua própria natureza, gera dinheiro. Uma soma em dinheiro
emprestada, segundo nosso sistema atual, tem o direito intrínseco à
cobrança de juros. Trata-se de um falso princípio, tanto em termos
econômicos quanto morais. Após arruinar Roma, vem-nos conduzindo ao
nosso fim.
Suponhamos que um homem o procure e diga: "Há um terreno junto ao meu, excelente para construção. Se eu construir ali uma boa casa, conseguirei alugá-la com lucro
líquido de 100 libras esterlinas ao ano, já considerado o pagamento de
todas as taxas, impostos e reparos. Só que não disponho de capital para
construir a casa. O terreno custará 50 libras e a casa, 950. O senhor me
emprestará mil libras, de forma que eu compre o terreno, construa a
casa e desfrute dessa pequena renda?" Sua provável resposta seria: "E o
que receberei em troca? Certo, o senhor ficará com suas 100 libras ao
ano. Mas só as conseguirá graças ao meu auxílio, o que me confere o
direito à participação nos lucros. Havemos de dividi-los meio a meio. O
senhor retira sua parte de 50 libras ao ano pelo conhecimento da
oportunidade e por seu trabalho e me repassa as outras 50. Elas
representam 5% do meu investimento, e ficarei satisfeito."
Essa resposta, considerando-se a propriedade como direito moral, constitui oferta
perfeitamente lícita. Ao aceitá-la, o indivíduo que solicitou o
empréstimo nada tem a reclamar. Por muito tempo (teoricamente, para
sempre) seria possível continuar retirando cinco por cento do valor
emprestado sem qualquer peso na consciência.
Agora,
suponhamos que esse homem o procure e diga: "Conheço o caso de um
senhor de meia idade subitamente acometido por terrível doença. Um
tratamento médico que custa mil libras esterlinas salvará sua vida, mas
ele nunca mais poderá exercer qualquer trabalho. Ele recebe uma pensão
de 100 libras ao ano, que garantirá sua subsistência após a operação e o
tratamento subsequente. O senhor emprestará as mil libras? Elas serão
devolvidas na ocasião de sua morte, por conta de um seguro de vida no
valor de mil libras." Sua resposta: "Emprestarei as mil libras para
salvar sua vida, mas exijo metade da pensão anual, ou seja, 50 libras ao
ano, por cada ano que ele ainda venha a viver; e ele terá de sobreviver
como puder com as 50 libras restantes da pensão." Caso ainda lhe
restasse alguma sensibilidade, essa proposta o faria sentir-se um
patife, e caso contrário – tendo-se tornado um, de fato, pela ação do
que foi chamado pelo poeta de "longas jornadas de endurecimento e
decadência da alma" – ainda assim seria uma atitude abjeta, embora não
lhe causasse a menor inquietude.
Parece,
portanto, que certas condições permitem, de forma legítima e moral,
emprestar mil libras com cinco por cento de juros mantendo perfeita paz
com a própria consciência, e outras não.
Vejamos agora a questão sob outra perspectiva.
Quando
a cidade norte-americana de Boston foi fundada, há trezentos anos, um
homem de Londres que se propôs a para lá emigrar deixou uma quantidade
de ouro no valor de mil libras esterlinas aos cuidados de um ourives
londrino permitindo que fizesse uso do dinheiro até que ele ou seus
herdeiros o reclamassem, mas com a condição de que cinco por cento do
capital deveria render juros compostos até a retirada. O emigrante não
retornou. Com o avanço do século XVII, o empreendimento se desenvolveu,
assim como muitos outros, em uma espécie de banco. No início do século
XVIII, já era um banco em plena forma, e seu sucessor atual faz parte de
um dos maiores sistemas bancários de nossos tempos. O depósito original
"rendeu frutos", como se costuma dizer, com a dívida se acumulando sem
ninguém para reivindicá-la.
Por fim, neste
ano de 1931, eis que surge um herdeiro capaz de comprovar seu direito. A
soma de capital alcançada pelo modesto investimento de mil libras a
cinco por cento deve ser paga a ele por ordem judicial. Consegue
imaginar o montante alcançado? – Mais do que o dobro da receita anual
dos Estados Unidos na atualidade.
