Pesquisar este blog

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Kaishas econômicas, restauração institucional e o modelo peer-to-peer do crédito: por uma reconstrução civilizacional do Estado brasileiro

1. Introdução

A história econômica brasileira mostra que o país desenvolveu, sobretudo ao longo do século XX, uma arquitetura complexa de empresas estatais, cujas funções ultrapassavam a simples operação comercial. Essas entidades — as kaishas econômicas — eram instrumentos de fomento, coordenação produtiva, construção de infraestrutura, integração territorial, proteção social e mediação geoestratégica.

Contudo, há uma distinção essencial que precisa ser recuperada para compreender o lugar dessas kaishas na restauração das estruturas civilizacionais do Império do Brasil:

  1. Kaishas econômicas produtivas, isto é, indústrias de base (Petrobrás, CSN, Vale até 1997, etc.) — empresas destinadas a criar as condições materiais da soberania e do desenvolvimento industrial.

  2. Kaishas econômicas estratégicas, que constituem a infraestrutura institucional de fomento, financiamento e integração nacional (ECT, BNDES, Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil em seu papel originário, etc.).

A restauração da pátria — compreendida aqui como reintegração das instituições à sua teleologia civilizacional — não consiste simplesmente em privatizar ou estatizar. Trata-se, antes, de recolocar essas instituições sob a direção de uma classe dirigente moralmente qualificada, comprometida com os valores civilizacionais do Império do Brasil e capaz de dirigir a economia segundo esses princípios.

2. O sentido das kaishas econômicas: além do estatal e do privado

O termo “kaisha”, tomado do japonês (会社), não se limita ao significado moderno de “empresa”. Ele implica:

  • identidade institucional forte;

  • propósito nacional;

  • hierarquia funcional;

  • integração do indivíduo a uma missão coletiva;

  • continuidade histórica da organização;

  • compromisso ético entre empresa e sociedade.

As kaishas econômicas brasileiras — tanto as produtivas quanto as estratégicas — nasceram, nos melhores momentos, com esse espírito. O problema não é a sua existência; é a perversão de sua finalidade.

2.1. A perversão burocrático-republicana

Com a República, essas instituições deixaram de servir ao bem comum para servir:

  • a interesses partidários;

  • a suseranias privadas e transnacionais;

  • a elites políticas cooptadas;

  • a projetos ideológicos desconectados da tradição civilizacional brasileira.

O resultado é que as kaishas tornaram-se:

  • burocracias;

  • máquinas de intermediação política;

  • centros de poder parassoberano;

  • instrumentos de guerra de facções.

Assim, o diagnóstico fundamental que você aponta é correto: não basta privatizar. A simples mudança da propriedade não civiliza uma instituição. É necessário restaurar sua identidade, reordenar sua teleologia e recompor sua direção moral.

3. A necessidade de uma classe dirigente restauradora

A restauração institucional pressupõe, antes de tudo, uma classe econômica e política que assuma o comando dessas kaishas e as administre conforme os valores civilizacionais do Império do Brasil:

  • dignidade do trabalho;

  • honra aristocrática (no sentido moral, não de castas);

  • serviço público como extensão do serviço a Deus;

  • respeito à legalidade imperial;

  • disciplina administrativa;

  • orientação para o bem comum;

  • integração orgânica entre autoridade e responsabilidade.

Sem essa classe dirigente, qualquer reforma estrutural é meramente técnica — e o problema do Brasil é civilizacional, não técnico.

4. A Caixa Econômica Federal como matriz institucional

Quando criada pela monarquia, a Caixa Econômica Federal (então Caixa Econômica e Monte de Socorro) era:

  • instrumento de poupança popular;

  • instituição de confiança absoluta;

  • mecanismo de inclusão social;

  • expressão do paternalismo cristão da monarquia;

  • eixo regulador do crédito debaixo de princípios morais.

Ou seja, era uma kaisha civilizacional, não apenas financeira.

A restauração exige que as demais kaishas — produtivas ou estratégicas — recuperem esse ethos:

  • missão clara;

  • administração honorífica;

  • disciplina;

  • austeridade;

  • identidade institucional forte;

  • serviço público como vocação, não carreira.

5. O modelo Handelsbanken: crédito peer-to-peer e autonomia responsável

O Svenska Handelsbanken é um caso extraordinário de continuidade civilizacional na gestão bancária. Seu modelo se apoia em:

  1. Decentralisation radical: as decisões de crédito são tomadas nas agências locais, por quem conhece as pessoas, as empresas e as comunidades.

  2. Peer-to-peer credit: a relação financeira é baseada na confiança pessoal.

  3. Foco na poupança e prudência, não no endividamento agressivo.

  4. Ausência de metas de vendas (que destróem a moral bancária).

  5. Continuidade institucional e estabilidade administrativa.

  6. Baixíssimo índice de perdas históricas.

5.1. Aplicação ao Brasil imperial restaurado

O Brasil teria aqui um modelo capaz de:

  • quebrar o patrimonialismo;

  • eliminar a intermediação político-burocrática;

  • moralizar o crédito;

  • fortalecer a poupança popular;

  • integrar pequenas comunidades ao projeto civilizacional;

  • reforçar a soberania econômica nas margens do território.

Caixa Econômica Federal (em sua versão imperial restaurada) seria o pilar desse sistema, atuando ao mesmo tempo como:

  • banco de varejo;

  • banco de poupança popular;

  • banco de fomento descentralizado;

  • eixo moral do sistema financeiro.

6. Privatizar ou civilizar?

A fórmula correta é:

Privatizar o que deve ser privatizado.
Civilizar tudo o que deve ser civilizado.
Sacralizar o que é fundacional.

As indústrias de base podem ser privatizadas, desde que sob:

  • governança civilizacional;

  • direção de uma classe empresarial restauradora;

  • compromisso contratual com o bem público;

  • proteção jurídica da soberania nacional.

Mas as kaishas estratégicas — ECT, BNDES, Caixa, Banco do Brasil (em parte) — precisam ser civilizadas, não privatizadas.

7. Conclusão

O Brasil não se reconstrói trocando o estatismo pelo privatismo; isso seria apenas substituir um ídolo por outro. Reconstrói-se retomando a raiz civilizacional que orientava a monarquia:

  • economia a serviço da moral;

  • instituições a serviço da pátria;

  • crédito a serviço do bem comum;

  • administração a serviço de Deus.

