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terça-feira, 8 de julho de 2025

O Corredor do Sahel: nova disputa geopolítica no coração da África

Resumo

Este artigo analisa o crescente interesse geopolítico na região do Sahel, na África, e sua importância estratégica como um corredor de integração continental que conecta o Oceano Atlântico, através de Dacar (Senegal), ao Mar Vermelho, via Eritreia e Sudão. À luz de analogias históricas como o Mapa Cor-de-Rosa português e o atual redesenho das rotas de influência global, argumenta-se que o Sahel está se tornando uma peça-chave no tabuleiro da nova disputa neocolonial por influência, recursos e corredores logísticos alternativos aos eixos eurasiáticos tradicionais.

1. Introdução

A história dos impérios está marcada pela busca por corredores estratégicos. No século XIX, Portugal projetou o Mapa Cor-de-Rosa, uma ambiciosa tentativa de conectar suas colônias africanas de Angola a Moçambique por terra. Mais de um século depois, vislumbra-se um projeto semelhante, agora não por um império específico, mas por uma coalizão de interesses geopolíticos globais que atuam no cinturão do Sahel — uma zona de transição ecológica e civilizacional entre o deserto do Saara e a savana africana.

2. A geografia estratégica do Sahel

O Sahel compreende uma faixa que atravessa o continente africano de oeste a leste, incluindo países como Senegal, Mali, Burkina Faso, Níger, Chade, Sudão e Eritreia. Historicamente, essa região foi palco de rotas transaarianas de comércio, incluindo escravizados e ouro. Hoje, é palco de guerras civis, insurgências jihadistas, golpes militares e interesses externos convergentes¹.

A localização do Sahel é estratégica por duas razões:

  • Conecta o Atlântico (porto de Dacar) ao Mar Vermelho, ponto de acesso ao Canal de Suez, por onde transita cerca de 12% do comércio global²;

  • Está situado entre o Magreb árabe e a África subsaariana, servindo como elo político, cultural e militar entre essas duas regiões.

3. O corredor geopolítico em formação

A tentativa de organizar um corredor transaheliano é evidente. Ele seria composto por:

  • Dacar, no Senegal, como ponto de partida no Atlântico;

  • Níger e Chade, como zona de transição e interconexão;

  • Sudão e Eritreia, como portais de saída no Mar Vermelho.

Esse corredor favorece rotas comerciais, deslocamentos militares e acesso a recursos como urânio (Níger), petróleo (Chade e Sudão), ouro (Burkina Faso) e mão de obra barata. A infraestrutura desejada inclui ferrovias, oleodutos, cabos de dados e bases militares³. 

4. A nova corrida pelo Sahel

Hoje, diversos atores internacionais disputam o controle e a influência no Sahel:

  • A França, com sua Operação Barkhane (agora em retirada), buscava conter a insurgência jihadista;

  • Os Estados Unidos, com drones e forças especiais, mantêm presença em Níger;

  • A Rússia, com apoio paramilitar (Grupo Wagner), atua em Mali, Burkina Faso e Sudão⁴;

  • A China, com investimentos em infraestrutura e logística, busca garantir escoamento de minérios e acesso ao Suez;

  • A Turquia e os países árabes do Golfo, expandem sua influência cultural, religiosa e econômica, sobretudo no Chifre da África⁵.

5. Uma Linha Global: Dacar – Balboa

Chama atenção o fato de que uma linha reta de Dacar, atravessando o Atlântico Sul, conecta-se ao Brasil (especialmente ao Nordeste) e pode ser prolongada até o Canal do Panamá, mais precisamente até Balboa, porta de saída para o Pacífico. Essa conexão sugere uma linha contínua de trânsito geopolítico e comercial, alternativa ao eixo Eurásia-Oriente Médio-Europa.

Assim como o Brasil já foi um entreposto logístico de Portugal entre a África e a Ásia, hoje o país pode desempenhar papel semelhante numa nova arquitetura atlântica, com o Sahel como pivô africano.

6. Conclusão

O projeto de um corredor transaheliano é mais do que uma questão africana: trata-se de uma peça-chave na redefinição das rotas comerciais, militares e diplomáticas do século XXI. Tal como o Mapa Cor-de-Rosa foi um projeto de império, o corredor do Sahel é um projeto de múltiplos impérios informais — financeiros, logísticos e militares. A disputa em curso mostra que o Sahel, antes periférico, tornou-se um epicentro geopolítico global.