Tomemos
um exemplo menos extravagante e talvez mais convincente. Supondo que um
homem tenha emprestado dez mil libras esterlinas em regime de hipoteca,
com juros de seis por cento, sobre a propriedade de um senhor inglês
no início da Guerra da Independência dos Estados Unidos, em 1776: tal
propriedade renderia 600 libras por ano ao credor. A dívida não foi
cobrada. O constrangido senhor teve permissão para adicionar ao valor
principal os pagamentos anuais devidos, de forma que o total fosse
acrescido da taxa de juros compostos de seis por cento.
Não
se trata de uma suposição de todo impossível. Imagina o que o credor da
hipoteca poderia exigir da propriedade nos dias de hoje? Quase cinco
milhões de libras ao ano!
Nenhum desses
exemplos poderia ocorrer na prática, uma vez que a lei proíbe acumulação
tão prolongada. Mas o próprio fato de que a lei viu-se obrigada a
aplicar tal proibição comprova haver algo de errado com a noção atual,
aplicada de forma generalizada, de que o dinheiro "faz jus" a
determinada taxa de juros, tendo a ela direito moral, independentemente
da forma como o capital seja empregado.
Pois
o que há de comum a todos esses exemplos é o fato evidente de que os
juros sobre um empréstimo podem constituir, sob certas circunstâncias de
tempo ou extensão, uma exigência de tributação impossível. Podem
representar em determinado contexto um tributo moralmente indevido, que
não traduz produção extra de riquezas gerada pelo investimento original.
Sob certas condições, os valores exigidos não equivalem mais o fruto do
investimento original, não correspondendo, portanto, à remuneração de
parte dos lucros, mas sim a um pagamento a ser feito, se possível, a
partir de quaisquer outros bens que o devedor possa obter. E esse
tributo, além de certo ponto, torna-se mesmo impagável, devido à
inexistência na sociedade dos meios suficientes para tanto.
Que circunstâncias são essas? Que condições distinguem a exigência de juros moralmente legítima da ilegítima?
A
distinção se dá entre a cobrança moral de parte dos frutos de um
empréstimo produtivo e a exigência imoral de (1) juros sobre um
empréstimo improdutivo ou (2) juros superiores ao incremento anual em
riquezas efetivas geradas por um empréstimo produtivo. Tal exigência
"esgota" – "consome" – "exaure" as riquezas do devedor, sendo por isso
denominada "Usura". Uma derivação imprecisa em termos filológicos, mas
correta sob o ponto de vista moral, conecta o termo latino "usura" à idéia de destruir, "exaurir", e não à idéia original do termo "usus," "uso".
A
Usura, portanto, é a cobrança de juros sobre um empréstimo improdutivo
ou de juros superiores ao incremento real gerado por um empréstimo
produtivo. É a exigência de algo ao qual o credor não tem direito, como
se eu dissesse: "Pague-me dez sacas de trigo ao ano pelo aluguel destes
campos", após os campos terem sido tragados pelo mar ou terem passado a
produzir anualmente muito menos do que as dez sacas de trigo.
Devo,
com relutância, introduzir aqui um significado coloquial do termo
"Usura" que confunde o raciocínio. As pessoas falam de "juros usurários"
referindo-se a juros muito elevados. A forma como surgiu essa confusão é
elementar. Juros muito elevados são geralmente superiores à riqueza
real produzida até mesmo por um empréstimo produtivo, e cobrá-los
significa, de fato, cobrar mais do que a produção do empréstimo
original; mas não há nada na taxa de juros per se que a torne
usurária. É possível cobrar juros de cem por cento sobre um empréstimo e
estar em pleno exercício de seus direitos morais.