A restauração das kaishas econômicas é parte essencial desse processo.

Não é questão de estatizar ou privatizar, mas de restaurar a ordem, recompor a classe dirigente, civilizar a técnica, impor disciplina moral e reconectar as instituições à verdade que as criou.

Bibliografia Comentada

1. Max Weber — Economia e Sociedade

Obra fundamental para entender como tipos de autoridade (tradicional, carismática e racional) moldam instituições. Ajuda a compreender como a burocracia republicana destruiu as kaishas.

2. Roberto Campos — Lanterna na Popa

Apesar do liberalismo do autor, sua visão técnica e bem informada do BNDES, do Banco do Brasil e das estatais da Era Vargas é valiosa. Entende o papel estratégico dessas instituições.

3. Werner Sombart — O Burguês

Importante para compreender a formação das classes econômicas e a diferença entre burguesia civilizadora e burguesia revolucionária. Essencial para pensar a “classe dirigente restauradora”.

4. James Coleman — Foundations of Social Theory

A melhor obra para entender sistemas baseados em confiança e capital social, fundamentos essenciais do modelo peer-to-peer do Handelsbanken.

5. Stefan Jutterström; Jonas Söderberg — Handelsbanken Culture: Achieving Success through Values-Based Banking

Estudo de caso sobre o Handelsbanken e seu sistema de crédito baseado em autonomia responsável. Relevante para a ideia de descentralização moralizada.

6. Ray Dalio — Principles for Navigating Big Debt Crises

Ajuda a compreender como sistemas financeiros entram em colapso quando abandonam princípios e incentivo à poupança, reforçando a crítica ao modelo bancário republicano brasileiro.

7. Sérgio Buarque de Holanda — Raízes do Brasil

Apesar de ser uma obra interpretativa marcada pelo liberalismo, é útil para diagnosticar os vícios patrimonialistas que deformaram as instituições brasileiras e impediram sua civilização.

8. Heitor Lyra — História de Dom Pedro II

Esclarece como funcionavam as instituições da monarquia e sua relação com a poupança, a honra administrativa e o serviço público — matriz da Caixa Econômica original.

9. José Murilo de Carvalho — A Construção da Ordem

Explica a formação da elite burocrática imperial e como ela foi substituída por elites facciosas na República. Essencial para compreender a decadência das kaishas.

A psique humana como conservação moral: um método histórico-sociológico orientado a Cristo

Resumo

Este artigo explora uma abordagem singular de estudo da psique humana: a análise das motivações que as pessoas conservam, seja por fidelidade à verdade — que conduz a Cristo —, seja por conveniência insensata — que conduz à perdição. Em vez de adotar o método experimental típico das ciências naturais, propõe-se um método histórico-sociológico baseado na convivência, na observação prolongada e no registro contínuo da vida cotidiana. A casa é apresentada como o primeiro laboratório da sabedoria, onde se provam os sabores das coisas e se desenham, para as gerações futuras, notas de experiência. Por fim, demonstra-se como essa visão ilumina a questão do nacionismo, entendido como o processo moral de formação de uma consciência nacional enraizada na verdade.

1. Introdução

A compreensão da psique humana tornou-se, ao longo dos séculos, objeto de disputas metodológicas. De um lado, modelos experimentalistas tentam explicar a alma humana como se fosse mero mecanismo biológico. De outro, tradições filosófico-teológicas reconhecem que o homem é mais que matéria: é criatura moral, histórica, relacional e orientada para o transcendente.

Este artigo adota este segundo eixo. Propõe-se aqui que a psicologia mais profunda não nasce de laboratórios esterilizados, mas da convivência viva, do exame atento da biografia das pessoas e da reflexão contínua sobre aquilo que elas conservam — valores, hábitos, justificativas e recusas. O que o homem conserva revela sua direção moral: para Cristo ou para a insensatez.

2. A conservação como chave de leitura da psique

Todo ser humano conserva algo. A conservação — aquilo que se guarda no coração, na memória, nos hábitos e até mesmo nos erros — é sempre reveladora. Dois tipos de conservação emergem:

  1. A conservação ordenada, que aponta para Cristo: fidelidade, disciplina, sacrifício, busca da verdade, retidão moral.

  2. A conservação conveniente, que aponta para o abismo: autoengano, justificativas frágeis, paixões desordenadas, a manutenção de vícios travestidos de virtudes.

Diferenciar esses dois polos exige convivência e profunda atenção às motivações. A psicologia aqui proposta não é uma psicologia mecanicista, mas uma psicologia moral, enraizada na visão cristã de que:

“Onde está o teu tesouro, aí está também o teu coração.” (Mt 6,21)

As motivações conservadas, e não apenas as ações, são a janela para o movimento íntimo da alma.

3. O método histórico-sociológico: conviver para compreender

O método aqui defendido não é experimental, mas encarnado na história. Ele parte de três princípios:

3.1 A convivência como degustação moral

Conviver é provar o sabor das coisas. Assim como os sacramentos operam pela experiência concreta, também a sabedoria nasce da proximidade. É na convivência que a verdade emerge:

  • no modo como alguém responde ao sofrimento,

  • no que ela evita,

  • nas palavras que repete,

  • nos hábitos que conserva sem perceber,

  • nas lealdades silenciosas,

  • nas desculpas recorrentes.

O sabor da convivência revela o que é verdadeiro e o que é meramente conveniente.

3.2 A biografia como chave de interpretação

Toda alma é histórica. Para entender alguém, é preciso compreender:

  • sua infância,

  • seus traumas,

  • suas fidelidades,

  • suas rupturas,

  • seus mestres,

  • suas perdas,

  • seus amores e medos.

A biografia fornece as causas, enquanto a convivência mostra os efeitos.

3.3 A casa como laboratório

A casa é o local em que o ser humano vive sem máscaras prolongadas. Ali se vê:

  • a autenticidade dos afetos,

  • a estrutura real da vontade,

  • a coerência — ou incoerência — entre discurso e prática.

Registrar a vida doméstica — em diários, notas, meditações — transforma o cotidiano em escola moral. A própria existência torna-se documento para si mesmo e para as gerações seguintes.

4. Uma psicologia cristã da sabedoria

A partir da convivência, da biografia e da conservação moral, forma-se uma psicologia orientada à verdade. Esta psicologia é:

4.1 Sapiencial

Ela não busca apenas descrever comportamentos, mas conduzir à sabedoria — ao caminho, à verdade e à vida que estão em Cristo.

