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segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Entre o ser e a saudade: a ontologia portuguesa de Teixeira de Pascoaes e José Marinho

 1. Introdução – A filosofia como pátria do Espírito

Toda filosofia nacional verdadeiramente viva nasce do esforço de o homem reencontrar a sua unidade perdida. Portugal, ao longo da sua história espiritual, expressou essa busca através de dois movimentos complementares: o saudosismo de Teixeira de Pascoaes e a metafísica do ser de José Marinho. Em Pascoaes, “ser português” é uma arte espiritual, uma forma de saudade criadora que transforma a identidade nacional em vocação cósmica. Em Marinho, o “ser” é revelação da “verdade”, e o homem encontra o seu destino ao participar do movimento em que o Ser se manifesta e se reconcilia.

Ambos, cada qual à sua maneira, propõem uma ontologia viva, fundada na interioridade e na transcendência — uma filosofia que não é mera especulação, mas “missão do espírito”, expressão de uma alma que busca o Todo em si mesma.

2. Teixeira de Pascoaes: a arte como Transfiguração do ser nacional

Em A Arte de Ser Português (1915), Teixeira de Pascoaes define o ser português como um ato artístico e espiritual. Ser português não é um fato biológico nem um acidente histórico; é uma obra de arte interior, onde o homem se eleva acima da matéria e se faz expressão de Deus através da saudade.

“A saudade é a alma do mundo feita carne no coração do homem português.”

Para Pascoaes, a saudade não é mera nostalgia, mas uma força ontogênica, um princípio de unidade entre o finito e o infinito. Ela é o sentimento pelo qual o ser humano participa do eterno sem deixar o tempo.
Desse modo, o ser português é um modo particular de viver a tensão metafísica entre o ser e o nada — não pela razão, mas pela emoção espiritual.

O ideal pascoalino é o de transfigurar o real pela imaginação e pela fé, como Cristo transfigurou a matéria pela Encarnação. A “arte de ser” é, portanto, uma forma de ontologia poética, onde a criação artística e a criação divina coincidem em um mesmo movimento de amor e revelação.

3. José Marinho: o ser como verdade interior

Na Teoria do Ser e da Verdade (1961), José Marinho retoma o drama ontológico em linguagem filosófica rigorosa. O seu ponto de partida é a cisão: a ruptura entre o ser e a verdade, entre o homem e o fundamento. O filósofo português não busca eliminar a cisão pela lógica, mas transfigurá-la em visão unívoca, onde o ser e a verdade voltam a coincidir.

“O Ser é da Verdade, e a Verdade é do Ser: o pensamento é o lugar onde ambos se reconhecem.”

O núcleo de sua metafísica está no conceito de “insubstancial substante” — o ser que subsiste sem forma material, o espírito que é fundamento de si mesmo e de todas as coisas. Assim como em Pascoaes a saudade é o elo entre o homem e Deus, em Marinho o ser é o lugar da reconciliação, onde o espírito reencontra sua origem.

O movimento do ser é o mesmo da saudade: um desejo de totalidade, um esforço do espírito para recompor a unidade perdida. A verdade não é adequação racional, mas participação ontológica. Saber é ser — e ser é unir-se à verdade.

4. A ponte ontológica: da saudade ao ser

A filosofia de Marinho é o prolongamento metafísico da poética de Pascoaes. O que em Pascoaes aparece como emoção criadora, em Marinho torna-se estrutura ontológica. Ambos descrevem o mesmo itinerário do espírito português:

Etapa Teixeira de Pascoaes José Marinho
Origem O homem nasce da saudade — desejo do Todo. O ser surge da cisão — separação do fundamento.
Caminho A arte de ser português é esforço de retorno a Deus pela criação. A filosofia é esforço de unificação entre ser e verdade.
Meta A alma portuguesa cumpre sua missão quando faz do efémero um reflexo do eterno. O espírito atinge a visão unívoca quando o ser se revela como verdade.

Portanto, a saudade pascoalina é o momento sensível do mesmo movimento espiritual que, em Marinho, se torna momento ontológico. Ambos entendem o homem como ponte entre dois mundos: o mundo do tempo e o da eternidade, o da carne e o do espírito. A arte e a filosofia são modos diferentes de expressar a mesma vocação: reconciliar o homem com o Ser.