Por
exemplo, uma pequena área de mineração que produzia 15 kg de ouro por
ano tem a súbita oportunidade de produzir 200 vezes essa quantidade –
3.000 kg – com a obtenção do capital equivalente a apenas 30 kg para
desenvolvimento. O credor desse novo capital não tem a obrigação moral
de ceder ao devedor, como presente, os lucros imensamente maiores. É
legítimo que reivindique sua parte; ele poderia muito bem exigir metade
da nova produção, ou seja, 1.500 kg ao ano, 500 por cento sobre o
empréstimo, pois esses juros altos corresponderiam apenas à metade da
nova riqueza produzida. A demanda desses 500 por cento não representaria
cobrança de tributo sobre riqueza inexistente, nem sobre riqueza que
não foi criada pelo capital investido.
Portanto,
a rigor a Usura nada tem a ver com o valor dos juros cobrados, mas sim
com o fato de haver ou não um incremento produzido pelo capital
investido que seja pelo menos igual ao tributo exigido.
Caso
seja necessário avalizar uma posição moral tão evidente, esse aval pode
ser encontrado em todos os principais sistemas morais sancionados pelas
filosofias religiosas e sociais permanentes adotadas pela humanidade.
Aristóteles1
a proíbe, assim como São Tomás de Aquino. O sistema ético muçulmano a
condena [e, na prática, faz uma condenação ininteligível, ao proibir
muitos empréstimos que seriam úteis]2. Temos, em particular, a brilhante decisão do Quarto Concílio de Latrão [1215].
Tudo
certo até este ponto. Vejamos agora o desenvolvimento muito
interessante que se deu nos tempos modernos, desde o rompimento de nosso
sistema moral e religioso comum europeu, com a Reforma Protestante.
Após esse desastre, a Usura passou a ser gradualmente admitida.
Tornou-se prática comum sancionada pela legislação, com pagamento
imposto pela magistratura civil. Na Inglaterra, foi sob o reinado de
Cecil, no ano de 1571, que os juros, embora limitados a dez por cento,
tornaram-se legais, independentemente da utilização do empréstimo. O ano
de nascimento do que se pode chamar "Usura Indiscriminada" foi 1609,
quando, sob o Calvinismo, o Banco de Amsterdã iniciou sua próspera
carreira em estimular a capacidade dos afortunados e arruinar os
desafortunados. De forma geral, os governos que se desligaram da unidade
representada pela Cristandade
introduziram, um após o outro, a Usura legalizada, obtendo vantagem
sobre as nações conservadoras que se empenhavam em manter o antigo
código moral. Às novas ideias morais, ou melhor, imorais assim
introduzidas, devemos o rápido desenvolvimento do sistema bancário nas
nações "reformadas", bem como o controle financeiro que adquiriram e
mantiveram por três séculos. Por fim, todos se adequaram ao novo
sistema, e hoje a Usura atua lado a lado com o lucro legítimo e, confundida com ele, universalizou-se no que já foi a civilização Cristã. É ponto pacífico que todo empréstimo deve produzir juros, sem questionamento quanto ao seu caráter produtivo ou improdutivo. Todo o aspecto financeiro de nossa civilização ainda se baseia nesse falso conceito. [ênfase acrescentada]
Seria
possível escrever um ensaio muito interessante sobre os mais recentes
frutos de tal concepção em nossos tempos. Se porventura viesse a ser
escrito, um bom título seria "O fim do reinado da Usura". Afinal, vem-se
tornando muito claro que o vício inerente ao sistema responsável,
tempos atrás, pela derrocada da estrutura social do Império Romano
começa a fazer ruir também nossas transações financeiras internacionais.
Contudo, com a seguinte diferença: eles foram arruinados pela Usura particular e nós, pela pública.
Mas
essas são digressões; voltemos ao assunto. Sendo a Usura uma demanda
por dinheiro inexistente (um tributo cobrado não sobre a produção de
capital, mas sobre uma margem superior a tal produção, ou mesmo sem que
haja produção alguma) e, uma vez admitida em caráter universal,
constituindo, de início, um mecanismo para a total concentração das
riquezas nas mãos dos credores e, por fim, para a redução do restante da
comunidade à servidão econômica; sendo a Usura, em última análise, um
sistema fadado a ruir sob seu próprio peso – quando a demanda gerada for
superior a toda a capacidade produtiva – surge o questionamento: por
que vem sendo praticada com sucesso há tanto tempo? Por que parece estar
nas origens de um progresso produtivo tão vasto em todo o mundo?