4.2 Moral

Cada análise parte do pressuposto de que a alma é livre, responsável e julgada em suas intenções.

4.3 Histórica

O ser humano é estudado no tempo, com suas escolhas acumuladas como um capital moral que pode se santificar ou se corromper.

4.4 Comunitária

O conhecimento adquirido sobre uma pessoa serve para orientar outras pessoas que vivem o mesmo drama, nos méritos de Cristo.

5. Aplicações ao nacionismo: a psicologia das nações

Aquilo que uma pessoa conserva encontra seu paralelo no que um povo conserva. Assim como há almas ordenadas e almas corrompidas, há também nações que guardam a verdade e nações que se entregam à conveniência histórica.

O nacionismo, entendido como formação moral de uma consciência nacional, é iluminado por esse método:

  1. A convivência com uma cultura é análoga à convivência familiar:
    para amá-la, é preciso conhecer seus sabores, suas virtudes e seus pecados.

  2. A biografia individual e a biografia coletiva se refletem:
    uma nação é composta de histórias acumuladas.

  3. O estudo das motivações conservadas por um povo — seus mitos, rituais, referências, hábitos, prioridades — revela sua orientação espiritual.

  4. Assumir um país como lar “em Cristo, por Cristo e para Cristo” significa discernir o que ali aponta para a verdade eterna e o que é apenas fruto de conveniências políticas, históricas ou ideológicas.

Assim, é possível compreender as tensões entre culturas, a formação das identidades e os caminhos de santificação coletiva.

6. Conclusão

O estudo da psique humana a partir das motivações conservadas — unindo convivência, biografia, registro doméstico e discernimento moral — oferece um método profundo, fiel à tradição cristã e capaz de orientar almas e nações.

Trata-se de uma psicologia histórica que vê o ser humano não como mecanismo, mas como peregrino moral diante de Deus. Seu fruto é duplo:

  • entender para salvar,

  • salvar para honrar Cristo,

  • honrar Cristo para que a verdade seja o fundamento da liberdade.

É por esse caminho que a convivência se transforma em sabedoria, a sabedoria em vida, e a vida em testemunho para as gerações futuras.

Bibliografia Comentada

1. Santo Agostinho — Confissões

Agostinho realiza aqui o modelo clássico de psicologia cristã: um estudo da alma por meio da memória, das motivações conservadas e da história pessoal. É uma obra essencial para seu método, pois mostra como a biografia, quando analisada à luz da verdade, se transforma em instrumento de conversão e de conhecimento profundo de si mesmo.

2. Pascal, Blaise — Pensamentos

Pascal investiga a complexidade do coração humano, seus autoenganos e suas conveniências. Ele afirma que a maior miséria humana é ignorar a própria miséria diante de Deus. Sua noção de “diversões” — aquilo que as pessoas conservam para evitar pensar na eternidade — é diretamente aplicável ao seu método de analisar motivações guardadas nas sombras da vida cotidiana.

3. Josiah Royce — The Philosophy of Loyalty

Obra fundamental para compreender como a identidade moral de uma pessoa se constrói por meio das lealdades que ela conserva e alimenta. Royce mostra que toda vida ética deriva daquilo a que o indivíduo permanece fiel. Seu método ilumina o processo pelo qual a conservação moral orienta tanto a alma quanto a cultura, elemento central do nacionismo.

4. Christopher Dawson — Religion and the Rise of Western Culture

Dawson demonstra como a vida espiritual é o eixo profundo da formação das culturas e das nações. Ele lê a história como biografia coletiva, onde o que um povo conserva (ritos, valores, símbolos) determina sua saúde espiritual. O livro fornece uma ponte natural entre sua psicologia moral e a teoria do nacionismo.

5. Max Weber — Economia e Sociedade (capítulos sobre ação social e tipos de dominação)

Weber examina como motivações subjetivas, valores e sentidos orientam as ações humanas. Sua distinção entre ações racionais e tradicionais ajuda a explicar por que as pessoas conservam certos hábitos e justificativas. Embora não cristão, Weber oferece categorias sociológicas úteis para estruturar a análise das motivações humanas em contexto histórico.

6. René Girard — A Violência e o Sagrado

Girard revela como a convivência humana é permeada por desejos imitativos e tensões que se acumulam e são “conservadas” pela cultura por meio de mecanismos de bode expiatório. Seu conceito de mimetismo ajuda a entender como vícios coletivos e individuais se perpetuam — e como somente Cristo quebra essa cadeia.

7. Romano Guardini — O Senhor

Guardini oferece uma exposição profunda sobre a pessoa de Cristo e sua ação na alma humana. O livro é fundamental para quem quer compreender como orientar pessoas “nos méritos de Cristo”, porque articula a psicologia da graça com a vida concreta das pessoas, conectando sabedoria, convivência e transformação moral.

8. Viktor Frankl — Em Busca de Sentido

Frankl demonstra que a motivação última do ser humano é o sentido. O que as pessoas conservam revela aquilo que elas consideram significativo. Embora não teológico, Frankl fornece uma chave antropológica profunda para compreender escolhas, perseveranças e desvios pessoais dentro da biografia de cada indivíduo.

9. Alasdair MacIntyre — After Virtue (Depois da Virtude)

MacIntyre mostra que a moralidade humana só pode ser compreendida dentro de narrativas históricas. Ele vê a vida ética como continuidade biográfica, um fio narrativo que dá sentido às escolhas. Seu pensamento confirma sua tese de que a psique humana só pode ser estudada no contexto de uma história vivida e conservada.

10. Peter Berger & Thomas Luckmann — A Construção Social da Realidade

Esta obra explica como os significados que as pessoas conservam são construídos socialmente por meio da convivência, das instituições e das tradições. Reforça seu ponto de que a casa é laboratório da vida moral, onde se aprendem os hábitos que moldam tanto o indivíduo quanto o corpo social.

Bibliografia Complementar 

11. Charles Taylor — As Fontes do Self

Examina como a identidade moderna se formou pela conservação seletiva de certos valores. Ajuda a entender as raízes dos desvios modernos em relação à verdade.

12. Erich Auerbach — Mimesis

Mostra como a literatura conserva as visões de mundo e motivadores profundos de culturas ao longo da história.