Notas

  1. BODLEY, John H. Anthropology and Contemporary Human Problems. Lanham: Rowman & Littlefield, 2011.

  2. THE WORLD BANK. Suez Canal Authority Statistics 2023. Washington D.C.: World Bank Data Repository.

  3. AFRICAN UNION. Trans-Sahelian Corridor Development Plan. Addis Ababa: AU Publications, 2022.

  4. INTERNATIONAL CRISIS GROUP. Russia’s Influence in the Sahel: What It Really Means. Brussels, 2023.

  5. TELL, Karam. “The Horn of Africa and Turkey’s Rise in Africa.” Middle East Policy, vol. 29, no. 1, 2022.

Referências 

AFRICAN UNION. Trans-Sahelian Corridor Development Plan. Addis Ababa: AU Publications, 2022.

BODLEY, John H. Anthropology and Contemporary Human Problems. Lanham: Rowman & Littlefield, 2011.

INTERNATIONAL CRISIS GROUP. Russia’s Influence in the Sahel: What It Really Means. Brussels, 2023.

TELL, Karam. The Horn of Africa and Turkey’s Rise in Africa. Middle East Policy, [S.l.], v. 29, n. 1, 2022.

THE WORLD BANK. Suez Canal Authority Statistics 2023. Washington D.C.: World Bank Data Repository.

"Holiday on Ice": férias ou fuga imaginativa? O mal-entendido cultural na tradução brasileira de "holiday" e "vacation"

No Brasil, a palavra “férias” é tradicionalmente traduzida para o inglês como vacation (inglês americano) ou holiday (inglês britânico). Embora corretas nos dicionários, essas traduções escondem uma sutileza semântica importante: tanto vacation quanto holiday carregam, na experiência nativa anglófona, a ideia de deslocamento para longe de casa, preferencialmente a lugares exóticos, paradisíacos ou ao menos distintos da rotina comum. Trata-se, portanto, de um tempo de “ausência do mundo habitual”.

No contexto brasileiro, porém, férias significa algo mais doméstico, cotidiano, muitas vezes limitado ao descanso em casa ou ao convívio familiar. Nem todo brasileiro viaja durante as férias — de fato, a maioria não o faz. Assim, ao usar vacation ou holiday como tradução direta de férias, perde-se o valor de deslocamento simbólico que essas palavras carregam no inglês nativo.

Essa diferença de significação revela-se com clareza em eventos culturais como o famoso espetáculo Holiday on Ice, apresentado regularmente no Maracanãzinho, no Rio de Janeiro, durante os anos 1980 e 1990. Muitos brasileiros presumiam que o termo “holiday” no título fazia referência direta às férias escolares — o que explicaria o sucesso do evento entre as crianças. No entanto, essa é uma leitura limitada e, em certo sentido, equivocada.

O “holiday” de Holiday on Ice não está associado apenas ao recesso do calendário escolar, mas sim a uma viagem imaginativa e estética, um afastamento do ordinário por meio do encantamento. Trata-se de um espetáculo que transforma o gelo em palco de sonhos e transporta o público, sem sair do lugar, a um mundo mágico — o “lugar distante” evocado pelo termo holiday. Nesse sentido, o holiday não é físico, mas simbólico. O gelo torna-se paisagem de outro mundo; a patinação, uma forma de levitação poética. O brasileiro, entretanto, muitas vezes assistia ao show sem captar essa referência.

Esse desencontro entre significados revela mais do que um problema de tradução: expõe um descompasso entre imaginários culturais. A cultura americana e britânica pressupõe uma mobilidade individual e geográfica que nem sempre encontra paralelo na experiência social brasileira. Para os anglófonos, férias significam estar fora de casa. Para muitos brasileiros, férias são estar em casa, sem obrigações.

A tradução literal apaga essa nuance e, com isso, transforma um “feriado imaginativo” num simples “intervalo de aulas”. O nome Holiday on Ice torna-se, assim, um produto importado cujo sentido pleno permanece em boa parte inacessível ao seu público brasileiro — não por ignorância, mas por diferença de cosmovisão.