5. A Missão de Portugal: Ser-da-Verdade

O que Pascoaes chama “arte de ser português” é, em termos marinhianos, o exercício do ser-da-verdade.
Portugal, na visão pascoalina, é uma nação cuja vocação não é dominar, mas revelar — tornar o invisível visível, encarnar o espiritual no mundo. Marinho eleva esse destino à categoria ontológica: o homem português, quando vive segundo o espírito, torna-se testemunho da verdade, “insubstancial substante” em ação, expressão de um fundamento divino que se dá através da história.

“Ser português é, no fundo, uma forma de ser-da-verdade: viver da saudade como abertura ao Ser.”

Assim, o mito nacional e a metafísica se encontram: o “mito de Ourique” e o “ser-da-verdade” são dois modos de uma mesma luz — a luz que conduz do particular ao universal, do histórico ao eterno.

6. Conclusão – A filosofia como arte e a arte como filosofia

Entre Teixeira de Pascoaes e José Marinho há uma continuidade profunda: ambos transformam a filosofia portuguesa num ato espiritual de reconciliação. A Arte de Ser Português é a Teoria do Ser expressa em linguagem poética; a Teoria do Ser e da Verdade é a Arte de Ser Português expressa em linguagem metafísica.

Em Pascoaes, o homem realiza a unidade através da arte e da emoção. Em Marinho, ele a realiza pela contemplação e pela verdade. Mas ambos convergem na certeza de que “ser” é participar de um Todo divino, que se revela tanto na beleza da criação quanto na busca da verdade.

Deste modo, o pensamento português revela-se como uma filosofia de encarnação: o ser é amor em ato, e a saudade é a sua forma sensível. A vocação de Portugal — e de cada homem que se reconhece nessa tradição — é a de viver a verdade do ser e o ser da verdade, pela arte, pela fé e pela contemplação.

Bibliografia essencial

  • Teixeira de Pascoaes. A Arte de Ser Português. Lisboa: Renascença Portuguesa, 1915.

  • José Marinho. Teoria do Ser e da Verdade. Lisboa: Guimarães Editores, 1961.

  • Coimbra, Leonardo. A Razão Animada. Porto: Renascença Portuguesa, 1912.

  • Paiva, António Braz Teixeira. A Filosofia Portuguesa Contemporânea. Lisboa: INCM, 1983.

  • Cruz, António. A Ontologia Portuguesa: de Pascoaes a Marinho. Porto: Faculdade de Letras, 1998.

Lisboa, a Terceira Roma: o império do Espírito Santo e o mito de Ourique

 1. Introdução: o arquétipo das sete colinas

Desde a Antiguidade, as cidades edificadas sobre sete colinas foram vistas como sinais de eleição divina. Roma, fundada sobre sete colinas, tornou-se o centro do Império e, depois, o coração da Cristandade. Jerusalém, na tradição bíblica, também é uma cidade de colinas — símbolo da aliança entre Deus e o seu povo.

Lisboa, erguida igualmente sobre sete colinas, carrega em si a mesma assinatura simbólica. Essa coincidência topográfica é mais do que uma curiosidade: é um indício providencial. As sete colinas de Lisboa apontam para a vocação universal do povo português, chamado a unir a cruz e o mar, a fé e a expansão.

2. Ourique e a renovação do “In hoc signo vinces”

O milagre de Ourique (1139) ocupa, na história de Portugal, o mesmo lugar que a visão de Constantino (312) ocupa na história de Roma. Antes da batalha contra os mouros, Cristo teria aparecido a D. Afonso Henriques, prometendo-lhe vitória sob o sinal da cruz. Na lenda constantiniana, Cristo aparece a Constantino e lhe revela a frase “In hoc signo vinces” — com este sinal vencerás.

A correspondência entre ambos os episódios é nítida: em Ourique, Portugal renova o pacto de Roma com o céu. É como se a graça da conversão de Constantino se reencarnasse no primeiro rei português, que funda um reino em nome de Cristo.

Ourique é, portanto, a translatio imperii — a transferência simbólica do império cristão para o Ocidente ibérico. A partir desse momento, o destino português adquire uma dimensão escatológica: Portugal existe para servir a Cristo e propagar a fé aos confins da Terra.

