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segunda-feira, 3 de novembro de 2025

A política como continuação da Trindade: recursividade e destino da Cristandade no triângulo de Sierpiński

1. Introdução — O fractal como ícone da eternidade

A civilização cristã nasceu de um mistério geométrico: o Um que é Três e o Três que é Um. A Trindade, fundamento do ser e da comunhão, é a forma suprema da recursividade divina: o Ser que se reflete infinitamente em Si mesmo sem se esgotar.

No plano teológico, essa recursividade é o amor — o Pai gera o Filho, o Filho retorna ao Pai, e o Espírito é o vínculo desse retorno. No plano político e civilizacional, ela se expressa como ordem de relações, em que cada nível da sociedade reflete a unidade viva das pessoas divinas.

O triângulo de Sierpiński, figura matemática composta pela repetição infinita de triângulos dentro de triângulos, torna-se símbolo perfeito dessa estrutura: ele representa o infinito contido no finito, a imagem visível da comunhão trinitária projetada na história.

2. A Trindade como forma originária de toda política cristã

Em sua essência, a Trindade é comunhão sem confusão: unidade na distinção, distinção sem ruptura.
Cada Pessoa é plena e livre, e, no entanto, todas agem em perfeita concórdia. Essa é a estrutura fundamental de toda verdadeira política cristã: a coexistência de autoridade, participação e comunhão.

  • O Pai é princípio de autoridade — representa a origem, a lei, a providência.

  • O Filho é princípio de obediência e serviço — o Logos encarnado, que realiza o projeto do Pai no tempo.

  • O Espírito Santo é princípio de liberdade e comunhão — o amor que une os dois e distribui os dons.

A sociedade que reflete essa estrutura trinitária é hierárquica sem ser tirânica, livre sem ser anárquica, fraterna sem ser niveladora. É a polis trinitária: onde cada pessoa e cada instituição refletem, em escala própria, a recursividade da comunhão divina.

3. O triângulo de Sierpiński: o símbolo da recursividade criadora

O triângulo de Sierpiński é uma figura fractal em que cada parte reproduz a forma do todo.
Seu princípio é a autossimilaridade: o mesmo padrão se repete em escalas cada vez menores, sem jamais perder a unidade da forma.

Ora, esse é exatamente o modo como o Espírito Santo age na história.
Cada comunidade cristã, cada família, cada vocação é uma pequena trindade, reflexo parcial e concreto da Trindade eterna. Assim como o triângulo de Sierpiński contém infinitas repetições do mesmo triângulo, a Cristandade contém infinitas participações da mesma graça.

O fractal é a geometria da Encarnação: o infinito que se repete no finito sem se confundir com ele.

No triângulo trinitário, o vértice superior (o Pai) sustenta dois inferiores (Filho e Espírito), mas todo o desenho é recursivo: cada relação contém, dentro de si, novas relações — a comunhão se propaga por analogia. A política, nesse sentido, é a continuação dessa recursividade divina:
uma tentativa de dar forma visível ao amor invisível.

4. Da ontologia à política: o ser recursivo

José Marinho compreendeu o ser como relação de reconciliação — o ser-da-verdade e a verdade-do-ser.
Essa estrutura é intrinsecamente trinitária: o ser é o Pai, a verdade é o Filho, e a reconciliação é o Espírito.
A ontologia portuguesa, ao afirmar que o ser é comunhão, já contém o germe de uma política trinitária.

A recursividade do triângulo de Sierpiński traduz graficamente esse processo:

  • o triângulo maior é o Ser divino;

  • cada subdivisão é uma participação criada;

  • o espaço vazio no centro é o mistério da transcendência, a abertura para o infinito.

A política, assim, é a aplicação social dessa recursividade:
cada ordem humana — família, corporação, Estado, Igreja — reflete em escala o triângulo maior, reproduzindo em si a harmonia trinitária.

5. Pascoaes e a recursividade da saudade

Teixeira de Pascoaes, em A Arte de Ser Português, intuiu essa estrutura sem formalizá-la matematicamente. Para ele, a saudade é o sentimento de uma recursividade espiritual:
cada alma contém a imagem do Todo e deseja reencontrá-la. A saudade é o eco do triângulo de Sierpiński no coração — a nostalgia do infinito reproduzido no finito.

“A saudade é o eterno a refletir-se em cada momento.” — Pascoaes

Assim como cada triângulo menor contém o desenho do todo, cada ato humano — de amor, de trabalho, de criação — contém o reflexo do ato criador de Deus. A política, se for espiritual, deve preservar essa autossimilaridade: cada cidadão deve refletir em si a harmonia que deseja ver na nação.

6. A Cristandade como fractal da Trindade

Quando falamos em Cristandade, não falamos apenas de um conjunto de países cristãos, mas de uma estrutura espiritual recursiva: cada reino, cada ordem religiosa, cada família, cada pessoa, reproduz em pequena escala a comunhão trinitária. A recursividade da graça é o próprio destino da história cristã: o Espírito multiplica a unidade sem destruí-la.

Na Idade Média, essa estrutura era visível: o império, o rei, os mestres e os servos formavam uma hierarquia simbólica de cooperação — reflexo da Trindade. Quando a modernidade dissolveu esse padrão, perdeu-se a autossimilaridade espiritual: a sociedade tornou-se fragmento sem forma.

O triângulo de Sierpiński, então, aparece como símbolo da reconstrução cristã da ordem: um fractal de amor, em que cada parte — família, empresa, Estado — reproduz o modelo divino. A recursividade é o antídoto da revolução, porque substitui a ruptura pela filiação.

7. Política trinitária e destino da Cristandade

Se a Trindade é a forma do ser e da comunhão, então a política é a sua continuação no tempo.
Governar cristãmente é administrar a recursividade da unidade: fazer com que cada nível social reflita, em proporção própria, a harmonia entre autoridade, serviço e comunhão.

Uma política trinitária não centraliza nem pulveriza o poder: ela o distribui analogicamente, como o Espírito distribui os dons. A verdadeira liberdade não é independência, mas participação; a verdadeira igualdade não é nivelamento, mas reciprocidade; a verdadeira fraternidade não é homogeneização, mas comunhão.

A Cristandade, nessa visão, não é um império externo, mas um fractal espiritual — um triângulo infinito de Sierpiński desenhado pela graça na história. Cada época, cada nação, cada pessoa é uma célula dessa forma viva, destinada a refletir a luz trinitária sob infinitos ângulos.

8. Conclusão — O triângulo de Sierpiński como ícone do Espírito

A política cristã, quando fiel à Trindade, é fractal e recursiva:
ela repete, em todas as escalas, a harmonia do amor.
O triângulo de Sierpiński é o seu símbolo geométrico:
cada novo triângulo é uma nova geração da Cristandade,
cada vazio é uma abertura para o infinito,
e o todo é uma única figura, indivisa, eternamente repetida.