Como tantos outros elementos da cultura globalizada, esse caso evidencia o quanto é necessário ir além da tradução literal, atentando para os significados culturais implícitos. Traduzir não é apenas trocar palavras; é também compreender mundos.

Notas

  1. HOLIDAY ON ICE. História do espetáculo. Disponível em: https://www.holidayonice.com

  2. A diferença entre vacation e holiday no inglês é discutida em diversos guias de estilo e dicionários de uso. Ver, por exemplo: GARNER, Bryan A. Garner’s Modern English Usage. Oxford University Press, 2016.

  3. Sobre o imaginário das férias e o deslocamento simbólico, cf. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

  4. Dados sobre o acesso dos brasileiros às viagens nas férias podem ser encontrados no IBGE: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Turismo (última edição disponível).

Folga como Estratégia: a gestão de talentos no beisebol profissional

Em poucas modalidades esportivas o desgaste físico e mental é tão constante quanto no beisebol profissional. Na Major League Baseball (MLB), por exemplo, as equipes enfrentam uma maratona de 162 jogos durante a temporada regular, sem contar os playoffs. Com partidas praticamente todos os dias — muitas vezes em cidades diferentes, exigindo viagens aéreas constantes e mudanças de fuso horário —, a manutenção da performance dos atletas se torna um desafio tanto físico quanto estratégico.

Nesse contexto, a prática de conceder dias de folga remunerada aos jogadores mais produtivos não é apenas um gesto de cortesia. Trata-se de uma medida calculada, com objetivos de curto, médio e longo prazo. A folga, nesse caso, não é sinônimo de ausência ou displicência — é parte de um plano de conservação e maximização do talento ao longo de uma longa e exigente jornada competitiva.

Descanso como ativo

Tomemos como exemplo Clayton Kershaw, arremessador do Los Angeles Dodgers. Em várias temporadas, Kershaw teve seu calendário cuidadosamente administrado, com folgas intercaladas durante a temporada regular, mesmo estando em plena forma. O objetivo? Preservar seu braço para outubro, quando os Dodgers esperavam disputar a World Series¹.

Outro exemplo é Aaron Judge, astro do New York Yankees, conhecido por sua explosão ofensiva. Em 2022, mesmo em meio a uma temporada histórica com 62 home runs — quebrando o recorde da Liga Americana —, o técnico Aaron Boone o poupou em algumas partidas estratégicas para manter sua consistência ao longo da temporada². Resultado: Judge não apenas terminou como líder em home runs, mas também foi coroado com o prêmio de MVP.

Esses casos revelam que o descanso, longe de ser sinal de fraqueza ou luxo, é ativo tático fundamental em uma liga que exige constância e resiliência.

Desenvolvimento de novos talentos

Essas folgas abrem espaço para outro objetivo igualmente importante: dar rodagem aos jovens jogadores das ligas menores (Minor Leagues). Cada franquia da MLB possui um sistema de desenvolvimento robusto, com várias equipes afiliadas em categorias como Triple-A, Double-A e Single-A. Quando um titular recebe folga, é comum que o time promova um jovem promissor para ocupar temporariamente sua vaga no elenco principal.

Foi o que aconteceu, por exemplo, com Juan Soto, promovido ao time principal do Washington Nationals em 2018, aos 19 anos, após uma lesão e descanso programado de alguns veteranos³. O jovem dominicano brilhou de imediato, tornando-se peça-chave na campanha que culminou no título da World Series em 2019.

Esses testes antecipados são fundamentais para preparar os jogadores para a atmosfera das grandes ligas, ensinando-lhes a lidar com a pressão do público, com a mídia, com o calendário apertado e, sobretudo, com o nível técnico dos adversários.

Comparações com outras modalidades

Essa filosofia de rotatividade e descanso seletivo também pode ser observada, com adaptações, em outras modalidades esportivas. Na NBA, por exemplo, tornou-se comum o conceito de load management, sobretudo com estrelas como Kawhi Leonard ou LeBron James, que em determinadas partidas da temporada regular são poupados para preservar seu rendimento nos playoffs⁴.

No futebol europeu, clubes como o Real Madrid ou o Manchester City frequentemente fazem rotação de elenco durante os torneios nacionais menos relevantes, poupando suas estrelas para a Champions League. A diferença, no entanto, é que o beisebol não oferece essa mesma flexibilidade tática durante os jogos: a substituição de um jogador é, na maior parte das vezes, definitiva. Isso exige ainda mais planejamento por parte dos técnicos.