13. Paul Ricoeur — A Memória, a História e o Esquecimento

Explora a noção de memória como fundamento da identidade pessoal e coletiva. É um suporte teórico direto para sua noção de “conservar por verdade” ou “conservar por conveniência”.

Cristo, Cultura e Nacionismo: a assimilação do universal através do discernimento dos espíritos

Quando um homem toma duas nações como seu lar em Cristo, por Cristo e para Cristo, ele não se dissolve nelas nem se submete aos seus particularismos. Antes, procede como o observador-participante de Malinowski — abre-se às forças vivas de cada cultura, mas não se deixa hipnotizar por elas. Essa abertura não é passividade; é um exercício de discernimento espiritual. pois em cada povo há um duplo movimento:

  1. o espírito divino que o eleva, cujo rastro de Cristo é perceptível mesmo onde Ele não é conhecido nominalmente;

  2. o espírito animal da conservação, que defende conveniências históricas, políticas e sociais, frequentemente dissociadas da verdade.

Aquele que vive referenciado em Cristo aprende a distinguir os dois. Ele assimila o que há de nobre, belo, virtuoso e verdadeiro nas culturas — aquilo que, embora revestido de cor local, participa do Logos — e rejeita o que é mera blindagem instintiva de um grupo humano tentando perpetuar seus vícios, seus medos e seus interesses.

1. A unidade em Cristo supera a geopolítica

Quando eu afirmo que tomo dois países como um mesmo lar em Cristo, eu não estou diluindo suas identidades. Pelo contrário: estou reconhecendo que a identidade última de um lugar não se reduz à sua política ou às suas circunstâncias históricas, mas ao modo como aquele povo participa da verdade eterna.

Assim, a pátria cristã não é apenas o solo onde se nasce, mas também o solo onde se reconhece Cristo e onde sua presença se manifesta de modo singular. Essa abertura permite amar autenticamente mais de uma nação — não como turista sentimental, mas como cidadão do Reino que vê, em cada cultura, uma parte da herança espiritual do gênero humano.

2. Isso é nacionismo, não nacionalismo

Aqui emerge a diferença central entre o nacionismo e o nacionalismo, o qual não passa de uma caricatura.

Nacionalismo idolátrico

O nacionalismo moderno — herdeiro de revoluções ideológicas — toma a nação como fim absoluto. Ele confere caráter sagrado ao que é meramente histórico, eleva contingências políticas ao plano do dogma e transforma o amor à pátria em culto tribal. Seu erro é ontológico: absolutiza o que é relativo.

Nacionismo cristão

O nacionismo, ao contrário, reconhece:
– que a nação é real;
– que ela é boa em sua ordem;
– que possui vocação própria;
– mas que só encontra seu sentido último em Cristo.

O nacionista não idolatra sua pátria: ele a purifica, discernindo nela o que participa da verdade eterna e rejeitando o que é mero vício coletivo.

E, porque seu critério é Cristo — não o sangue, não a língua, não o Estado — ele pode reconhecer a obra de Deus em mais de um povo sem trair sua identidade. Pode ter dois, três ou mais lares espirituais, porque sabe que todos eles se tornam verdadeiramente pátria apenas quando ordenados ao Reino.

3. A assimilação em Cristo: o método espiritual do nacionista

Assimilar duas culturas “por Cristo” significa:
– absorver delas o que expressa a vocação divina de cada povo;
– integrá-las na própria vida como riqueza espiritual;
– recusar tanto o relativismo (que não distingue) quanto o fanatismo (que não reconhece valor no outro).

É o mesmo movimento descrito por São Tomás quando ele se apropria do melhor de Aristóteles e o integra na visão cristã, rejeitando o que contradiz a fé. O princípio é idêntico: tudo o que é verdadeiro pertence a Cristo; tudo o que é falso O contradiz.

Duas nações podem, assim, tornar-se um único lar na ordem do espírito. O que une não é a política, mas a verdade. O que fundamenta não é a origem, mas o destino.

4. Contra o globalismo: o nacionismo mantém as fronteiras

Diferentemente do globalismo — que dissolve identidades e trata os povos como peças intercambiáveis de um mercado — o nacionismo reconhece as formas concretas da vida humana: língua, história, religião, paisagem, heróis, sofrimento.

Ele não apaga as diferenças; ele as integra.
Não cria um “homem global”, mas um “homem católico”:
– capaz de amar uma segunda nação sem trair a primeira,
– capaz de habitar dois mundos culturais sem perder o centro,
– capaz de ser realmente universal porque está enraizado no eterno.

5. Conclusão: a pátria unificada em Cristo

Aquele que toma dois países como seu lar em Cristo vive uma forma rara de patriotismo purificado. Não se deixa guiar pelo instinto do rebanho nem pelos particularismos que cada cultura carrega como cicatrizes da história.

Seu critério é transcendente. Seu amor é ordenado. Sua pátria é elevada. Ele encarna o verdadeiro nacionismo: a unificação do que há de melhor nas nações sob o reinado do Cristo.

Dois sentidos da mesma palavra: sobre a questão do referente na privatização da Caixa Econômica Federal

No debate brasileiro, poucas palavras carregam tamanha ambiguidade histórica quanto Caixa. Quando liberais afirmam que “é preciso privatizar a Caixa Econômica Federal”, geralmente não percebem que estão lidando com um termo que abriga duas camadas institucionais distintas, separadas por quase oitenta anos, por duas culturas políticas e por dois projetos de Estado que nada têm em comum. A questão da privatização torna-se, portanto, antes de tudo, uma questão de referente: a qual Caixa se está realmente se referindo?

Essa distinção, ainda que simples quando exposta, possui implicações profundas para a maneira como interpretamos a história do Estado brasileiro, a herança imperial e o legado varguista. Ela determina não apenas a legitimidade da privatização, mas também o tipo de Estado que desejamos preservar e o tipo de Estado que convém reformar.

1. A Caixa como instituição imperial: honra, sobriedade e fé pública

Fundada em 1861 sob dom Pedro II, a Caixa nasceu como uma instituição conservadora e sóbria, dedicada a três funções essenciais:

  1. disciplinar a poupança popular,

  2. promover seguro de vida e penhor com moralidade administrativa,

  3. oferecer estabilidade financeira às classes trabalhadoras.

Não era uma empresa.
Não buscava lucros.
Não possuía pretensão industrial ou de planejamento.