Ninguém
poderá negar seu uso bem-sucedido ao longo de tantas gerações, desde
seu sólido estabelecimento como prática generalizada durante o século
XVII. Nem seria possível negar que vem acompanhando (e acredito ter, em
ampla medida, causado) a grande expansão moderna da produção. E surge
aqui uma daquelas aparentes contradições entre uma verdade matemática
direta e os resultados de sua negação na prática, tão comuns na vida
real. Convencida por tais aparências (pois tratam-se apenas de
aparências, e enganadoras), a maioria dos homens abandona a reflexão
abstrata e se satisfaz com o resultado prático. É por conta disso que,
mesmo após tanto tempo, a simples menção da palavra “Usura” e o debate
de sua ética traz em si a impressão de algo ridículo.
Há
não muito tempo, qualquer pessoa diria que a atitude adotada aqui
significaria escrever o próprio atestado de loucura. As conclusões de
qualquer raciocínio lógico sobre o assunto simplesmente não eram levadas
em conta, mas sim repelidas como noções imperfeitas, características de
épocas primitivas e acríticas, quando o homem ainda não dominava a
economia ou qualquer outra ciência.
O
número crescente, embora ainda restrito, de homens instruídos que passam
a suspeitar de tal desprezo pelo passado imemorial e pelas tradições
morais da Cristandade
retira dessas objeções parte do peso que tinham na geração anterior;
ainda assim, elas exercem peso esmagador sobre a maioria. Diante da
afirmação de que "a Usura é errada" ou mesmo de que "a Usura é
perigosa", ou apenas de que "a Usura, a longo prazo, entrará em
colapso", a grande maioria, ainda hoje, se recusará a discutir o
assunto. A maioria dos desatentos e todos os tolos o incluirão entre os
defensores da teoria de que a Terra é plana.
O
erro é deles, e não nosso; ainda assim, o erro deles, como afirmei,
possui sólido embasamento prático, pois a Usura tem funcionado. A
produtividade aumentou consideravelmente desde seu estabelecimento. Os
três últimos séculos foram de imensa expansão, liderada precisamente
pelos primeiros a abolir a moral Cristã.
Como
explicar esse fato? A explicação consiste em três reflexões: primeiro,
quando a Usura é permitida e aplicada em caráter universal, torna-se
simples parte de uma atividade geral de acumulação de capital para fins
de investimento. Na época em que a Usura era ilegal e passível de
punição, esse tipo de acumulação não era possível. Por acaso, era também
uma época em que a produção de riqueza em escala crescente não
representava a finalidade última da existência humana. De qualquer modo,
sob o ponto de vista exclusivamente econômico, o fim dos
questionamentos sobre a forma como o capital seria usado e o
estabelecimento da regra de que todo o capital faz jus ao recebimento de
juros, independentemente de como seja investido, logicamente criaram a
tendência de acúmulo mais rápido e, incidentalmente, a avidez dos homens
pela busca de oportunidades para fazer empréstimos, tanto produtivos
quanto improdutivos.
Ao mesmo tempo,
embora as causas fossem outras, veio o aumento do poder do homem sobre a
natureza, com uma curva de crescimento cada vez mais acentuada e talvez
ainda em progressão – embora haja sinais de fadiga e interferência de
causas externas ao campo da economia nesse processo, a despeito da
rápida escalada do conhecimento científico e da sua aplicação econômica.
Esse aumento em nosso poder sobre a natureza é o segundo fator de
mascaramento da falsa ação da Usura por tanto tempo. O mal econômico da
Usura estimulou e acompanhou a grande vantagem econômica da acumulação
para Produção, e a oportunidade para esse uso legítimo do dinheiro
originou-se de um afluxo de descobertas geográficas e de novas
conquistas das Ciências da Natureza. O terceiro motivo pelo qual a Usura
ainda não concretizou seu total efeito nefasto é que, há tempos, tal
efeito vem sendo detido automaticamente por repetidos colapsos que
anularam as reivindicações usurárias. O capital de empréstimos
improdutivos deixou de receber seus tributos, que tiveram de ser
cancelados. Verdade seja dita, a Usura sobre esse tipo de capital é
geralmente a última a ser cancelada 3;
ainda assim, tal cancelamento se dá de forma contínua, promovendo a
restrição intermitente dos tributos imerecidos e impedindo que o
verdadeiro caráter de tais tributos se mostre em sua máxima potência.