Uma lição de gestão

No fundo, a prática de conceder folgas estratégicas é expressão de uma filosofia organizacional madura: reconhecer o valor do descanso, valorizar os talentos formados em casa e preparar o futuro sem sacrificar o presente. A franquia que consegue equilibrar essas dimensões forma uma cultura vencedora, onde o desempenho individual é protegido, o coletivo é fortalecido e o futuro é cultivado com sabedoria.

Em um mundo que glorifica a produtividade contínua e o esforço ininterrupto, o beisebol ensina algo precioso: saber parar é, muitas vezes, o que permite continuar vencendo.

Notas de rodapé

  1. VERDUCCI, Tom. Inside the Dodgers' master plan to manage Clayton Kershaw. Sports Illustrated, 2017.

  2. MLB. Aaron Judge rests as Yankees plan postseason push. Major League Baseball, 2022.

  3. SHEEHAN, Joe. The meteoric rise of Juan Soto. Baseball Prospectus, 2019.

  4. LEMIRE, Joe. The NBA's load management dilemma: science or strategy? The Athletic, 2021.

Referências bibliográficas 

LEMIRE, Joe. The NBA's load management dilemma: science or strategy?. The Athletic, 2021. Disponível em: https://theathletic.com. Acesso em: 08 jul. 2025.

MAJOR LEAGUE BASEBALL. Aaron Judge rests as Yankees plan postseason push. MLB, 2022. Disponível em: https://mlb.com. Acesso em: 08 jul. 2025.

SHEEHAN, Joe. The meteoric rise of Juan Soto. Baseball Prospectus, 2019. Disponível em: https://www.baseballprospectus.com. Acesso em: 08 jul. 2025.

VERDUCCI, Tom. Inside the Dodgers' master plan to manage Clayton Kershaw. Sports Illustrated, 2017. Disponível em: https://www.si.com. Acesso em: 08 jul. 2025.

A formalidade como fidelidade: entre a zombaria e a memória do Império

É comum que, em ambientes onde a informalidade se impôs como norma cultural, a postura formal seja vista como artificial, afetação ou até arrogância. Para quem, como eu, adota um trato cerimonioso mesmo no seio da própria família, não é raro ouvir piadas, comentários maliciosos ou tentativas de ridicularização. No entanto, o que para muitos é apenas uma excentricidade, para mim é expressão consciente de uma fidelidade: a forma que encontrei para me manter espiritualmente vinculado ao Império do Brasil, que é a realidade histórica com a qual me identifico.

A forma molda o espírito

A linguagem formal não é apenas um código social; ela é uma forma de ordenar o mundo interior. Assim como um rito preserva a sacralidade de uma celebração, a formalidade no trato cotidiano preserva uma hierarquia interior, um senso de ordem que resiste ao nivelamento igualitário típico da modernidade. Ao escolher ser formal com todos — inclusive com os mais íntimos — não estou me distanciando das pessoas, mas me aproximando de um ideal civilizacional que reconhece a dignidade do outro, mesmo quando o outro não reconhece a sua própria.

O Império do Brasil não é, para mim, um dado de museu ou um saudosismo oco. É a estrutura legítima da brasilidade enquanto expressão católica, hierárquica e orgânica, profundamente enraizada na nossa história. Quando uso do "senhor", do "vossa senhoria", ou trato meus pais e tios com reverência verbal, não estou copiando etiquetas europeias — estou, isso sim, praticando uma memória ativa, um gesto de resistência simbólica contra a república informal que dissolveu os vínculos entre forma, conteúdo e sentido.

A zombaria e o espírito revolucionário

A zombaria dirigida à formalidade não é neutra. Como bem alertava Gustavo Corção, há no riso moderno uma intenção política — o riso do homem moderno é frequentemente a gargalhada do demônio, que zomba da ordem e das hierarquias. Por trás da piada está o espírito igualitarista que não suporta ver alguém tratando as coisas com reverência. A zombaria é o escudo do ressentimento.