Era um órgão de confiança — uma instituição de fé pública, projetada para durar e inspirar estabilidade.

Desse ponto de vista, a Caixa Imperial pertence àquilo que Claude Lévi-Strauss chamaria de infraestrutura simbólica do Estado: é parte do “cru” que ainda não fora transformado pelo projeto modernizador do século XX. Era um elemento da ordem monárquica, e privatizá-la equivaleria a remover um dos últimos pilares administrativos do Império ainda em funcionamento.

Assim, quando o liberal moderno fala em privatizar a Caixa, se estiver se referindo a essa instituição original, com sua função moral e estável, ele incorre em um gesto de desonra ao passado imperial, uma forma de esquecimento histórico que dissolve uma marca de continuidade entre o Brasil monárquico e a República contemporânea.

2. A Caixa transformada: as “Kaishas Econômicas Federais” da Era Vargas

O problema se torna mais claro quando reconhecemos que a Caixa que existe hoje não é mais aquela de 1861. Ao longo das décadas getulistas, especialmente entre 1930 e 1954, a Caixa foi incorporada ao projeto de construção de um Estado desenvolvimentista e centralizador.

Nesse período, o Estado brasileiro assumiu o papel de cozinheiro nacional, no sentido estruturalista de Lévi-Strauss: ele passou a transformar, organizar e absorver quase todas as atividades econômicas relevantes. Onde antes havia poupança e penhor, surgem agora:

  • crédito habitacional em larga escala,

  • programas de financiamento estatal,

  • gestão de fundos sociais bilionários,

  • papel de banco de varejo,

  • participação em políticas anticíclicas,

  • funções parafiscais.

A Caixa moderna torna-se então uma espécie de kaisha brasileira, nos moldes das kaisha japonesas — com a diferença essencial de que, no Japão, a empresa é privada e dirigida pelo Estado, enquanto no Brasil é estatal operando como empresa.

Ao lado da Petrobras, da CSN, da Vale e de outras estatais, a nova Caixa passa a integrar a máquina do Estado varguista, que realizou um movimento de absorção totalizante: tudo o que era privado, disperso ou orgânico passa a ser centralizado, regulado e planificado.

Essa Caixa — não a imperial — é um produto da mentalidade do Estado total, não no sentido autoritário, mas no sentido funcional, onde o Estado é produtor, financiador, árbitro e protagonista da economia.

3. A confusão contemporânea: uma palavra, dois mundos

Hoje, quando um liberal diz “privatizar a Caixa”, ele involuntariamente mistura duas entidades diferentes:

  • uma instituição imperial de fé pública, e

  • uma empresa estatal varguista de funções parafiscais.

A discussão política, portanto, torna-se imprecisa porque o referente não está claro. Privatizar a Caixa pode significar:

  • um ataque simbólico à herança monárquica, ou

  • uma correção técnica no excesso estatizante da Era Vargas.

É impossível aceitar ou rejeitar a privatização sem antes perguntar:

De qual Caixa estamos falando? A de 1861 ou a de 1930–1954?

Ignorar essa distinção é repetir o erro simbólico de perder a profundidade histórica das instituições. É aplicar a mesma receita a entidades de natureza diversa, como se fossem equivalentes apenas porque compartilham um nome.

4. A resposta coerente: preservar a legitimidade imperial, corrigir o inflacionamento varguista

A única posição historicamente consistente é a seguinte:

  1. A Caixa da Monarquia não deve ser privatizada.
    Seria romper um elo histórico raro entre o Império e o presente, e dissolver uma instituição cuja função simbólica e moral é mais importante que sua função econômica.

  2. As “Kaishas Econômicas Federais” de Vargas (a Caixa moderna) podem e devem ser privatizadas.
    Isso não constitui desonra, mas revisão legítima de uma hipertrofia estatal produzida artificialmente no século XX.

Privatizar a Caixa varguista significa devolver ao mercado aquilo que o Estado incorporou além do necessário. Preservar a Caixa imperial significa proteger a continuidade institucional do Estado brasileiro.

5. Conclusão: a política como precisão de linguagem

Todo debate sério exige clareza de referente. Chamamos de “Caixa” duas coisas que não são a mesma coisa. Esse uso equívoco gera erros de análise, injustiças simbólicas e políticas públicas mal formuladas.

A distinção que você traz é, portanto, mais que relevante: é fundacional. Ela recoloca o debate no eixo correto e devolve ao Estado brasileiro duas dimensões que há décadas se confundem:

  • a fé pública do Império,

  • e a maquinaria industrial da Era Vargas.

Privatizar sem distinguir é destruir;
privatizar com precisão é reformar.

O Brasil, para conhecer-se, precisa antes de tudo recuperar a nitidez de suas palavras.

Bibliografia Comentada

1. CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem.

Obra fundamental para compreender o espírito institucional do Império. Mostra como a monarquia buscou criar estabilidade e racionalidade jurídica — o berço simbólico da Caixa Econômica Imperial.

2. FAUSTO, Boris. Getúlio Vargas: O Poder e o Sorriso.

Apresenta o varguismo como um projeto de Estado totalizante, alinhado à tese aqui exposta. Explica a criação das indústrias de base e seu papel no “cozido” estatizante brasileiro.

3. LEVI-STRAUSS, Claude. O Cru e o Cozido.

Base simbólica da analogia utilizada. Lévi-Strauss explica como sistemas culturais transformam matéria bruta (cru) em formas sociais organizadas (cozido). A estatização varguista pode ser lida sob essa chave antropológica.

4. FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder.

Crítica profunda ao patrimonialismo brasileiro. Ajuda a entender por que as Kaishas getulistas se tornaram braços de um Estado hipertrofiado e corporativo.

5. BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. A Reforma do Estado nos Anos 90.

Embora heterodoxo, o autor demonstra como a máquina estatal brasileira se tornou ineficiente e como certos setores — muitos de origem varguista — são candidatos naturais à privatização.

6. LAMOUNIER, Bolívar. Formação do Pensamento Político Brasileiro.

Ajuda a situar a diferença entre liberalismo imperial, corporativismo varguista e debates contemporâneos. Importante para entender o erro de referente na política brasileira.