Assim, podemos dizer:

  • A ontologia de Marinho é o triângulo de base: o ser, a verdade e a reconciliação.

  • A saudade de Pascoaes é o movimento interno do fractal: o desejo que reitera o amor em cada escala.

  • A doutrina social da Igreja é a geometria aplicada: a política como economia do Espírito.

  • A Cristandade, enfim, é o triângulo vivo de Sierpiński, recursivo, infinito, pneumático — o destino da história sob o signo do Amor.

“Assim como no alto, assim em baixo;
assim como na Trindade, assim na Cristandade.”

O fractal é, portanto, o ícone da eternidade em ato — a imagem matemática da recursividade divina, o desenho da política do Espírito Santo.
A cada nova geração, a forma repete-se, mas a luz é sempre nova:
eis a promessa da cristandade — uma unidade infinita em constante criação.

Bibliografia simbólica e teológica

  • José Marinho. Teoria do Ser e da Verdade. Lisboa: Guimarães Editores, 1961.

  • Teixeira de Pascoaes. A Arte de Ser Português. Lisboa: Renascença Portuguesa, 1915.

  • Santo Agostinho. De Trinitate.

  • Leão XIII. Rerum Novarum. Vaticano, 1891.

  • São Boaventura. Itinerarium Mentis in Deum.

  • Hans Urs von Balthasar. Teodramática.

  • Benoît Mandelbrot. The Fractal Geometry of Nature. W. H. Freeman, 1982.

  • Joseph Ratzinger. Introdução ao Cristianismo.

A economia do Espírito Santo: a trindade como fundamento da reconciliação entre graça, trabalho e civilização

1. Introdução — O Espírito Santo como administrador da unidade

Se o Pai é o Criador e o Filho é o Verbo Encarnado, o Espírito Santo é o Administrador da unidade: Aquele que aplica no tempo a obra da reconciliação. Ele é o vínculo da Trindade — vinculum amoris — e, portanto, o princípio de toda comunhão, seja no coração do homem, seja na sociedade.

Por isso, pode-se dizer que toda economia verdadeira — espiritual, política ou social — é uma economia do Espírito Santo. Ela é o regime do amor operante, da concórdia viva, da cooperação entre diferentes que permanecem distintos sem se opor.

A filosofia portuguesa pressente esse mistério e o traduz no plano histórico. Desde a Idade Média até a Renascença, Portugal concebeu-se como instrumento da conciliação universal — não o império da força, mas o império do Espírito. O Império do Espírito Santo, anunciado por Joaquim de Fiore e reinterpretado pelos místicos lusos, é a expressão simbólica dessa economia divina aplicada à história.

2. A trindade como modelo de toda economia

A palavra economia (do grego oikonomia) significa “administração da casa”. Na teologia cristã, oikonomia divina é a maneira pela qual Deus conduz a história da salvação: o plano pelo qual o Pai, o Filho e o Espírito Santo agem em harmonia, cada um segundo a sua missão.

Essa estrutura trinitária é o modelo de toda ordem social justa:

  • O Pai representa o princípio, o poder criador, o capital em sentido originário — o dom das origens.

  • O Filho representa o trabalho redentor — o Logos que assume a matéria e a transfigura.

  • O Espírito Santo é o laço que reconcilia ambos, convertendo o dom em comunhão, o trabalho em fraternidade, a criação em civilização.

Assim, a Trindade é a primeira e suprema economia: o capital é doação, o trabalho é encarnação, e o Espírito é cooperação.

3. A filosofia portuguesa e a estrutura trinitária do ser

Na ontologia de José Marinho, o ser é reconciliação; na poesia de Teixeira de Pascoaes, é saudade; em ambos, o Espírito aparece implicitamente como energia de unificação — o “sopro” que transforma a separação em comunhão. Marinho fala do ser-da-verdade e da verdade-do-ser; Pascoaes fala da saudade que liga o finito ao infinito. Ambos descrevem, com linguagem diferente, o mesmo papel que a teologia atribui ao Espírito: o mediador da unidade.

“O Espírito Santo é o amor que faz do mundo uma só casa.” — Agostinho, De Trinitate

A filosofia portuguesa, ao privilegiar a interioridade e o amor como formas de conhecimento, é, no fundo, uma metafísica pneumatológica: ela pensa a realidade como relação viva, não como substância morta.
Por isso, é o solo natural para acolher a Rerum Novarum e a espiritualidade de Escrivá: ambas supõem que o Espírito trabalha na matéria, transformando estruturas externas em instrumentos de comunhão.

4. O “Império do Espírito Santo”: símbolo da economia reconciliada

O mito português do Império do Espírito Santo — de raízes joaquimitas e franciscanas — é a tradução popular dessa teologia da reconciliação. Joaquim de Fiore havia anunciado três idades da história:
a do Pai (Lei), a do Filho (Graça) e a do Espírito (Amor). Os místicos lusos, do Infante D. Pedro a Padre António Vieira, reinterpretaram essa visão: Portugal seria o instrumento histórico da terceira idade — a do Espírito, em que o amor substituiria a violência e a unidade espiritual suplantaria a dominação política.

“O Império do Espírito Santo é o reino da concórdia, em que todos serão irmãos.” — Padre António Vieira, Sermões

Essa esperança não é utopia sociológica, mas expressão simbólica de uma verdade teológica:
o Espírito Santo é o princípio de toda reconciliação. Assim como une o Pai e o Filho, Ele une as classes, os povos e as vocações. A economia reconciliada é, portanto, o reflexo terreno da comunhão trinitária.

5. São Josemaria Escrivá e a pneumatologia do cotidiano

Quando Escrivá ensina que o cristão deve “santificar o trabalho”, ele introduz o Espírito Santo no centro da economia moderna. O Espírito é quem inspira, move e aperfeiçoa a ação humana. A oficina, o escritório e o campo tornam-se templos quando o Espírito age no trabalhador.

“No meio das ocupações mais materiais, podemos estar em contínuo trato com Deus.” — São Josemaria Escrivá, Sulco, n.º 485

Essa é a economia do Espírito: uma economia da presença divina no fazer humano. O Espírito é o Administrador invisível da criação, aquele que transforma o esforço em caridade e o tempo em eternidade.
Onde o Espírito habita, o lucro se torna serviço, o poder se torna responsabilidade e o trabalho se torna oração.

6. “Rerum Novarum” e a concórdia trinitária das classes

A encíclica Rerum Novarum é o primeiro esforço moderno de traduzir a economia trinitária para a sociedade industrial. Ela propõe a concórdia entre capital e trabalho, porque ambos são participações distintas do mesmo ato criador.

  • O capital é o Pai, que provê e guarda.

  • O trabalho é o Filho, que encarna e redime.

  • O Espírito Santo é a cooperação, o amor social que liga patrões e operários, ricos e pobres, num mesmo corpo místico.