Isso também foi percebido por autores como Gilberto Freyre, que via na formalidade luso-brasileira uma forma de urbanidade que sobrevivia ao tempo, embora cada vez mais marginalizada. Para Freyre, o Brasil patriarcal não era perfeito, mas era humano — e sua formalidade era uma das formas de preservar o tecido social.

O Império como pátria espiritual

Há pessoas que se sentem americanas, mesmo tendo nascido em outro lugar. Outras se identificam com o Oriente ou com a Revolução Francesa. Eu me identifico com o Império do Brasil. E essa identificação não é uma escolha arbitrária, mas o reconhecimento de uma vocação pessoal, como se minha alma tivesse sido chamada a servir aquilo que a modernidade dissolveu.

Minha formalidade é, portanto, um ato de lealdade invisível, uma espécie de uniforme espiritual. Quando todos ao meu redor tratam o mundo com desdém, eu me esforço por tratá-lo com honra. Quando tudo parece se dissolver em gírias, piadas e apelidos, eu me apego ao "senhor", ao "você" com sua carga original — "vossa mercê" — e ao modo imperial de ser brasileiro: digno, civilizado, cristão.

A forma é já uma forma de resistência

Enquanto zombam de mim, sigo firme. A zombaria, afinal, é sintoma de uma época que já perdeu os laços com seu passado e com seu futuro. E se não posso restaurar o Império pelas mãos, posso restaurá-lo nos modos, no falar, no trato. Pois como já ensinava Dom Bertrand de Orleans e Bragança, a restauração começa no coração e na conduta daqueles que recusam a mentira revolucionária.

Minha formalidade é, pois, meu modo de dizer: eu me lembro. E quem se lembra, resiste.

Bibliografia Recomendada:

  • CORÇÃO, Gustavo. A Descoberta do Outro. São Paulo: Agir, 1967.

  • FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Global, 2003.

  • DOM BERTRAND DE ORLEANS E BRAGANÇA. Psicose Ambientalista. São Paulo: Editora Resistência Cultural, 2012.

  • GALVÃO DE SOUSA, José Pedro. O Direito Natural. São Paulo: Ed. Vera Cruz, 1950.

  • MACINTYRE, Alasdair. After Virtue. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1981.

A revolução dos moinhos automatizados durante a Era John Adams: o gênio de Oliver Evans e os primeiros passos da indústria americana

1. O contexto tecnológico da Era John Adams

No final do século XVIII, os Estados Unidos recém-independentes buscavam se modernizar, adotando e desenvolvendo tecnologias que os afastassem da dependência de produtos europeus. A agricultura era a principal base econômica, e o processamento de trigo em farinha era uma das atividades mais comuns e necessárias.

Os moinhos hidráulicos já estavam presentes desde o período colonial, herdados das tradições europeias. Utilizavam a força da água para girar grandes pedras de moer. Entretanto, o processo ainda exigia bastante trabalho manual: o trigo precisava ser transportado de um compartimento a outro, as peneiras eram operadas por homens, e o produto final era ensacado de forma artesanal.

Foi nesse cenário que surgiu um marco da engenharia industrial americana: o trabalho de Oliver Evans.

2. Oliver Evans: o primeiro engenheiro industrial dos EUA

Nascido em Delaware, em 1755, Oliver Evans foi um inventor autodidata que dedicou sua vida à melhoria dos processos mecânicos na indústria. Em 1785, construiu em New Castle, Delaware, o primeiro moinho de farinha totalmente automatizado do mundo.

O sistema de Evans utilizava:

  • Elevadores de caçamba (bucket elevators) para mover o trigo verticalmente;

  • Transportadores horizontais por correia (belt conveyors) para transferir o grão e a farinha entre seções do moinho;

  • Máquinas de peneiração automática (bolters) que separavam a farinha de outros resíduos;

  • Engrenagens e mecanismos sincronizados com o movimento da roda d'água para operar tudo em conjunto.

Esse sistema permitia que o trigo entrasse em um ponto do moinho e saísse como farinha, com mínima ou nenhuma intervenção humana direta no meio do processo — algo revolucionário para a época.

3. Reconhecimento e Disseminação

Apesar da resistência inicial de alguns moleiros tradicionais, a eficiência dos moinhos de Evans atraiu a atenção de importantes figuras do novo país:

  • George Washington implementou partes do sistema em seu moinho em Mount Vernon;

  • Thomas Jefferson também se interessou pela inovação;

  • As patentes de Evans foram consideradas pioneiras e abriram caminhos para a proteção de invenções industriais nos EUA.