3. Da queda de Bizâncio ao nascimento do Império do Espírito Santo

Quando Bizâncio caiu em 1453, o Oriente cristão foi vencido, e a “segunda Roma” desapareceu. O cetro espiritual da Cristandade ficou órfão. Nesse exato período, Portugal iniciava as Grandes Navegações, enviando missionários e navegadores para evangelizar o mundo. O centro da Cristandade desloca-se, então, do Mediterrâneo para o Atlântico, e Lisboa se torna o novo ponto axial da história cristã. O império português não nasce da conquista, mas da vocação missionária: levar o Evangelho onde Roma e Bizâncio não puderam chegar.

Como ensinava o Padre Antônio Vieira, “Deus escolheu Portugal para levar o seu nome às nações que não o conheciam”. Lisboa torna-se, assim, a Roma do mar e do Espírito Santo, uma cidade-ponte entre continentes e culturas, continuadora do império de Cristo.

4. A Roma atlântica e o universalismo católico

Roma foi a Roma latina, centro da autoridade eclesial. Bizâncio foi a Roma oriental, sede da sabedoria teológica. Lisboa é a Roma atlântica, sede da missão. Do seu porto partiram caravelas e cruzes, santos e mártires, monges e mercadores, todos movidos pela mesma convicção: servir a Cristo em terras distantes. A fé não era apenas um estandarte, mas a causa final da empresa ultramarina. O império português se definia menos pela conquista de territórios do que pela difusão do Evangelho. Lisboa não conquistou povos; ela batizou continentes.

Nesse sentido, Lisboa realiza o ideal católico em seu sentido mais puro — katholikós, “universal”. É a cidade de onde a fé parte para o mundo e, por isso mesmo, a terceira encarnação da Roma eterna: Roma da Lei (Roma antiga), Roma da Fé (Bizâncio) e Roma do Espírito Santo (Lisboa).

5. A mística das colinas e o destino espiritual

As sete colinas lisboetas — São Jorge, São Vicente, São Roque, Santo André, Santa Catarina, Chagas e Graça — formam uma geografia teológica. Nelas se vê a imagem dos sete dons do Espírito Santo: sabedoria, entendimento, conselho, fortaleza, ciência, piedade e temor de Deus.

Lisboa não é apenas o centro político de um reino; é a cidade-ícone de uma missão. Quando os navegadores partiam do Tejo, partiam do coração da Cristandade viva — a que se move, se arrisca e se oferece. Em cada partida, repetia-se o eco de Ourique: com este sinal vencerás.

6. Conclusão: Lisboa, Roma do Espírito Santo

Roma estabeleceu a Igreja; Bizâncio conservou a doutrina; Lisboa espalhou o Espírito Santo. Na sucessão providencial das cidades santas, Lisboa é a Terceira Roma — não a do poder, mas a da missão; não a da espada, mas a da cruz; não a do império terreno, mas a do império do Espírito Santo. Como escreveu Agostinho da Silva, “Portugal não conquistou o mundo: ele o serviu, para que Cristo reinasse nele.”

O mito de Ourique, portanto, não é apenas a origem de uma nação, mas a epifania de uma vocação eterna: a de que, sob o mesmo sinal da cruz, Portugal — e com ele Lisboa — continuaria o Império de Cristo até o fim dos tempos.

Bibliografia sugerida

  • VIEIRA, Padre António. Sermões do Quinto Império.

  • QUADROS, António. A Ideia de Portugal na Literatura Portuguesa.

  • SILVA, Agostinho da. O Quinto Império.

  • MARINHO, José. A Teoria do Ser e a Ideia de Portugal.

  • PESSOA, Fernando. Mensagem.

  • LEÃO XIII. Rerum Novarum (sobre o trabalho como santificação).

  • HERNÂNI CIDADE. A Alma e a Tradição Portuguesa.

  • RIBEIRO, Orlando. Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico.

domingo, 2 de novembro de 2025

A civilização americana e o cansaço da imanência: quando o mito da fronteira perde o sentido

1. A fé no homem e o eclipse do sagrado

“A América é, antes de tudo, um experimento do homem consigo mesmo.”
Josiah Royce, The Philosophy of Loyalty

A civilização americana nasceu da crença de que o homem pode refazer o mundo à sua própria imagem. O “novo mundo” foi concebido não como uma extensão da cristandade, mas como uma terra de promissão humana, onde a vontade substitui a graça e o trabalho substitui a oração.

Diferentemente de Portugal e do Brasil — civilizações cujo nascimento está ligado ao mito de Ourique, em que o poder temporal recebe sua legitimidade de um chamado divino —, a América ergueu-se sobre a ideia de autonomia absoluta. O homem americano é, desde as origens, o novo Adão, que renuncia à herança do pecado e confia no esforço próprio para instaurar o paraíso na Terra.