Essa visão supera o materialismo marxista e o liberalismo individualista porque não reduz o homem a função econômica, mas o vê como imagem trinitária: pessoa, relação e comunhão.

A economia cristã é, assim, uma economia de comunhão — não mera redistribuição de bens, mas comunhão de seres. A caridade social é o nome humano da ação do Espírito.

7. O Espírito Santo e a vocação portuguesa na história

Portugal, desde a sua fundação espiritual em Ourique, viveu sob o signo da reconciliação. O “por Cristo e para Cristo” do juramento d’El-Rei Afonso Henriques é o início da oikonomia do Espírito: uma nação destinada a servir a união dos povos na fé e na cultura.

Teixeira de Pascoaes viu nisso a “arte de ser português”: criar, sofrer e amar em direção a Deus. José Marinho deu-lhe forma metafísica: o ser é comunhão. E Escrivá deu-lhe expressão prática: trabalhar é santificar o mundo.

Assim, a vocação portuguesa — missionária, contemplativa e criadora — é a manifestação histórica da economia trinitária: levar o Espírito de concórdia onde houver divisão, levar a beleza onde houver miséria,
levar a santificação onde houver trabalho.

8. Conclusão — A economia do Espírito: da trindade à civilização

A Economia do Espírito Santo é o coroamento da ontologia da reconciliação.
Ela mostra que a civilização cristã não é apenas um arranjo ético, mas uma liturgia cósmica: o mundo inteiro é templo, e cada ato humano pode ser eucarístico.

  • A filosofia portuguesa revela o fundamento ontológico: o ser é comunhão.

  • A doutrina social da Igreja revela o fundamento moral: o trabalho é cooperação.

  • A espiritualidade de Escrivá revela o fundamento místico: o trabalho é oração.

  • O Espírito Santo é o vínculo invisível que harmoniza tudo — o “Administrador da unidade”, o motor da história reconciliada.

Por isso, a verdadeira revolução social não é a luta de classes, mas a efusão do Espírito:
é Ele quem transforma o conflito em comunhão, a posse em serviço, o trabalho em dom.

A Rerum Novarum é o estatuto terreno dessa economia trinitária;
a filosofia portuguesa é a sua metafísica;
e a santificação pelo trabalho é o seu método prático.

No final, o que resta é o Reino:
não o império da força, mas o Império do Espírito Santo,
onde o capital é doação, o trabalho é amor,
e toda civilização é reconciliação.

“Vinde, Espírito Santo, e renovai a face da terra.” (Sl 104,30)

Bibliografia essencial

  • Leão XIII. Rerum Novarum. Vaticano, 1891.

  • José Marinho. Teoria do Ser e da Verdade. Lisboa: Guimarães Editores, 1961.

  • Teixeira de Pascoaes. A Arte de Ser Português. Lisboa: Renascença Portuguesa, 1915.

  • São Josemaria Escrivá. Caminho, Sulco, Forja. Madrid: Rialp.

  • Padre António Vieira. Sermões do Espírito Santo. Lisboa, 1649.

  • Hans Urs von Balthasar. O Espírito da Verdade. Paulus, 1990.

  • João Paulo II. Laborem Exercens e Centesimus Annus. Vaticano.

A ontologia da reconciliação e a santificação através do trabalho: o espírito da “Rerum Novarum” na filosofia portuguesa

1. Introdução — O Espírito Santo como mediador da História

Toda crise social é, no fundo, uma crise espiritual. As lutas entre capital e trabalho, entre patrões e operários, entre progresso e tradição, não são apenas conflitos econômicos, mas sintomas de uma cisão ontológica: o rompimento entre o ser e a verdade, entre o espírito e a matéria.

A filosofia portuguesa — de Teixeira de Pascoaes a José Marinho — nasce precisamente como resposta a essa cisão. Ela não é mera especulação sobre o ser, mas um projeto de reconciliação: unir o visível e o invisível, o pensamento e a vida, a alma e o mundo.

Quando São Josemaria Escrivá fala de santificação através trabalho, ele dá a essa ontologia uma aplicação concreta: o homem reconcilia o tempo com a eternidade ao transformar o trabalho em oração. E quando Leão XIII publica Rerum Novarum (1891), ele faz dessa reconciliação o programa social da Igreja: a concórdia entre as classes é o reflexo, na ordem econômica, da união entre o ser e a verdade na ordem ontológica.

2. José Marinho: reconciliar o ser e a verdade

Para José Marinho, o drama humano começa na cisão — a ruptura entre o ser e a verdade. O homem conhece o ser apenas fragmentariamente, e por isso vive em desordem. Mas o pensamento, quando se abre à transcendência, torna-se lugar de reconciliação: o ser-da-verdade e a verdade-do-ser voltam a coincidir.

“O Ser é da Verdade, e a Verdade é do Ser.” — José Marinho, Teoria do Ser e da Verdade

No plano social, essa cisão manifesta-se como conflito entre capital e trabalho — duas faces de uma mesma substância humana, agora separadas pela ganância e pela alienação. O capital (fruto do trabalho acumulado) e o trabalho (ato atual de criação) são, como o ser e a verdade, complementares e inseparáveis. Divididos, produzem miséria e injustiça; reconciliados, tornam-se fecundos.

Portanto, a ontologia da reconciliação de Marinho fornece a base metafísica da Rerum Novarum:
reconciliar o que o pecado dividiu, harmonizar a criação com o Criador.

3. Teixeira de Pascoaes: o trabalho como arte e oração

Em A Arte de Ser Português, Teixeira de Pascoaes vê na saudade a força que une o homem a Deus. Ela é, em termos sociais, o princípio de uma economia espiritual: a alma que sente saudade trabalha não apenas por lucro, mas por amor; ela transforma o fazer em arte, o esforço em oferenda.

“O trabalho é a oração em movimento.” — Pascoaes, manuscritos da Renascença Portuguesa

Pascoaes antecipa o que Escrivá sistematizará: o homem se santifica fazendo bem o que deve fazer, por amor. A saudade é o vínculo entre o finito e o infinito — e o trabalho é o meio pelo qual essa ligação se torna visível.

Em termos sociais, isso significa que a arte e a economia se reconciliam. O trabalho manual, intelectual ou espiritual, quando realizado com amor e perfeição, deixa de ser meio de opressão e torna-se comunhão.
É aqui que a filosofia portuguesa encontra a doutrina social da Igreja: o homem é chamado a trabalhar com alma, não apenas com técnica.

4. São Josemaria Escrivá: a santificação pelo trabalho como praxis da reconciliação

São Josemaria Escrivá (1902–1975) retoma, em chave espiritual, o mesmo princípio ontológico:
se Cristo, o Verbo Encarnado, santificou a matéria ao assumir um corpo humano, então toda ação humana pode ser lugar de graça.