Durante o governo de John Adams, a tecnologia de Evans já era conhecida, usada e discutida entre os grandes proprietários de terras, engenheiros e empresários americanos. Embora nem todos os moinhos fossem totalmente automatizados, os mais modernos o eram, especialmente na região do Meio-Atlântico.

4. Impacto Econômico e Cultural

A invenção de Evans ajudou a transformar os moinhos em centros industriais, antecipando os princípios da linha de montagem. Seu sistema reduziu os custos de produção, aumentou a produtividade e diminuiu o tempo de trabalho humano. Isso permitiu que os EUA se tornassem mais autossuficientes na produção de farinha e, posteriormente, em outras áreas industriais.

Mais ainda, a ideia de que processos poderiam ser mecanizados e integrados influenciou profundamente o desenvolvimento da indústria americana nascente — especialmente em tempos de guerras napoleônicas, quando importações da Europa se tornaram incertas.

5. Conclusão

Na virada do século XVIII para o XIX, os Estados Unidos estavam, com razão, em busca de seu lugar entre as nações industrializadas. A presidência de John Adams coincidiu com um dos saltos mais importantes nessa direção: a automatização dos moinhos de grãos, liderada por Oliver Evans. Sua genialidade preparou o caminho para a Revolução Industrial americana, mostrando que a inovação podia, de fato, nascer em solo americano.

Bibliografia:

  • Hunter, Louis C. A History of Industrial Power in the United States, 1780–1930, Vol. 1: Waterpower in the Century of the Steam Engine. Charlottesville: University Press of Virginia, 1979.

  • Evans, Oliver. The Young Mill-Wright and Miller's Guide. Philadelphia: Oliver Evans, 1795.

  • Calvert, Monte A. The Mechanical Engineer in America, 1830–1910: Professional Cultures in Conflict. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1967.

  • Hindle, Brooke & Lubar, Steven. Engines of Change: The American Industrial Revolution, 1790–1860. Washington, D.C.: Smithsonian Institution Press, 1986.

  • Roe, Joseph Wickham. English and American Tool Builders. New Haven: Yale University Press, 1916.

segunda-feira, 7 de julho de 2025

O soberanismo como fé metastática: o Estado a serviço da Revolução

 No debate político contemporâneo, é comum ouvir a afirmação de que o país é “soberano”, como se esta simples palavra pudesse encerrar qualquer discussão. No entanto, é preciso perguntar: soberano com base em quê? Em nome de quem? Para realizar qual fim? A soberania, quando não ordenada à verdade, torna-se um princípio vazio — ou pior, um instrumento de dominação que mascara uma estrutura de poder fundada no erro e sustentada pela conveniência.

Dizer que o país é soberano, tout court, é argumento típico de quem toma o país como religião. Tudo está no Estado, nada está fora dele, e sobretudo nada pode estar contra ele. O soberanismo absoluto é o lugar de fala do ditador: uma justificação circular do poder, fundada apenas em si mesma. Trata-se de uma fé política metastática — ou seja, uma fé deslocada de seu objeto verdadeiro (Deus e sua ordem) e transplantada para um simulacro (o Estado, o regime, o status quo). Uma fé que migra como o câncer, corroendo o organismo político sob a aparência de unidade.

Razão de Estado ou racionalização da mentira?

A história já nos deu fartas provas de como as chamadas “razões de Estado” podem ser invocadas para legitimar toda sorte de arbitrariedade. Na ausência de um critério objetivo de justiça — isto é, de uma instância transcendente que transcenda os interesses do governante — o Estado se converte em juiz de si mesmo, legislador último e executor supremo de uma ordem que já não tem outro fundamento senão a própria continuidade do poder.

Essa é a essência do status quo revolucionário: um regime que conserva os frutos da ruptura como se fossem conquistas permanentes. O novo dogma é o da estabilidade, e sua teologia é feita de siglas, protocolos e relatórios técnicos. A revolução se institucionaliza, se burocratiza, e o poder passa a justificar a si mesmo não pelo que é, mas pelo que “funciona” — isto é, pelo que convém.