O
século XIX, especificamente, e ainda mais o início do século XX, estão
repletos de exemplos desses colapsos – um sem-número deles. Uma soma em
dinheiro é investida em determinada empresa. A empresa não atende às
expectativas. Embora o dinheiro não produza mais juros legítimos, são
emitidos debêntures, com garantia de juros estritamente usurários. Esses
juros são pagos por algum tempo, até que, por fim, chega-se a um ponto
em que nem mesmo os juros da debênture podem ser pagos. Todo o negócio
se desfaz e o tributo usurário não pode mais ser exigido. É possível ver
esse processo em funcionamento hoje em muitos setores da indústria
têxtil. A fábrica está em dificuldade; o banco concede um empréstimo com
a atribuição de juros, embora não haja superávit de riqueza em relação
ao custo da produção. Os juros são pagos a partir de fontes externas;
mas o processo não pode continuar eternamente e, em dado momento, o
banco tem de cancelar o empréstimo como dívida incobrável. Como o banco
continua a extrair recursos de outros investimentos bem-sucedidos e
lucrativos, prossegue próspero a gerar dinheiro, sua receita aumenta, e a
parte perdida por conta do colapso da Usura é ocultada no esquema
produtivo geral. Não se faz distinção entre o caráter usurário de
determinados recebimentos e o caráter legítimo da maioria. Mas, quando
uma sociedade exibe sinais de decadência econômica, a verdadeira
natureza da Usura, submersa e oculta nos tempos de prosperidade,
fatalmente emerge acima da superfície.
Há muitos anos, o Sr. Orage, escrevendo em seu jornal, The New Age,
traçou a esse respeito um dos muitos quadros ilustrativos e vívidos da
questão, com o talento para a exposição que o tornou famoso. Ele partiu
do exemplo de um oásis de palmeiras no deserto com um suprimento de água
alcançado por meios bastante primitivos. Eis que surge um financiador
disposto a emprestar dinheiro para o desenvolvimento. O capital é
empregado de forma produtiva; poços artesianos são perfurados; o
suprimento de água aumenta em grande escala; instaura-se maior
organização do cultivo de palmeiras; a produção do oásis cresce com
rapidez de um ano para outro; a demanda legítima de lucros pelo
financiador faz parte do total de riqueza extra anual, cuja existência
se deve ao seu empreendimento. Todos participam da prosperidade geral.
Então,
seja devido a desgaste, guerra, epidemia, variações no mercado externo
ou alguma calamidade climática, as coisas começam a dar errado. A
riqueza produzida anualmente pelo oásis decai. Contudo, ainda é preciso
pagar os juros sobre o dinheiro emprestado. À medida que aumenta o
constrangimento dos agricultores, eles contraem empréstimos para pagar
os juros até um ponto de "sobreposição" em que, paradoxalmente, o
banqueiro parece cada vez mais próspero, embora a comunidade que o
sustenta o seja cada vez menos. Mas, pela simples aritmética, o processo
precisa ter um fim. Chegará o momento em que o agricultor não mais
conseguirá obter dinheiro para pagar os juros, que há muito deixaram de
ser moralmente devidos. A mera coerção, sob um sistema policial
todo-poderoso, já lhe arrancou até os últimos centavos. A "sobreposição"
entre prosperidade real e aparente – apenas financeira ou burocrática –
deixa de existir; e a riqueza temporária desfrutada pelo credor chega
ao fim, tal como ocorrera com a prosperidade real do devedor.
Em
outras palavras, a grande prosperidade bancária em determinado período
pode ser, e geralmente é, prova da prosperidade geral naquele período;
mas não necessariamente, e nem sempre é assim. Uma não é o complemento
inevitável da outra.