“Santificar o trabalho, santificar-se no trabalho, e santificar os outros com o trabalho.” — Escrivá, Caminho, n.º 825

Essa tríplice fórmula resume o movimento da reconciliação:

  1. Santificar o trabalho — unir o ser e a verdade: fazer o que se faz com perfeição e sentido de serviço.

  2. Santificar-se no trabalho — reconciliar corpo e alma, tempo e eternidade.

  3. Santificar os outros com o trabalho — reconciliar a sociedade, criar comunhão entre as classes.

Escrivá transforma em praxis espiritual o que Marinho descreveu metafisicamente e Pascoaes poeticamente. O trabalho torna-se o sacramento do ser — a ponte viva entre o homem e Deus, entre o capital e o trabalho, entre a terra e o céu.

5. “Rerum Novarum”: a ontologia da concórdia social

A encíclica Rerum Novarum de Leão XIII foi escrita num contexto de conflito social. Mas, mais do que política, ela propõe uma filosofia da concórdia: o capital e o trabalho devem cooperar, porque ambos são expressões de uma mesma dignidade humana.

“Entre os deveres do patrão e do operário, há vínculos sagrados de justiça e caridade.” — Leão XIII, Rerum Novarum, §19

Ora, isso é exatamente o que a filosofia portuguesa compreende como ontologia da reconciliação: assim como o ser e a verdade não podem ser separados sem que o mundo se desintegre, também o capital e o trabalho não podem ser separados sem que a sociedade adoeça.

A Rerum Novarum não é apenas um manifesto econômico, mas uma teologia da comunhão social. Ela reconhece no trabalho humano a extensão da criação divina — e, portanto, o lugar onde a graça deve penetrar a economia.

6. Portugal e o destino espiritual da reconciliação

Na alma portuguesa — moldada pela saudade, pela missão e pela arte — há uma vocação natural para a reconciliação dos contrários. Por isso, a filosofia portuguesa, unida à espiritualidade do Opus Dei e à doutrina social da Igreja, representa uma forma de economia cristã integral: um modo de viver a fé na história, sem dualismos, sem materialismo, sem ódio de classes.

O “Império do Espírito Santo”, de que falavam os místicos lusos, é precisamente isso: uma sociedade reconciliada, onde cada homem trabalha com amor, cada capital serve ao bem comum e cada vocação floresce em comunhão. O português, como dizia Pascoaes, é “ponte entre o finito e o infinito” — e o seu trabalho é a expressão dessa ponte.

Assim, a “arte de ser português” é, em sentido pleno, a arte de aplicar a Rerum Novarum:
transformar a economia em oração, a técnica em serviço, e o progresso em santidade.

7. Conclusão — A economia da graça

A santificação através do trabalho, em Escrivá; a reconciliação do ser e da verdade, em Marinho; a saudade criadora, em Pascoaes; e a concórdia social, em Leão XIII — são faces de uma mesma verdade: a economia da graça.

O trabalho é o altar do mundo moderno. Nele, o homem se reconcilia com Deus e com o próximo.
A luta de classes cede lugar à colaboração; a competição dá espaço à comunhão; e a matéria, quando tocada pela graça, torna-se sacramento.

“Tudo o que é verdadeiramente humano é caminho para Deus.” — São Josemaria Escrivá

A filosofia portuguesa, ao compreender o ser como reconciliação, oferece o fundamento metafísico da doutrina social da Igreja: a paz entre capital e trabalho só é possível quando ambos reconhecem que o verdadeiro patrão é Deus e o verdadeiro lucro é o amor.

Em Cristo, o Verbo Operário, o mundo reencontra sua unidade: a teologia torna-se economia, o trabalho torna-se oração, e o homem torna-se ponte entre o tempo e a eternidade.

Bibliografia essencial

  • Leão XIII. Rerum Novarum. Vaticano, 1891.

  • São Josemaria Escrivá. Caminho; Sulco; Forja. Madrid: Rialp, 1950–1977.

  • José Marinho. Teoria do Ser e da Verdade. Lisboa: Guimarães Editores, 1961.

  • Teixeira de Pascoaes. A Arte de Ser Português. Lisboa: Renascença Portuguesa, 1915.

  • António Braz Teixeira. Filosofia Portuguesa Contemporânea. Lisboa: INCM, 1983.

  • Pio XI. Quadragesimo Anno. Vaticano, 1931.

  • São João Paulo II. Laborem Exercens. Vaticano, 1981.

O trabalho como ponte ontológica: a ética da criação em Cristo

1. Introdução — trabalhar é continuar a travessia do verbo

Depois de compreender o homem como ponte (Szondi), e Cristo como Ponte Ontológica (Marinho e Pascoaes), resta reconhecer o desdobramento ético desse mistério: o trabalho é a continuidade da Encarnação no tempo.

Deus, ao criar o mundo, fez da ação o reflexo do seu ser: “Meu Pai trabalha sempre, e Eu também trabalho” (Jo 5,17). O homem, criado à sua imagem, participa desse labor divino. Trabalhar, portanto, não é apenas meio de subsistência, mas ato ontológico de mediação — é construir pontes entre o ideal e o real, entre o que é e o que deve ser.

Toda obra humana — quando justa, bela e verdadeira — prolonga o gesto criador do Verbo.
Assim como Cristo reconcilia o céu e a terra pela cruz, o homem reconcilia matéria e espírito pelo trabalho. Essa é a ética do operário divino: servir à verdade no concreto, fazer do tempo um altar.

2. José Marinho e o trabalho como reconciliação do ser e da verdade

Em Teoria do Ser e da Verdade, José Marinho afirma que o pensamento humano é o “lugar da reconciliação”. Mas podemos ampliar: o trabalho é a forma prática dessa reconciliação. Toda vez que o homem age criativamente — seja plantando, escrevendo, curando ou administrando — ele revela a verdade do ser, isto é, faz aparecer na matéria algo do seu fundamento espiritual.

“O Ser é da Verdade, e a Verdade é do Ser.” — José Marinho

O operário, o artesão, o cientista ou o poeta participam da mesma economia espiritual: todos buscam dar forma ao invisível. O trabalho, nesse sentido, é ontologia em ato. É nele que o ser se torna visível e a verdade, tangível.

Quando o trabalho é desprovido de amor, torna-se alienação; quando é movido por amor, torna-se liturgia. O altar do homem moderno é a sua mesa de trabalho — ali ele pode, ou não, reconciliar o mundo com o seu Criador.

3. Teixeira de Pascoaes e a arte de trabalhar com alma

Teixeira de Pascoaes, ao falar da Arte de Ser Português, reconhece na alma criadora o centro da nacionalidade.
A arte, para ele, é o trabalho elevado à dignidade espiritual — é a “labuta divina” que transforma a saudade em beleza.