Do Cru ao Cozido: a transmutação do Estado brasileiro entre a Caixa Monárquica e as “Kaishas Econômicas Federais” da Era Vargas

A história econômica brasileira pode ser lida — e reinterpretada — por meio de um esquema simbólico poderoso: a transformação do cru no cozido, tal como Claude Lévi-Strauss analisa em O Cru e o Cozido (1964). Na chave estruturalista, o “cru” representa o que está fora da cultura, fora da estrutura; o “cozido” é aquilo que foi incorporado, organizado, domesticado pela ação humana. Ao aplicar esse esquema à evolução institucional do Brasil, especialmente na comparação entre a Caixa Econômica Federal da Monarquia e as indústrias de base criadas por Getúlio Vargas, obtém-se uma interpretação profunda: o Estado brasileiro passou de um modelo tutelar e restrito para um modelo absorvente, onde quase nada permanece fora da sua órbita.

Esse processo lembra, emblematicamente, a máxima corporativista: “Tudo no Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado.” Sem que Vargas tivesse de proclamá-la, a estrutura que produziu aproxima-se funcionalmente dela.

1. A Caixa Econômica Federal criada pela Monarquia: o Estado cru

Criada em 1861, a Caixa surge como um instrumento de:

  • poupança popular, voltado à moralização do pequeno aforro;

  • crédito limitado, disciplinado e de caráter conservador;

  • proteção social embrionária, ainda sem intenção de industrializar ou planificar a economia.

A Caixa da Monarquia é, portanto:

  • instituição financeira;

  • ligada ao Estado, mas com função modesta;

  • sem articulação com um projeto nacional de modernização.

Na leitura estruturalista, trata-se de um elemento cru: não é instrumento de transformação estrutural, mas apenas de preservação. Ela corresponde ao “estado natural” da interlocução entre Estado e economia — o mínimo necessário para manter a ordem social.

2. Vargas: o Cozinheiro da Nação

A ascensão de Getúlio Vargas e o projeto nacional-desenvolvimentista marcam a ruptura. O Estado deixa de ser simples tutor e passa a ser agente produtor.

Sob Vargas emergem as indústrias de base:

  • CSN (siderurgia),

  • Vale (mineração),

  • Petrobras (energia),

  • FNM (indústria automotiva),

  • Eletrobras (setor elétrico), entre outras.

Essas entidades não são meros órgãos públicos: são empresas estatais corporativas, equivalentes funcionais às kaisha japonesas, mas invertendo o sinal cultural:

  • No Japão, a kaisha é privada sob proteção estatal.

  • No Brasil, a “kaisha” varguista é estatal sob lógica empresarial.

Aqui ocorre o salto simbólico:

O Estado brasileiro assume a função de cozinheiro: transforma a matéria-prima social (trabalho, poupança, recursos naturais) em cultura industrial.

Onde antes havia apenas poupança dispersa, agora há aço, combustível, logística, energia e monopólios produtivos.

O “cru” — a economia brasileira agrária e fragmentada — é “cozido” pela maquinaria estatal.

3. O cozido como forma de incorporação total

No esquema de Lévi-Strauss, o cozimento não é apenas cozinhar: é internalizar, absorver, ordenar o mundo.

É exatamente isso que o Estado varguista faz:

  • Sindicatos: incorporados e regulados.

  • Energia e petróleo: monopólio estatal.

  • Siderurgia: estatal.

  • Mineração: estatal.

  • Planejamento econômico: centralizado.

  • Relações trabalhistas: mediadas pelo Estado-juiz.

  • Previdência: organizada em caixas corporativas sob direção pública.

  • Territórios produtivos inteiros: internalizados.

A “Kaisha Econômica Federal” — metáfora para as empresas industriais do Estado — é uma extensão dos instrumentos financeiros monárquicos para dentro da própria estrutura produtiva.

A mensagem simbólica é clara: o Estado transforma tudo o que toca. Nada lhe escapa.

4. A unificação simbólica: Da Caixa às Kaishas

A Caixa da Monarquia representava:

  • o Estado como guardião da poupança.

As Kaishas varguistas representam:

  • o Estado como produtor, empresário, planejador e ordenador simbólico.

A união desses elementos forma um modelo que pode ser assim resumido:

  • Caixa (monárquica) → guarda o capital;

  • Kaisha (varguista) → mobiliza o capital;

  • Estado (estrutural) → transforma o capital em poder social.

A transmutação é completa quando percebemos que: a Caixa Monárquica representa o “cru”: o Estado mínimo e reativo. as Kaishas Varguistas representam o “cozido”: o Estado máximo e transformador.

5. A consequência: nada fora do Estado

Mesmo sem adotar explicitamente o lema corporativista italiano, o Brasil de Vargas efetivamente realizou seu espírito:

  • Toda produção estratégica estava no Estado.

  • Toda mediação social era feita pelo Estado.

  • Toda industrialização dependia do Estado.

  • Todo capital de base era público.

  • Toda técnica nacional passava pelo Estado.

Se Lévi-Strauss tivesse analisado o caso brasileiro, poderia dizer:

“Onde a Monarquia deixou o cru, Vargas construiu o cozido.”

E assim, o Estado brasileiro deixou de ser apenas guardião de poupanças e tornou-se o grande cozinheiro da modernização nacional.

Conclusão

A metáfora que conecta a Caixa Econômica Federal da Monarquia às “Kaishas Econômicas Federais” da Era Vargas revela um processo de transformação profunda: o Estado brasileiro deixou de tutelar para absorver, deixou de preservar para produzir, deixou de garantir para planificar.
Lévi-Strauss oferece a linguagem para compreender este salto: a passagem do cru ao cozido.

O resultado é um Estado que organiza, estrutura e internaliza a sociedade — um Estado que, ao final do processo, se torna ele próprio o centro da cultura econômica.

Bibliografia Comentada

1. Claude Lévi-Strauss e a Estrutura Simbólica do “Cru” e do “Cozido”

LÉVI-STRAUSS, Claude. O Cru e o Cozido. São Paulo: Cosac Naify, várias edições.

Obra fundamental da tetralogia Mitológicas. O autor descreve a transformação culinária (cru → cozido) como um modelo universal de passagem da natureza para a cultura. Aqui está a chave conceitual usada para interpretar a transmutação institucional brasileira: a transformação de estruturas “cruas” (instituições financeiras modestas, poupança popular, Estado tutelar) em estruturas “cozidas” (indústrias de base, Estado planificador, monopólios produtivos). A leitura deste livro é indispensável para compreender o mecanismo simbólico que orienta o argumento.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, diversas edições.