A essas conclusões gerais, há outra objeção que será feita prontamente por qualquer pessoa com razoável conhecimento histórico:
"O
senhor afirma" [diz o objetor] "que em outros tempos, quando a Fé tinha
alcance universal – época que talvez o senhor considere mais sadia,
embora houvesse certamente muito menos riqueza e fosse preciso lidar com
uma população, além de mais simples, muito menor – a Usura era
proibida. Isso é verdade. Porém, o senhor erra ao argumentar que existe
uma diferença essencial entre aquela época e a nossa, mais exatamente em
relação ao passado recente, que o senhor denomina “o reino da Usura”,
com a prevalência de uma ética diferenciada em cada um desses períodos. O
senhor confunde o que é proibido com o que não é feito. É verdade que o código moral da Cristandade em tempos Católicos proibia a Usura e a punia; até mesmo na época das Cartas Provinciais
de Pascal, os homens sentiam indignação moral para com a Usura e, até o
final do século XVIII, a punição continuava a ser exercida nos
tribunais e a vigorar nos códigos legais onde quer que a Igreja
detivesse poder. Mas, a bem da verdade, a Usura sempre existiu, pois
sempre deverá existir. É impossível traçar uma linha divisória entre os
empréstimos produtivos e os improdutivos. O dinheiro emprestado a um
doente pode criar as condições para que ele volte a ser produtivo, sendo
considerado, portanto, um empréstimo indiretamente produtivo, apesar da
intenção originalmente improdutiva. O valor de um empréstimo contraído
por um perdulário para seus prazeres pode, no evento de sua morte antes
que tivesse tempo de gastá-lo, ser transferido a um herdeiro econômico,
que irá investi-lo de forma produtiva. Tais considerações sempre
exerceram forte influência sobre a mente humana. Por isso encontramos a
Usura amplamente disseminada, mesmo em épocas e sociedades que a
condenavam sob o ponto de vista moral.
"Além
do mais, mesmo naqueles casos onde é possível [o que certamente não é a
regra] traçar uma linha exata entre os empréstimos produtivos e os
improdutivos, há inúmeras formas de se burlar a proibição de cobrar
juros sobre um empréstimo improdutivo, evadindo-se ao dever de descobrir
se o empréstimo é produtivo ou não. Por exemplo, os governos Católicos,
tanto quanto os Protestantes, emitiam os que os franceses denominaram “Rentes” – compromissos
governamentais de pagamento de renda anual. Henrique IV da França, após
sua conversão, era especialmente ativo nesse tipo de empréstimo. Filipe
II da Espanha, o grande defensor do Catolicismo, afundou-se até o
pescoço em constrangimento por tomar empréstimos a juros altos –
ironicamente, das mesmas pessoas que vinham destruindo sua renda. Um
governo preparando-se para ir à guerra – ou seja, prestes a gastar
dinheiro em uma atividade normalmente improdutiva – implorava aos
financiadores que comprassem direitos anuais sobre sua receita; e não
existe qualquer diferença entre isso e a prática moderna de emissão de
títulos da dívida pública. Havia ainda o óbvio método de assinar uma
nota promissória em troca de dinheiro e receber uma soma menor do que a
mencionada. Thomas Cromwell, de piedosa memória, foi adepto
incondicional dessa prática, em uma época na qual toda a moralidade
Católica em relação à Usura ainda era incontestável. Muito antes, em
plena Idade Média, os príncipes tomavam empréstimos constantes para suas
guerras – principalmente do recém-surgido sistema bancário italiano; e
ainda antes, quando a Usura era privilégio excepcional, mas concedido
legalmente aos judeus, e fonte de imensa renda para os príncipes
Cristãos sob os quais viviam, a prática era admitida abertamente. Assim,
a Usura sempre ocorreu na sociedade humana. E sempre ocorrerá; toda
discussão sobre o assunto é meramente acadêmica e fútil."