“A arte é a mais pura oração do homem à eternidade.” — Teixeira de Pascoaes

Nesse sentido, o verdadeiro artista — e, por extensão, todo trabalhador que age com espírito criador — é um sacerdote do ser. Ele consagra o mundo à luz, faz da matéria uma oferenda. O trabalho, iluminado pela saudade, torna-se mística do fazer: o homem trabalha não só para viver, mas para revelar o que ama.

O português, na visão pascoalina, é chamado a “trabalhar poeticamente” — a imprimir nas coisas a marca da alma. Essa é a essência da sua missão civilizadora: unir ação e contemplação, técnica e fé, corpo e espírito.

4. Szondi e a ética do destino como vocação ao trabalho

Leopold Szondi mostrou que cada homem traz consigo impulsos herdados — vocações, tendências, dons e tentações — que formam o seu “inconsciente familiar”. Mas o homem se realiza quando escolhe o que fazer com esse legado.

O trabalho, então, é o meio pelo qual o homem redime a herança. Aquilo que herdamos — nossa biologia, nossa história, nosso temperamento — só se torna liberdade quando é posto a serviço. É pelo trabalho que o destino se converte em missão.

“O trabalho é a escolha pela qual o destino se transforma em liberdade.” — Leopold Szondi

A “ética do destino” é, em última instância, uma teologia da vocação. Cada profissão, cada tarefa, cada ofício é um chamado à unificação — o homem deve trabalhar de modo a reconciliar em si o herdado e o criado, o passado e o futuro, o natural e o sobrenatural.

Assim, Szondi antecipa o que Cristo realiza plenamente: assumir a carne — a herança da humanidade — e transformá-la em instrumento da redenção.

5. Cristo operário: o Verbo que trabalha

Cristo é o paradigma do trabalho redentor. antes de pregar, Ele foi carpinteiro; antes de ensinar, Ele construiu com as mãos. o madeiro que sustentou as Suas obras é o mesmo que sustentou a Cruz — a madeira do trabalho tornou-se a madeira da salvação.

“Com o suor do teu rosto comerás o teu pão” (Gn 3,19)
— e em Cristo, o suor tornou-se sangue de redenção.

Na Encarnação, Deus assume não apenas a natureza humana, mas também a condição laboral do homem.
Trabalhar, portanto, é participar do mistério da Encarnação: é divinizar a ação humana. O trabalho é o sacramento do tempo, onde a eternidade se esconde sob a forma do esforço.

Cristo não anula o trabalho — Ele o transfigura. Por isso, todo trabalhador justo é tipo do Cristo carpinteiro: constrói pontes de madeira e de espírito, unindo o mundo ao seu princípio.

6. A economia como teologia da criação

Na perspectiva cristã e portuguesa, a economia — oikos nomos, a “lei da casa” — é também uma lei do ser. A ordem econômica verdadeira deve refletir a harmonia do cosmos: equilíbrio, justiça e amor. A usura, a exploração e o lucro sem sentido são formas de cisão — rompem a ponte entre o trabalho e o ser.

A economia espiritual, por outro lado, é ecologia da verdade: tudo o que é criado deve servir ao bem comum, devolver ao Criador o dom recebido.

Assim, a ética do trabalho não se mede apenas por produtividade, mas por fecundidade espiritual:

  • um livro escrito com amor vale mais que mil palavras vazias;

  • um pão partilhado tem mais peso ontológico que um ouro acumulado;

  • um ato de serviço silencioso aproxima mais de Deus do que mil discursos de fé.

A economia cristã é, portanto, economia de pontes — ela liga dons e necessidades, trabalho e graça, tempo e eternidade.

7. A santificação através do trabalho — a ponte do quotidiano

Santificar-se é tornar-se transparente ao ser. Cada homem é chamado a transformar o seu ofício em altar, o seu talento em dom, o seu esforço em oração.

Essa é a espiritualidade do labor, fundamento de toda verdadeira civilização. O santo e o trabalhador coincidem quando o trabalho é feito ad maiorem Dei gloriam — para maior glória de Deus. E o homem torna-se, então, o que Szondi, Marinho e Pascoaes anunciaram: uma ponte viva onde o eterno passa pelo tempo e o tempo ascende ao eterno.

8. Conclusão — o trabalho como extensão da encarnação

O homem, imagem do Cristo-Ponte, é chamado a prolongar a obra divina pela ação. Cada ato criador é um tijolo nessa ponte que liga a terra ao céu.

  • Em Pascoaes, trabalhar é criar com saudade — transformar ausência em presença.

  • Em Marinho, trabalhar é reconciliar ser e verdade — tornar o invisível visível.

  • Em Szondi, trabalhar é transfigurar o destino — fazer da herança uma vocação.

  • Em Cristo, trabalhar é amar até o fim — fazer da cruz a maior das obras.

O trabalho, quando unido a Cristo, deixa de ser castigo e torna-se missão redentora. É por ele que o homem, no cotidiano, participa da economia trinitária do amor.

E assim se cumpre o destino espiritual da humanidade: ser ponte entre o ser e o devir, entre o Criador e a Criação, entre o Tempo e a Eternidade.

“Tudo o que fizerdes, fazei-o de coração, como para o Senhor.” (Cl 3,23)

Trabalhar é, enfim, adorar com as mãos.

Bibliografia essencial

  • José Marinho. Teoria do Ser e da Verdade. Lisboa: Guimarães Editores, 1961.

  • Teixeira de Pascoaes. A Arte de Ser Português. Lisboa: Renascença Portuguesa, 1915.

  • Leopold Szondi. Schicksalsanalyse. Basel: Benno Schwabe, 1944.

  • São João Paulo II. Laborem Exercens. Vaticano, 1981.

  • Joseph Ratzinger. Introdução ao Cristianismo. Lisboa: Paulinas, 1971.

  • Hans Urs von Balthasar. Glória: Uma Estética Teológica. Lisboa: Paulus, 1990.

  • Tomás de Aquino. Suma Teológica, I-II, q. 3, a. 8 – “O trabalho como cooperação na providência divina.”

Cristo como ponte ontológica: a culminância da filosofia portuguesa na Teologia da Encarnação

 1. Introdução — da ponte humana à Ponte divina

Toda filosofia que leva a sério a ideia do homem como pontifex culmina necessariamente na figura de Cristo, o Pontifex Maximus. Ele é o arco perfeito que liga o Ser ao Nada, o Infinito ao Finito, a Verdade à Existência. Em Cristo, a ponte deixa de ser apenas metáfora — torna-se realidade ontológica.

A filosofia portuguesa — sobretudo em Teixeira de Pascoaes e José Marinho — pressente essa verdade e a expressa sob forma poética e metafísica: o homem como ponte é imagem de Cristo, o mediador absoluto. Mesmo Szondi, em sua psicologia do destino, reconhece essa dimensão redentora da liberdade humana, quando afirma que o homem só se realiza reconciliando em si o herdado e o escolhido — exatamente o que Cristo realiza em plenitude.