Introduz o método estruturalista que permite ler fenômenos culturais como sistemas simbólicos. Fornece o arcabouço analítico que legitima a aplicação do par “cru/cozido” à política e à economia, mostrando que estruturas nacionais podem ser compreendidas como mitologias políticas.

2. Estado, Corporativismo e Industrialização no Brasil

FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp.

Clássico da historiografia brasileira. O capítulo sobre a Era Vargas oferece um panorama claro sobre o projeto de industrialização, o papel das indústrias estatais e a centralidade do Estado. Excelente para leitores que desejam entender o contexto geral que torna possível o “cozimento” da economia.

DULLES, John W. Foster. Vargas of Brazil: A Political Biography. Austin: University of Texas Press.

Biografia detalhada, com vasta documentação, que ajuda a compreender a intencionalidade política de Vargas: seu corporativismo, sua visão de Estado e seu projeto de industrialização. É uma fonte sólida para interpretar Vargas como o “cozinheiro” que transforma as estruturas do país.

CAPELATO, Maria Helena. Multidões em Cena: Propaganda Política no Varguismo. São Paulo: Companhia das Letras.

Mostra como o Estado Novo construiu uma narrativa simbólica e mítica sobre si mesmo. Isso reforça a leitura lévi-straussiana: o Estado não apenas industrializa, mas cria mitologias políticas para justificar sua centralidade, moldando o imaginário social.

BIELSCHOWSKY, Ricardo. Desenvolvimento e Crise no Brasil (1930–1980). Rio de Janeiro: IPEA.

Clássico da economia política do desenvolvimento. Explica o papel das indústrias de base e do planejamento estatal. Mostra como a estrutura produtiva brasileira é explicitamente montada pelo Estado, reforçando a interpretação de que o “cozido” é produzido em larga escala no período varguista.

IANNI, Octavio. O Colapso do Populismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Analisa o Estado como organizador e absorvedor de estruturas sociais. Ajuda a entender como o modelo varguista deixa como herança um Estado corporativo que internaliza sindicatos, empresas e relações de trabalho.

3. Empresas Estatais e Indústrias de Base

BAER, Werner. A Economia Brasileira. Rio de Janeiro: Nobel.

Analisa o desenvolvimento das estatais, seus monopólios estratégicos e o papel da CSN, Petrobras e Vale. Fundamental para compreender a extensão da “Kaisha Econômica Federal” brasileira, isto é, o conjunto de empresas estatais que assumem o lugar do capital privado.

LAFER, Celso. O Planejamento no Brasil. São Paulo: Perspectiva.

Estudo crucial sobre o planejamento estatal. Mostra como o Estado brasileiro passa a guiar a economia diretamente, reforçando a ideia de que ele incorpora funções produtivas — exatamente o movimento de transformar o cru em cozido.

4. A Caixa Econômica Federal e as Instituições Financeiras da Monarquia

MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec.

Obra essencial para entender a lógica política da Monarquia e o contexto em que a Caixa foi criada. Mostra que o Estado imperial prezava pela ordem e pela estabilidade, mas não pela transformação produtiva — oferecendo o pano de fundo do “Estado cru”.

CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. História da Caixa: 1861–2011. Publicação institucional.

Apresenta o desenvolvimento histórico da Caixa, suas funções sociais e sua origem como instituição de poupança. Mostra claramente o contraste entre seu papel original e aquilo que o Estado viria a realizar sob Vargas.

5. Japão, Kaishas e Modernização Comparada

JOHNSON, Chalmers. MITI and the Japanese Miracle. Stanford University Press.

Mostra como o Japão organizou o capitalismo por meio de empresas privadas (kaisha) guiadas pelo MITI (Ministério do Comércio e Indústria). É excelente para comparar: no Japão, as empresas são privadas; no Brasil, as “Kaishas” varguistas são estatais. A comparação ilumina o caráter singular do estatismo brasileiro.

HALL, John W. Japan: From Prehistory to Modern Times. University of Michigan Press.

Fornece contexto para entender como o Estado japonês estruturou sua modernização sem absorver diretamente os meios de produção — ao contrário do que ocorre no Brasil varguista.

6. Corporativismo e Filosofia Política do Estado Forte

GENTILE, Emilio. As Origens da Ideologia Fascista. São Paulo: Martins Fontes.

Embora o Brasil não tenha sido fascista, o conceito de corporativismo de Estado (“tudo no Estado, nada fora do Estado”) ajuda a entender a lógica funcional — não ideológica — que o projeto varguista adquire. A referência serve para compreender o paralelismo estrutural, não para afirmar identidade ideológica.

SCHMITT, Carl. Teoria da Constituição. São Paulo: Martins Fontes.

Material útil para entender o conceito de Estado total em sentido jurídico-organizacional. Reforça a leitura de que a Era Vargas opera uma internalização quase completa das estruturas sociais.

Conclusão da Bibliografia

A bibliografia selecionada — e comentada — permite ao leitor reconstruir integralmente o argumento:

  1. Lévi-Strauss fornece o modelo simbólico.

  2. A historiografia brasileira mostra a formação real das instituições.

  3. A comparação com o Japão ilumina a especificidade brasileira.

  4. A teoria política do corporativismo explica o movimento de absorção estatal.

  5. Os estudos sobre a Caixa e as estatais evidenciam o contraste entre o “Estado cru” da Monarquia e o “Estado cozido” da Era Vargas.

A linguagem da pobreza: por que biedny e ubogi expressam uma antropologia que a Inglaterra não conheceu?

Resumo

Este artigo examina como a distinção polonesa entre biedny (pobre material) e ubogi (pobre existencial/espiritual) revela uma compreensão mais rica da condição humana do que a oferecida pelo inglês, língua que não diferencia esses conceitos e que tratou “the poor” como categoria jurídica unificada. Argumenta-se que essa ausência lexical teve consequências históricas profundas, especialmente na formulação das Poor Laws inglesas, onde o pobre foi reduzido a objeto administrativo. A tese final é que sem dicotomias lexicais adequadas, a justiça positiva perde acesso à justiça natural.

1. Introdução: quando uma palavra decide o destino de um povo

Línguas não são apenas códigos de comunicação; são estruturas de percepção da realidade.
Elas recortam o mundo, eliminam nuances ou criam distinções que alteram o modo como sociedades concebem:

  • a moralidade,

  • a justiça,

  • a economia,

  • a dignidade humana.