Ocorre, porém, que a conveniência é um critério amoral. Uma política fundada no conveniente, dissociada da verdade, já não se orienta pelo bem comum, mas pela manutenção da mentira com aparência de normalidade. Como escreveu Santo Agostinho, “sem justiça, os reinos são apenas grandes bandos de ladrões”. E se a justiça não tem mais outro critério senão o que o Estado diz que é, então não há justiça: há apenas força.

A soberania sem verdade: um sacrilégio político

Quando o soberano não reconhece nada acima de si — nem Deus, nem a ordem natural, nem a moral objetiva —, ele se coloca no lugar de Deus. Essa usurpação tem forma política, mas raiz espiritual: é a repetição da tentação original, em que o homem deseja ser como Deus, decidindo o bem e o mal por si mesmo.

Neste cenário, a soberania é sacralizada. Ela se torna um sacramentum diaboli, um falso sacramento, um rito que consagra a mentira como se fosse paz, a violência como se fosse ordem, e a arbitrariedade como se fosse legalidade. A decisão soberana, quando dissociada da verdade, torna-se o instrumento de uma nova religião secular, cujo altar é o Palácio do Planalto, o Congresso, a Suprema Corte — e cujo clero é formado por tecnocratas, ministros e juristas que vivem de manter intacto o estado de coisas vigente.

É por isso que toda decisão fundada em razões de Estado, quando não subordinada à verdade, conserva não o bem, mas o mal. Não a justiça, mas a injustiça institucionalizada. O soberanismo moderno é, nesse sentido, a teologia da revolução em sua fase madura, uma fé metastática que já não sabe por que crê, mas apenas que deve continuar crendo — pois do contrário tudo desaba.

Da autoridade ao poder nu

A autoridade verdadeira nasce do serviço à verdade. O poder nu, ao contrário, nasce da capacidade de impor a vontade de alguns sobre todos. A transição da autoridade para o poder nu se dá quando a política abandona a verdade como critério de legitimidade. E isso acontece, inevitavelmente, quando a soberania se torna fim em si mesma, em vez de meio para garantir a justiça e o bem comum.

O resultado é o império da exceção: o soberano decide, e sua decisão é lei, mesmo que contrarie a moral, a tradição e o bom senso. Carl Schmitt, ao definir o soberano como “aquele que decide sobre o estado de exceção”, não previa que o estado de exceção se tornaria a regra — e que o soberano deixaria de ser um monarca cristão para se tornar uma comissão partidária, um tribunal constitucional ou uma coligação internacional de tecnocratas. A exceção vira método. O caos vira sistema. A revolução vira Constituição.

Conclusão: A fé que restaura a verdade

A restauração da ordem não pode vir de mais poder, mas de mais verdade. Só há soberania legítima quando ela é reconhecida como um encargo sob a autoridade de Deus. Só há paz verdadeira quando ela está fundada na justiça. E só há justiça quando a decisão política está subordinada à ordem moral e natural.

O desafio do nosso tempo é resistir à tentação de crer no Estado como ídolo e restaurar a política como serviço à verdade. Isso não é tarefa de ideólogos nem de partidos, mas de homens que se santificam pelo trabalho, estudam com diligência e reconhecem que a liberdade só floresce quando é cultivada no solo da verdade.

Notas:

  1. Santo Agostinho, A Cidade de Deus, Livro IV, cap. 4.

  2. Pio XI, Non Abbiamo Bisogno (1931), condenação do Estado totalitário.

  3. Carl Schmitt, Teologia Política (1922).

  4. Eric Voegelin, A Nova Ciência da Política (1952).

  5. Joseph Ratzinger, Verdade, Valores, Poder (2005).

Nine Provinces: Caravan — um voo de morcego na China Imperial

Comprei Nine Provinces: Caravan por duas razões muito claras. A primeira é que se trata de um jogo muito bem avaliado na Steam, daqueles que surpreendem pela profundidade apesar de terem sido feitos por desenvolvedores independentes. A segunda razão, talvez ainda mais decisiva, é sua ambientação: trata-se de um tycoon comercial situado na China Imperial — um tipo de jogo praticamente inexistente no Ocidente.