A Encarnação é, portanto, o eixo em torno do qual essas três visões convergem: a saudade de Pascoaes, a ontologia de Marinho e a ética de Szondi encontram em Cristo o seu cumprimento total.

2. Cristo como o Ser da Verdade

José Marinho fala do Ser e da Verdade como dois polos cuja unidade foi rompida pela cisão. No homem, essa cisão é consciência de finitude; em Cristo, ela é superada, porque o Ser e a Verdade coincidem plenamente.

“Eu sou o caminho, a verdade e a vida.” (Jo 14,6)

Cristo é, ontologicamente, o ponto de interseção entre o Ser absoluto (Deus) e o ser finito (homem). Nele, o Ser da Verdade é o próprio Verbo, e a Verdade do Ser é a sua Encarnação. Tudo o que Marinho descreve como tarefa filosófica — a reconciliação entre ser e verdade — acontece em Cristo como fato ontológico.

Assim, podemos dizer:

  • O que em Marinho é “visão unívoca”, em Cristo é visão beatífica.

  • O que em Marinho é “cisão”, em Cristo é kenosis, o esvaziamento voluntário que abre caminho para a unidade.

  • O que em Marinho é “insubstancial substante”, em Cristo é o Logos encarnado, o Espírito que se faz carne sem perder sua substancialidade divina.

Cristo, portanto, não apenas pensa o Ser — Ele é o Ser que pensa e se doa; não apenas revela a Verdade — Ele é a Verdade que se encarna.

3. Cristo como saudade encarnada

Em A Arte de Ser Português, Pascoaes descreve a saudade como o elo entre o homem e Deus — o desejo que une o finito ao infinito. Mas a saudade, em sua estrutura mais íntima, é o eco da Encarnação: o coração humano sente falta de Deus porque foi criado para Ele.

“A Saudade é o laço divino que une o ser à sua origem.” — Teixeira de Pascoaes

Cristo é a própria Saudade feita carne. Ele não apenas simboliza o desejo de união — Ele realiza a união desejada. Se a alma portuguesa sofre de saudade, é porque intui o drama do Verbo: o Espírito que desce ao mundo para reunir o que estava disperso.

Na cruz, a saudade atinge o seu clímax: o grito “Eli, Eli, lama sabactani” é o eco do homem que, por amor, assume a distância de Deus para vencê-la. A ressurreição é a conversão dessa saudade em presença — a transformação do desejo em posse amorosa.

Em Cristo, portanto, a saudade deixa de ser apenas sentimento — torna-se ontologia redimida: o movimento da alma que retorna à sua fonte.

4. Cristo como ética do destino

Para Szondi, o homem é livre na medida em que aceita e transfigura o seu destino. A liberdade não consiste em negar a herança, mas em assumir e santificar o que se recebeu. A Encarnação é a suprema expressão dessa ética: o Verbo assume a carne herdada da humanidade e, ao assumi-la, redime-a.

“O Verbo se fez carne, e habitou entre nós.” (Jo 1,14)

Cristo não rejeita o destino humano; Ele o transforma em caminho de redenção. O que em Szondi é “ética do destino”, em Cristo é salvação ontológica: a carne, antes instrumento da morte, torna-se sacramento da vida eterna.

Assim, o homem, criado à imagem do Filho, é chamado também a essa obra: transformar o que herdou (biologia, história, cultura, dor) em oferenda livre e amorosa. A vocação é o prolongamento da Encarnação no tempo — a ponte viva pela qual Deus continua a atravessar o mundo.

5. Cristo como ponte ontológica universal

A teologia cristã sempre chamou Cristo de Mediador. Mas, à luz de Pascoaes, Marinho e Szondi, podemos compreender essa mediação não apenas moral ou religiosa, mas ontológica.

  • Cristo é a ponte metafísica: une Ser e Verdade, restaurando a unidade que o pensamento filosófico busca.

  • Cristo é a ponte afetiva: cumpre o movimento da Saudade, trazendo Deus de volta ao coração do homem.

  • Cristo é a ponte ética: assume o Destino e o transfigura, mostrando que o sofrimento pode ser caminho de luz.

A Cruz é o ponto de encontro dessas três dimensões — o eixo vertical (Deus-homem) e o horizontal (homem-mundo) que se cruzam no coração do Salvador. A cruz é, literalmente, a arquitetura da ponte divina: une o céu e a terra em duas vigas que se sustentam pelo amor.

6. Cristo e a vocação portuguesa — servir, reconciliar, alargar

A missão espiritual de Portugal, como intuiu Pascoaes, é uma extensão dessa ponte divina. O impulso missionário português — ir “por mares nunca dantes navegados” — é símbolo da vocação universal do espírito humano de alargar o ser e levar a luz onde há escuridão.

José Marinho diria: trata-se do ser da verdade em ato. Pascoaes diria: é a saudade de Deus a expandir-se pelo mundo. Szondi diria: é o destino herdado que se transforma em liberdade criadora.

Mas todos, à sua maneira, reconhecem o mesmo arquétipo: o homem chamado a imitar o Cristo-Ponte, a unir o que o mundo separa — fé e razão, espírito e matéria, indivíduo e comunidade, tempo e eternidade.

7. Conclusão — O logos como arquitetura do ser

No princípio era o Verbo — e o Verbo é, em si, uma ponte: Ele liga o Pai à criação. Toda a história humana é o prolongamento dessa travessia: Deus que passa pelo homem para salvar o homem. Por isso, toda filosofia autêntica, toda arte verdadeira e toda ética justa são pontes — ecos do mesmo Logos que se fez carne.

O homem é construtor de pontes porque participa da obra do Verbo; ele é saudade porque traz em si a lembrança do Paraíso; ele é ser e verdade porque foi criado à imagem de Cristo.

Em Cristo, tudo se reúne: a saudade encontra o seu termo, a cisão encontra a unidade e o destino humano encontra o seu sentido.

Assim, a ontologia portuguesa e a psicologia do destino convergem na mais alta teologia: a ponte ontológica é o próprio Cristo e o homem, seu aprendiz de arquiteto, constrói no tempo o que Deus sonhou na eternidade.

Bibliografia complementar

  • Santo Atanásio. De Incarnatione Verbi Dei.

  • Joseph Ratzinger (Bento XVI). Introdução ao Cristianismo.

  • Hans Urs von Balthasar. Glória: uma Estética Teológica.

  • Leopold Szondi. Schicksalsanalyse.

  • Teixeira de Pascoaes. A Arte de Ser Português.

  • José Marinho. Teoria do Ser e da Verdade.

O Homem como construtor de pontes: de Szondi a Pascoaes e José Marinho — uma ontologia da reconciliação

1. Introdução — A vocação do homem é unir o que foi separado

Toda a filosofia que parte de um verdadeiro sentimento de transcendência reconhece no homem um ser de passagem, um pontifex, isto é, um construtor de pontes. Entre o abismo do tempo e a eternidade, entre a matéria e o espírito, entre o inconsciente e a liberdade, o homem é aquele que reconcilia os mundos cindidos pela queda.