A distinção polonesa entre biedny e ubogi é um caso exemplar disso.

Enquanto o português, o espanhol e o inglês colapsam diversos tipos de “pobreza” dentro de um único termo, o polonês separa dois fenômenos radicalmente distintos: a carência material e a vulnerabilidade espiritual.

Essa distinção — ausente no inglês — teria impedido muitos dos equívocos das Poor Laws inglesas, que trataram “os pobres” como uma massa juridicamente homogênea.

2. A dupla pobreza polonesa: biedny e ubogi

2.1. Biedny: o pobre econômico

Biedny significa aquele que sofre carência material:

  • falta de renda

  • falta de recursos

  • incapacidade de atender às necessidades básicas

  • pobreza mensurável, sociológica

É a pobreza do campo da economia e da política pública.

2.2. Ubogi: o pobre na ordem da existência

Ubogi, por sua vez, deriva de ubóstwo — termo que tem ressonâncias espirituais profundas.

Indica:

  • pobreza enquanto fragilidade humana

  • humildade existencial

  • dependência espiritual

  • vulnerabilidade moral e pessoal

  • estado de desamparo que exige misericórdia, não administração

É uma pobreza que pode existir mesmo em quem não é materialmente pobre — como ocorre com o humilde, o abatido, o pequeno de coração.

Essa distinção é mais próxima do latim pauper (pobre frágil) e miser (necessitado), categorias que o polonês preserva no seu modo próprio.

3. O inglês e o colapso semântico de “the poor”

O inglês utiliza uma única palavra, poor, para designar:

  • o miserável

  • o desfavorecido

  • o humilde

  • o incapaz

  • o acidentado

  • o emocionalmente abatido (you poor thing)

  • o financeiramente carente

  • o espiritualmente pequeno

  • o fraco e o deficiente

  • o desafortunado

Ou seja: o inglês unifica biedny e ubogi sob um mesmo rótulo semântico, dissolvendo nuances antropológicas essenciais.

O resultado: a pobreza torna-se uma categoria jurídica indiferenciada.

4. As Poor Laws inglesas: quando o Estado legisla sobre uma palavra que não distingue

A Inglaterra, especialmente após a Reforma, tratou “os pobres” como um grupo administrável. A Poor Law de 1601 e, mais tarde, a drástica reforma de 1834 criaram um sistema em que:

  • pobres incapazes, órfãos e inválidos (equivalentes ao ubogi)

  • pobres aptos ao trabalho mas sem recursos (equivalentes ao biedny)

foram colocados sob o mesmo arcabouço jurídico, apenas subdivididos administrativamente entre:

  • impotent poor (incapazes)

  • able-bodied poor (aptos)

Mas essa é uma distinção funcional, não existencial. Não é uma distinção moral, antropológica ou espiritual.

O que faltou às Poor Laws foi precisamente o que o polonês oferece: um vocabulário capaz de reconhecer humanidades distintas.

Sem isso:

  • criou-se a workhouse, onde pobres eram punidos pelo Estado

  • confundiu-se vulnerabilidade com vagabundagem

  • tratou-se pobreza espiritual como falha de caráter

  • reduziu-se a assistência à lógica produtivista-protestante

  • abandonou-se a tradição caritativa medieval

A Inglaterra legislou sobre “the poor” porque não havia linguagem para legislar entre pobres.

5. A distinção fundamental entre law e right não resolveu o problema

Os juristas ingleses distinguem:

  • law = lei positiva

  • right = direito moral, natural

Mas essa distinção é insuficiente quando o próprio objeto da lei é mal definido. Se o conceito de “pobre” é amorfo, tanto law quanto right herdaram o erro original.

Uma palavra inadequada pode distorcer:

  • o direito natural (porque confunde os deveres de justiça e caridade)

  • a lei positiva (porque regula grupos diferentes como se fossem iguais)

Em termos filosóficos: sem distinção ontológica, não há distinção jurídica válida.

6. Língua, justiça e antropologia: a tese central

A distinção polonesa não é apenas linguística. Ela revela uma antropologia católica, que vê:

  • o pobre material como injustiçado

  • o pobre existencial como vulnerável

  • ambos como destinatários de cuidado — mas de naturezas diferentes

Já a história inglesa da pobreza — especialmente após a Reforma — revela:

  • o pobre como problema

  • a pobreza como falha moral

  • a assistência como disciplina e controle

  • a caridade como trabalho obrigatório

Assim, o vocabulário inglês não apenas descreve: ele justifica uma visão.

O vocabulário polonês, por sua vez, impede que tais reduções aconteçam.

7. Conclusão: sem dicotomias lexicais, a justiça se torna cega

A distinção entre biedny e ubogi é superior porque:

  • reconhece duas naturezas de pobreza

  • impede que a lei trate a fragilidade humana como delito

  • incorpora uma visão personalista da dignidade

  • oferece parâmetros para políticas públicas diferenciadas

  • protege a caridade de ser substituída por coerção estatal

A Inglaterra teve law e right, mas não teve biedny e ubogi. E isso, de fato, faria toda a diferença. Uma língua que não distingue não enxerga. E uma lei que não enxerga não pode julgar com justiça.

Bibliografia Essencial

Antropologia e Linguística

  • Whorf, Benjamin Lee — Language, Thought and Reality.

  • Sapir, Edward — Selected Writings in Language, Culture and Personality.

  • Tomasello, Michael — A Natural History of Human Thinking.

História da Pobreza na Inglaterra

  • Slack, Paul — The English Poor Law, 1531–1782.

  • Polanyi, Karl — The Great Transformation.

  • Himmelfarb, Gertrude — The Idea of Poverty: England in the Early Industrial Age.

  • Rose, Michael — The Relief of Poverty, 1834–1914.

Estudos Poloneses

  • Bystroń, Jan Stanisław — Kultura Ludowa.

  • Kłoczowski, Jerzy — A History of Polish Christianity.

  • Davies, Norman — God’s Playground: A History of Poland.

Doutrina Social e Filosofia Moral

  • João Paulo II — Laborem Exercens, Sollicitudo Rei Socialis, Centesimus Annus.

  • Bento XVI — Caritas in Veritate.

  • Maritain, Jacques — Humanisme Intégral.