A
isso, respondo que o raciocínio lógico sobre assuntos práticos jamais é
fútil. Se eu afirmar que o consumo excessivo de álcool faz mal à
constituição física do ser humano, especialmente após certa idade, não é
resposta satisfatória apresentar-me exemplos de alcoólatras que viveram
até os noventa anos. O efeito danoso do excesso de álcool é algo
demonstrável e, para qualquer pessoa de mente honesta, inquestionável. É
uma simples questão de submeter à razão a experimentação e a
experiência. Nos casos em que a experiência parece contradizer
conclusões verdadeiras, o que de fato contradiz tais conclusões são
outras forças, que não esvaziam seu caráter de verdade. [ênfase acrescentada]
O
mesmo se dá com a verdade sobre a Usura. Seus efeitos empobrecedores,
enquanto mascarados ou contrabalançados pela atuação de forças mais
potentes, são negligenciados. No entanto, continuam a existir e estão
sempre em atividade. Há grande utilidade prática em saber da existência
de uma verdade, mesmo que oculta. Esse conhecimento é algo a ser mantido
como um trunfo para permitir a ação quando chegar o momento crítico de
sua aplicação.
Em seguida, é preciso
apontar que existe toda a diferença do mundo entre um sistema que admite
um princípio imoral e outro que nega tal princípio, embora a
imoralidade seja praticada. Estão presentes na sociedade, e
provavelmente sempre estarão inúmeros casos de adultério, assassinato,
fraude e tudo o mais; contudo, existe enorme diferença entre a sociedade
onde os direitos à propriedade são admitidos, o casamento é sagrado e
tirar uma vida humana é abominável, e outra onde as relações sexuais são
promíscuas, o Comunismo prevalece ou o assassinato para fins de
vingança particular ou por mero impulso constitui passatempo aceitável.
Assassinar um desafeto, fugir com a esposa do vizinho e até mesmo bater a
carteira de alguém ainda estão entre as anomalias da nossa sociedade:
anomalias que nós, pessoas antiquadas, atribuímos à Queda do Homem, mas
cuja ocorrência nem o mais entusiástico pelagiano poderá negar. Existe
toda a diferença do mundo entre uma sociedade onde esses lapsos
continuam a existir, ou mesmo são tolerados, e outra onde são
considerados positivos. [ênfase acrescentada]
O
homem se sustenta sobre duas pernas, mas pode apoiar-se em uma ou em
outra. Assim (para utilizar um exemplo que desenvolvo em outro ensaio), a
sociedade, no que se refere à lei, precisa insistir tanto na justiça
quanto na ordem; e, sem dúvida, em qualquer sociedade civilizada a
justiça tende a ser sacrificada em benefício da ordem. Mas existe toda a
diferença do mundo entre o ambiente e o caráter de uma sociedade onde a
injustiça é considerada mais abominável do que a desordem e outra onde a
desordem é considerada mais abominável do que a injustiça. Duas partes
de um elemento químico para quatro partes de outro resultarão em
determinado produto. Alterando-se as proporções, surgirá um produto
inteiramente diferente. Uma sociedade em que a Usura, embora praticada, é
considerada imoral (não totalmente, admito, para benefício do
desenvolvimento econômico) é muito diferente de outra onde é considerada
moral. Uma sociedade onde o credor considera seu dever moral examinar o
objetivo de um empréstimo antes de levar em conta seu lucro pessoal é
diferente de outra onde não se espera que ele faça tal coisa. Um mundo
onde os juros sobre empréstimos improdutivos são repudiados e o Usurário
é um malfeitor constitui sociedade muito distinta de outra onde os
homens deixaram de questionar se um empréstimo irá ou não gerar lucro;
e, ademais, é diferente de outra como a nossa, onde juros sobre qualquer
empréstimo são exigidos como uma espécie de direito moral sagrado, sem
qualquer relação com a produtividade do empréstimo – ou a ausência dela.
Bem,
como para todo mal deve haver um remédio, o que podemos dizer da Usura
nos tempos atuais? Como insisto em esta discussão tem o caráter prático,
e quanto à prática?
Suponhamos que nosso
oponente tenha sido convencido; deixemo-no replicar: "Concordo que a
Usura seja um mal. E mais, estou inclinado a concordar que, por fim,
começamos a perceber seus efeitos nefastos em todo o mundo –
principalmente pelo assustador exemplo dos empréstimos da Grande Guerra.