Essa imagem — o homem-ponte — atravessa a psicologia de Leopold Szondi, a metafísica de José Marinho e a poética de Teixeira de Pascoaes. Em todos, o ser humano é chamado a transformar a cisão em comunhão, a fazer de sua vida o lugar onde o Ser, a Verdade e o Amor se reencontram.

O ponto culminante dessa tradição é cristológico: Cristo é o construtor supremo de pontes, o Pontifex Maximus, que reconcilia o homem com Deus e manifesta, na carne, a unidade perdida. A filosofia portuguesa, ao lado da análise do destino de Szondi, participa desse mesmo espírito de reconciliação, traduzindo em diferentes linguagens o mistério da Encarnação.

2. Szondi e o homem como ponte entre a hereditariedade e a liberdade

Leopold Szondi, em sua Schicksalsanalyse (Análise do Destino), vê o homem como resultado de uma tensão dinâmica entre dois polos: o hereditário e o livre. Cada indivíduo traz consigo um conjunto de disposições herdadas — pulsões, tendências, vocações latentes — que formam o seu “inconsciente familiar”. Mas é pela decisão ética (Schicksalsethik) que o homem se eleva, escolhendo conscientemente o rumo da sua vida.

“O homem é construtor de pontes entre os abismos do seu próprio ser.” — Szondi, 1944

Essa ponte é interior e espiritual: ela liga o que o homem recebeu (o passado genético e psíquico) ao que ele cria (o futuro da liberdade). A análise do destino não é, portanto, determinista, mas profundamente teleológica — orientada por uma vocação. O homem realiza-se ao transformar a herança em missão, o peso da biologia em sentido espiritual.

Aqui, Szondi se aproxima da tradição portuguesa: a liberdade é sempre reconciliação, não negação. A ponte é o símbolo da unidade reencontrada, não da fuga.

3. José Marinho e o ser como ponte entre verdade e existência

Na Teoria do Ser e da Verdade (1961), José Marinho formula o equivalente ontológico do drama que Szondi descreve no plano psicológico. O ser humano vive entre o Ser e a Verdade, mas essa relação é marcada por uma cisão — a separação do espírito em relação ao fundamento.

O filósofo português vê o pensamento como o lugar da reconciliação entre Ser e Verdade. O “ser da verdade” e a “verdade do ser” não são dois conceitos distintos, mas dois momentos de um mesmo movimento de unificação.

“O Ser é da Verdade e a Verdade é do Ser: e é no espírito humano que ambos se reencontram.” — José Marinho

Assim como em Szondi, o homem é o espaço da ponte, o mediador entre os polos. Ele está entre o visível e o invisível, entre o que é e o que deve ser, entre a finitude e o absoluto. A liberdade humana é a expressão dessa ontologia da reconciliação: não é mera escolha, mas participação no movimento do Ser que se revela.

A “visão unívoca” de Marinho — ver sem dualidade, perceber o ser e a verdade como um só — é o culminar dessa travessia interior. O homem torna-se, por ela, o lugar de manifestação do fundamento, o ponto onde o infinito se dá a conhecer no finito.

4. Teixeira de Pascoaes e a saudade como ponte entre o finito e o infinito

Em A Arte de Ser Português (1915), Teixeira de Pascoaes transforma essa ontologia em emoção criadora.
A “saudade”, para ele, é o nome português do movimento que une o homem a Deus. Ela é a nostalgia do infinito que habita o coração do finito.

“A Saudade é a alma do mundo feita carne no coração do homem português.” — Teixeira de Pascoaes

A saudade não é passividade, mas energia criadora, uma forma de conhecimento afetivo que faz o homem participar do mistério divino. Por ela, o ser humano se torna artista — e ser artista é tornar-se ponte viva entre o mundo sensível e o divino.

Ser português, em Pascoaes, é ser-ponte: viver o destino de unir o Céu e a Terra através da arte, da fé e do sacrifício. A “arte de ser português” é a espiritualização da pátria, o esforço de elevar o temporal à dignidade do eterno.

Assim, a saudade cumpre no plano poético o que Marinho chama de “verdade do ser” e Szondi de “ética do destino”: ela reconcilia o homem com a sua origem e o conduz à plenitude do seu ser.

5. A ponte e o Pontífice — Cristo como unidade das três visões

O ponto de convergência de Szondi, Pascoaes e Marinho é Cristo. Em cada um deles, a figura do homem-ponte remete, consciente ou inconscientemente, à figura do Verbo Encarnado, que é a Ponte suprema entre Deus e o homem.

Em Cristo, o que Szondi chama “hereditariedade e liberdade” se unem: Ele assume a carne herdada e a redime pela vontade perfeita do Pai. Em Cristo, o que Marinho chama “ser e verdade” coincide: Ele é o Ser mesmo que se revela como Verdade viva. Em Cristo, o que Pascoaes chama “saudade” encontra o seu termo: o desejo infinito do homem é satisfeito pela presença de Deus feito homem.

“E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós.” (Jo 1,14)
Eis a ponte que une eternidade e tempo, espírito e corpo, céu e terra.

O homem é, portanto, construtor de pontes porque foi criado à imagem do Pontífice divino. Toda vocação humana — científica, artística, filosófica ou espiritual — é uma variação dessa obra de reconciliação: reunir o que foi separado, restaurar o sentido, devolver o mundo à sua unidade perdida.

6. Conclusão — A ontologia da reconciliação

A filosofia portuguesa, ao lado da psicologia do destino de Szondi, compõe uma verdadeira Ontologia da Reconciliação. Nela, o homem não é mero espectador do mundo, mas participante da criação. Ele é o elo entre o invisível e o visível, o lugar onde Deus se reflete no tempo.

Em Pascoaes, a ponte é a saudade. Em Marinho, a ponte é o ser da verdade. Em Szondi, a ponte é a decisão ética que transforma a herança em vocação. Em todos, o homem é chamado a construir, dentro de si e ao redor de si, a unidade que o próprio Cristo realizou no plano divino.

A verdadeira arte de ser — portuguesa, cristã, ou simplesmente humana — consiste em tornar-se ponte:
viver de tal modo que cada ato, cada pensamento e cada obra conduzam o mundo de volta à sua origem.

Bibliografia essencial

  • Leopold Szondi. Schicksalsanalyse. Basel: Benno Schwabe, 1944.

  • Leopold Szondi. Introduction to Fate Analysis. New York: Grune & Stratton, 1959.

  • Teixeira de Pascoaes. A Arte de Ser Português. Lisboa: Renascença Portuguesa, 1915.

  • José Marinho. Teoria do Ser e da Verdade. Lisboa: Guimarães Editores, 1961.