Essa ausência de paralelos culturais e mecânicos com os jogos tradicionais do nosso mercado já seria, por si só, motivo de curiosidade e estudo. Mas Nine Provinces: Caravan impõe uma barreira adicional para quem não lê chinês: ele está disponível apenas em Chinês Tradicional, sem tradução oficial para o inglês ou qualquer outro idioma ocidental.

Se hoje decido enfrentar essa barreira, é porque temos recursos que antes simplesmente não existiam. Jogar esse jogo me remete a uma memória dos anos 90: meu pai, ao se deparar com jogos japoneses de Mega Drive, dizia que eu só poderia jogá-los se aprendesse japonês. A ideia era desafiadora demais para a época. Além das limitações tecnológicas — não havia internet, YouTube nem inteligência artificial —, havia também as circunstâncias geográficas. Somos do Rio de Janeiro, uma região que praticamente não recebeu imigrantes japoneses¹. Como a maioria deles era formada por agricultores, muitos se estabeleceram no interior de São Paulo, e os mais empreendedores ajudaram a fundar o bairro da Liberdade, em São Paulo capital². A colônia japonesa mais próxima de casa ficava a cerca de 600 quilômetros de distância, o que, na prática, inviabilizava qualquer tentativa concreta de aprendizado da língua ou contato com aquela cultura.

Hoje, estando no computador, faço screenshots das telas do jogo e envio essas imagens para o ChatGPT, que funciona como um radar, traduzindo os ideogramas e me ajudando a compreender o que está sendo dito. Assim, transformo esse antigo voo às cegas num voo de morcego: continuo rumando ao desconhecido, mas agora com orientação.

Esse radar me permite não apenas jogar, mas também compreender a lógica cultural do jogo, seus valores e sua estrutura interna. É uma forma de imersão linguística e histórica que nenhum curso formal pode oferecer. No lugar de manuais didáticos, a motivação lúdica se torna um catalisador de aprendizado real, prático, encarnado no esforço constante de entender o outro através de sua língua, de sua estética e de sua organização do mundo.

Nine Provinces: Caravan, portanto, não é apenas um jogo. É uma ponte para o que há de mais particular na mentalidade chinesa: o comércio, a ordem imperial, a fluidez das relações, a tradição. E ao mesmo tempo, é uma oportunidade rara de experimentar esse universo a partir de uma perspectiva ativa, não como espectador, mas como participante — ainda que estejamos tateando nas sombras.

Notas de Rodapé

  1. Imigração japonesa no Brasil: Embora o Brasil seja o país com a maior comunidade japonesa fora do Japão, a maior parte dos imigrantes estabeleceu-se no estado de São Paulo, especialmente em áreas agrícolas como Bastos, Registro e Pereira Barreto. O Rio de Janeiro teve participação bem menor nesse processo.

  2. Bairro da Liberdade: Originalmente habitado por imigrantes italianos e portugueses, o bairro começou a se transformar num polo da cultura japonesa a partir da década de 1930. Hoje é símbolo da presença japonesa em São Paulo e sede de eventos culturais, templos budistas, escolas de idioma e lojas especializadas.

Bibliografia comentada

  • Tsuda, Takeyuki. Japanese Brazilian Ethnicity and Community Formation.
    Estudo sociológico sobre como os japoneses se estabeleceram no Brasil e como criaram redes de apoio que deram origem a bairros étnicos como a Liberdade. A obra oferece um bom panorama da questão geográfica e econômica da imigração.

  • Linger, Daniel Touro. Dangerous Encounters: Meanings of Violence in a Brazilian City.
    Ainda que o foco do livro seja a violência urbana, ele fornece um retrato útil da distância cultural entre o Rio de Janeiro e a imigração japonesa, mencionando a ausência de presença japonesa significativa na cidade.

  • Associação Brasileira de Estudos sobre Games (ABRAGAMES). História dos Jogos no Brasil: Dos Clones aos Indies.
    Traz contexto histórico dos jogos japoneses no Brasil nas décadas de 80 e 90, destacando o papel do Mega Drive e da Sega, que teve forte influência oriental nos seus lançamentos — frequentemente sem tradução ou localização.

  • DeFrancis, John. The Chinese Language: Fact and Fantasy.
    Excelente introdução ao sistema de escrita chinês e às dificuldades enfrentadas por quem tenta aprender a língua com base em exposição informal, como jogos. Útil para entender os desafios de quem enfrenta o idioma sem formação prévia.