Então, o que devemos fazer a respeito?"
A
isso, respondo, por minha vez, que não se pode fazer nada de imediato.
Não se pode eliminar uma parte essencial de qualquer estrutura social
existente. Todo o mundo de hoje se assenta sobre a estrutura bancária, e
todo o sistema de investimentos considera normalmente impossível
qualquer consulta sobre o caráter produtivo ou improdutivo de um
investimento.
Há casos especiais, de cunho
particular, onde se pode fazer a distinção claramente, e nesses casos
verifica-se a ação dos homens de bem (como no caso dos empréstimos a
indivíduos do nosso círculo de conhecimentos), pois a consciência humana
atua em todos os momentos, ainda que na sociedade mais corrupta e
complexa. Mas, em noventa e nove por cento dos casos, é impossível fazer
essa distinção. Um homem se sacrifica para economizar. Ele precisa
aplicar suas economias em um sistema que considera normal a cobrança de
juros sem qualquer análise, e onde todos os infinitos detalhes de um
sistema mundial de produção, distribuição e intercâmbio se baseiam há
tanto tempo na aceitação da Usura – bem como no cálculo muito mais amplo
dos lucros legítimos – que, na prática, não é mais possível
distingui-los, assim como seria impossível separar as cores no tonel de
um tintureiro. Se eu me ausentar por seis meses e deixar dinheiro
depositado no banco, dificilmente poderei perguntar o que o banco fará
com ele; e, mesmo que o fizesse, eles não me poderiam dizer. Ninguém
poderia afirmar qual a parte destinada a alimentar animais em uma
fazenda de extração de peles no Canadá; quanto se destinaria a um jovem
que vem fazendo grandes retiradas com suas ações e gastando tudo em uma
vida desregrada; e quanto contribuiria para o desenvolvimento de uma
mina produtiva nos Andes. Que homem, em sã consciência, hesitaria em
depositar o resultado de sua abnegação cotidiana em um título de renda
fixa, ou suas modestas mil libras esterlinas em um Empréstimo de Guerra –
esse exemplo gritante de Usura? O sistema precisa prosseguir até seu
colapso, e mesmo a palavra “colapso” é imprecisa. Se a história servir
como guia, o termo certo será “decadência”. Um pensamento animador.
Fiz bem em chamar este livro de Ensaios de um Católico, em vez de Ensaios Católicos.
Pois, caso se tornasse uma questão de disciplina Católica que os homens
de hoje não se envolvessem nessa prática impura – o empréstimo
improdutivo com cobrança de juros – tal disciplina já nasceria
condenada. Não seria possível obedecer à ordem eclesiástica. Se, ao
propor tal análise, eu envolvesse também meus companheiros Católicos nas
conclusões peculiares alcançadas, causaria prejuízo não apenas ao senso
comum de meus confrades, mas também ao seu senso de humor.
O
Sr. Belloc encerrou com a mesma frase em grego, mas, como a maioria dos
navegadores não tem instalados caracteres em grego antigo, excluí a
última linha do ensaio para evitar que aparecessem caracteres sem
sentido.
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1.
Quando eu, ainda garoto em Oxford, começava a articular minhas ideias,
um sábio professor nos assegurou em sua preleção que o texto de
Aristóteles deve ter sido adulterado, pois ele jamais poderia ter dito
algo tão tolo como chamar a usura de errada. Do que São Tomás de Aquino a
chamou, aposto que ele nunca soube.
2. Descobri em Túnis, há
três anos, que um plantador de oliveiras muçulmano com o propósito de
contrair empréstimo para o desenvolvimento de sua propriedade não podia
obter o dinheiro de outros muçulmanos, mas precisava pedi-lo aos
europeus.
3. Vide os juros continuados ainda pagos sobre
créditos bancários por nossas indústrias falidas. Outro excelente
exemplo de cancelamento de juros usurários é a redução das dívidas da
França e da Itália para com os Estados Unidos.
Extraído de ESSAYS OF A CATHOLIC, TAN Books, publicado originalmente em 1931.