  • Leonardo Coimbra. A Razão Animada. Porto: Renascença Portuguesa, 1912.

  • António Braz Teixeira. A Filosofia Portuguesa Contemporânea. Lisboa: INCM, 1983.

Entre o ser e a saudade: a ontologia portuguesa de Teixeira de Pascoaes e José Marinho

 1. Introdução – A filosofia como pátria do Espírito

Toda filosofia nacional verdadeiramente viva nasce do esforço de o homem reencontrar a sua unidade perdida. Portugal, ao longo da sua história espiritual, expressou essa busca através de dois movimentos complementares: o saudosismo de Teixeira de Pascoaes e a metafísica do ser de José Marinho. Em Pascoaes, “ser português” é uma arte espiritual, uma forma de saudade criadora que transforma a identidade nacional em vocação cósmica. Em Marinho, o “ser” é revelação da “verdade”, e o homem encontra o seu destino ao participar do movimento em que o Ser se manifesta e se reconcilia.

Ambos, cada qual à sua maneira, propõem uma ontologia viva, fundada na interioridade e na transcendência — uma filosofia que não é mera especulação, mas “missão do espírito”, expressão de uma alma que busca o Todo em si mesma.

2. Teixeira de Pascoaes: a arte como Transfiguração do ser nacional

Em A Arte de Ser Português (1915), Teixeira de Pascoaes define o ser português como um ato artístico e espiritual. Ser português não é um fato biológico nem um acidente histórico; é uma obra de arte interior, onde o homem se eleva acima da matéria e se faz expressão de Deus através da saudade.

“A saudade é a alma do mundo feita carne no coração do homem português.”

Para Pascoaes, a saudade não é mera nostalgia, mas uma força ontogênica, um princípio de unidade entre o finito e o infinito. Ela é o sentimento pelo qual o ser humano participa do eterno sem deixar o tempo.
Desse modo, o ser português é um modo particular de viver a tensão metafísica entre o ser e o nada — não pela razão, mas pela emoção espiritual.

O ideal pascoalino é o de transfigurar o real pela imaginação e pela fé, como Cristo transfigurou a matéria pela Encarnação. A “arte de ser” é, portanto, uma forma de ontologia poética, onde a criação artística e a criação divina coincidem em um mesmo movimento de amor e revelação.

3. José Marinho: o ser como verdade interior

Na Teoria do Ser e da Verdade (1961), José Marinho retoma o drama ontológico em linguagem filosófica rigorosa. O seu ponto de partida é a cisão: a ruptura entre o ser e a verdade, entre o homem e o fundamento. O filósofo português não busca eliminar a cisão pela lógica, mas transfigurá-la em visão unívoca, onde o ser e a verdade voltam a coincidir.

“O Ser é da Verdade, e a Verdade é do Ser: o pensamento é o lugar onde ambos se reconhecem.”

O núcleo de sua metafísica está no conceito de “insubstancial substante” — o ser que subsiste sem forma material, o espírito que é fundamento de si mesmo e de todas as coisas. Assim como em Pascoaes a saudade é o elo entre o homem e Deus, em Marinho o ser é o lugar da reconciliação, onde o espírito reencontra sua origem.

O movimento do ser é o mesmo da saudade: um desejo de totalidade, um esforço do espírito para recompor a unidade perdida. A verdade não é adequação racional, mas participação ontológica. Saber é ser — e ser é unir-se à verdade.

4. A ponte ontológica: da saudade ao ser

A filosofia de Marinho é o prolongamento metafísico da poética de Pascoaes. O que em Pascoaes aparece como emoção criadora, em Marinho torna-se estrutura ontológica. Ambos descrevem o mesmo itinerário do espírito português:

Etapa Teixeira de Pascoaes José Marinho
Origem O homem nasce da saudade — desejo do Todo. O ser surge da cisão — separação do fundamento.
Caminho A arte de ser português é esforço de retorno a Deus pela criação. A filosofia é esforço de unificação entre ser e verdade.
Meta A alma portuguesa cumpre sua missão quando faz do efémero um reflexo do eterno. O espírito atinge a visão unívoca quando o ser se revela como verdade.

Portanto, a saudade pascoalina é o momento sensível do mesmo movimento espiritual que, em Marinho, se torna momento ontológico. Ambos entendem o homem como ponte entre dois mundos: o mundo do tempo e o da eternidade, o da carne e o do espírito. A arte e a filosofia são modos diferentes de expressar a mesma vocação: reconciliar o homem com o Ser.

5. A Missão de Portugal: Ser-da-Verdade

O que Pascoaes chama “arte de ser português” é, em termos marinhianos, o exercício do ser-da-verdade.
Portugal, na visão pascoalina, é uma nação cuja vocação não é dominar, mas revelar — tornar o invisível visível, encarnar o espiritual no mundo. Marinho eleva esse destino à categoria ontológica: o homem português, quando vive segundo o espírito, torna-se testemunho da verdade, “insubstancial substante” em ação, expressão de um fundamento divino que se dá através da história.

“Ser português é, no fundo, uma forma de ser-da-verdade: viver da saudade como abertura ao Ser.”

Assim, o mito nacional e a metafísica se encontram: o “mito de Ourique” e o “ser-da-verdade” são dois modos de uma mesma luz — a luz que conduz do particular ao universal, do histórico ao eterno.

6. Conclusão – A filosofia como arte e a arte como filosofia

Entre Teixeira de Pascoaes e José Marinho há uma continuidade profunda: ambos transformam a filosofia portuguesa num ato espiritual de reconciliação. A Arte de Ser Português é a Teoria do Ser expressa em linguagem poética; a Teoria do Ser e da Verdade é a Arte de Ser Português expressa em linguagem metafísica.

Em Pascoaes, o homem realiza a unidade através da arte e da emoção. Em Marinho, ele a realiza pela contemplação e pela verdade. Mas ambos convergem na certeza de que “ser” é participar de um Todo divino, que se revela tanto na beleza da criação quanto na busca da verdade.

Deste modo, o pensamento português revela-se como uma filosofia de encarnação: o ser é amor em ato, e a saudade é a sua forma sensível. A vocação de Portugal — e de cada homem que se reconhece nessa tradição — é a de viver a verdade do ser e o ser da verdade, pela arte, pela fé e pela contemplação.

Bibliografia essencial

  • Teixeira de Pascoaes. A Arte de Ser Português. Lisboa: Renascença Portuguesa, 1915.

  • José Marinho. Teoria do Ser e da Verdade. Lisboa: Guimarães Editores, 1961.

  • Coimbra, Leonardo. A Razão Animada. Porto: Renascença Portuguesa, 1912.

  • Paiva, António Braz Teixeira. A Filosofia Portuguesa Contemporânea. Lisboa: INCM, 1983.

  • Cruz, António. A Ontologia Portuguesa: de Pascoaes a Marinho. Porto: Faculdade de Letras, 1998.