1. A confusão moderna entre inteligência e cálculo
Vivemos uma época em que se fala constantemente em inteligência artificial — expressão que, para Olavo de Carvalho, é um equívoco de base. A palavra “inteligência”, no sentido próprio, designa uma faculdade espiritual, exclusiva do ser humano, que apreende o universal e ordena a mente à verdade. Nenhuma máquina é capaz disso, pois lhe falta aquilo que define o homem: alma, consciência e intencionalidade.
O que se chama de “inteligência artificial” não é, portanto, uma inteligência autônoma, mas a externalização de certos atos da inteligência natural humana. Trata-se de uma extensão técnica — uma cristalização de hábitos intelectuais num suporte material, capaz de reproduzir operações lógicas, mas incapaz de compreender o sentido do que faz.
Como dizia Olavo:
“A máquina não pensa; ela apenas executa uma ordem humana com mais velocidade do que o homem seria capaz. O ato de pensar pertence à alma, não ao circuito.”
2. A extrapolação da inteligência natural
Olavo reconhecia que a técnica pode extrapolar a capacidade individual da inteligência humana, conduzindo a resultados que o homem isoladamente não alcançaria. Contudo, essa extrapolação é quantitativa, nunca qualitativa. A técnica multiplica a potência da inteligência natural, mas não cria uma nova forma de inteligência.
Assim como o telescópio amplia a visão, mas não vê por si mesmo, os algoritmos ampliam o raciocínio, mas não raciocinam. É sempre o homem quem vê através do telescópio e quem pensa através da máquina.
Quando o homem perde essa consciência hierárquica, ele inverte a ordem dos meios e dos fins. A inteligência natural — criada para contemplar a verdade e ordenar a vida moral — passa a servir à máquina, tornando-se escrava de sua própria extensão técnica.
3. O amor desordenado à técnica e a idolatria do cálculo
Nessa inversão, repete-se o drama agostiniano:
A Cidade dos Homens é fundada pelo amor de si até o desprezo de Deus.
O homem moderno, apaixonado por sua própria obra, transfere à técnica o amor que devia à Verdade. Em vez de ver na sztuczna inteligencja (SI) uma serva, ele a eleva à condição de senhora. O amor de si, projetado na máquina, converte-se em amor à sua própria sombra.
Daí nasce o culto à eficiência, à predição e ao controle — uma idolatria sem rosto, sustentada por algoritmos que imitam a razão sem jamais possuí-la. O homem adora o reflexo do seu intelecto e, nesse espelho luminoso, perde o rosto espiritual que o definia como pessoa.
É por isso que Olavo advertia:
“A técnica é um prolongamento da inteligência, não sua origem. Quando o homem toma o prolongamento por origem, ele cria um monstro.”
4. A impessoalidade sistemática e a dissolução do sujeito
O resultado desse desvio é o que se pode chamar de impessoalidade sistemática. Quanto mais a técnica avança, mais o homem se esconde atrás das mediações que cria. As relações humanas tornam-se relações de função; os encontros, trocas de dados; a linguagem, algoritmo.
O sujeito humano — fonte da liberdade e da moral — dissolve-se no anonimato dos sistemas. Ele se comunica com máquinas, mas não mais com pessoas; confia em previsões, mas já não discerne. A alma racional, outrora voltada para o Ser, curva-se diante da utilidade.
Assim, o que parecia progresso transforma-se em empobrecimento espiritual. A inteligência natural, quando renuncia ao seu fim transcendente, cai na servidão da técnica.
5. A restauração da ordem: a inteligência natural e a graça
Para Olavo de Carvalho, restaurar a verdadeira hierarquia significa reconhecer a primazia do espírito sobre o instrumento. A técnica deve permanecer serva da inteligência natural; e esta, por sua vez, deve ordenar-se à sabedoria divina. Somente assim o homem reencontra o eixo do real e a possibilidade de amar segundo a verdade.
A verdadeira inteligência não é aquela que calcula, mas a que compreende; não é a que prevê, mas a que contempla; não é a que domina o mundo, mas a que se deixa iluminar pela luz do Verbo.
No fundo, toda “inteligência artificial” é apenas um espelho imperfeito da inteligência natural. E todo amor que se volta para o espelho, esquecendo a luz que o torna visível, termina em idolatria.
6. Conclusão
A técnica, sem o homem, é cega; o homem, sem Deus, é surdo.
A inteligência artificial não é uma ameaça porque pensa — mas porque o homem deixa de pensar ao delegar o pensamento ao instrumento. A crise do século XXI não é tecnológica, mas espiritual: é o esquecimento da fonte viva da inteligência.
Reordenar o amor é reordenar o ser. Usar a técnica para servir à verdade é elevar o trabalho humano à dignidade do culto; adorar a técnica é apenas multiplicar a soberba que, desde Babel, confunde a língua dos homens.
“A máquina é inocente. O pecado está em amar o reflexo mais do que a luz.”
Bibliografia essencial
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Santo Agostinho, A Cidade de Deus.
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Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições.
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Olavo de Carvalho, A Nova Era e a Revolução Cultural.
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Romano Guardini, O Fim da Era Moderna.
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Byung-Chul Han, A Sociedade do Cansaço.
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Viktor Frankl, Em Busca de Sentido.
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Jacques Ellul, A Técnica e o Desafio do Século.