Essa imanência, que no início pareceu virtude, converteu-se em destino: uma cultura sem transcendência, movida pela crença no progresso infinito e no poder ilimitado da técnica. O que em Portugal foi milagre, na América tornou-se cálculo.

2. O mito da fronteira e a teologia do sucesso

“A fronteira é a linha móvel que separa a civilização do deserto.”
Frederick Jackson Turner, The Frontier in American History

Frederick Jackson Turner percebeu que a fronteira — a expansão para o Oeste — não foi apenas um fato geográfico, mas uma experiência espiritual secularizada. O homem da fronteira, isolado de tradições e autoridades, tornou-se o arquétipo da autossuficiência.

A fronteira substituiu a cruz como símbolo da vocação. Cada nova conquista territorial equivalia a uma confirmação da “eleição” americana. Daí nasce o destino manifesto: a crença de que a nação americana é o novo Israel, encarregado de levar a luz da liberdade — não a luz da fé — ao mundo.

Essa crença gerou uma teologia do sucesso: o triunfo material é sinal de retidão moral, e a derrota é castigo pela ineficiência. O sagrado foi traduzido em produtividade, e a salvação em prosperidade. Assim, o protestantismo inicial da América transmutou-se, aos poucos, em um capitalismo redentor, cuja liturgia é o desempenho e cujo dogma é a expansão.

3. O colapso da imanência: o esgotamento espiritual

“O cansaço é o esgotamento da alma na ausência de um fim.”
Byung-Chul Han, A Sociedade do Cansaço

Toda civilização que absolutiza o homem esgota-se no vazio. Quando o horizonte material se esgota, o espírito começa a colapsar. A América vive esse processo: tendo conquistado todas as fronteiras externas — geográficas, tecnológicas, militares —, enfrenta agora a fronteira interior, onde o homem deve confrontar o próprio sentido da existência.

A sociedade americana é a realização extrema daquilo que Byung-Chul Han chama de sociedade do desempenho: um mundo em que o homem se explora a si mesmo em nome da liberdade, transformando-se em escravo de sua própria positividade. O resultado é o cansaço espiritual — não o da fadiga física, mas o da alma saturada de metas e carente de propósito.

Byung-Chul Han identifica esse cansaço como “a exaustão do possível”: tudo é permitido, tudo é acessível, mas nada é significativo. A fronteira perdeu sua função simbólica; a expansão se tornou repetição. Nesse contexto, Viktor Frankl reaparece como profeta: “O homem suporta tudo, menos a falta de sentido.”

O sofrimento deixou de redimir; passou a ser erro de desempenho. E, sem transcendência, o erro torna-se desespero.

4. O neopaganismo da performance

“Quando o sagrado é abolido, o espetáculo toma o seu lugar.”
Christopher Lasch, A Cultura do Narcisismo

A sociedade americana não é mais cristã; é neopagã. Os antigos deuses do Olimpo foram substituídos por atletas, empresários, artistas e influenciadores digitais. O palco, o estádio e o escritório tornaram-se templos onde se celebra o culto do sucesso.

Essa metamorfose é visível: o corpo é deificado, a imagem é divinizada, e a moral é reduzida à visibilidade. O herói moderno já não vence o mal, mas o fracasso. O ideal de santidade foi trocado pelo ideal de performance.

Contudo, a ausência do sagrado gera o paradoxo da saturação: quanto mais se brilha, mais se obscurece o sentido. O homem que busca ser deus termina reduzido a produto. A cultura americana é, assim, a autoidolatria tecnificada do Ocidente. E o cansaço que a consome é o castigo invisível dessa idolatria.

5. O mito de Ourique e a possibilidade de sentido

“Cristo é Rei de Portugal.”
Tradição do Milagre de Ourique, século XII

Em contraste com essa imanência fatigada, o mito de Ourique permanece como um modelo transcendente de civilização. Quando D. Afonso Henriques viu o Cristo e recebeu o sinal de Sua eleição, Portugal nasceu não de uma vontade de poder, mas de uma vocação espiritual. O reino português foi fundado sob uma promessa, não sob um contrato.

Nesse mito, a vitória humana é símbolo de uma eleição divina; o progresso, caminho de santificação; e o poder, serviço ao Todo de Deus. O Brasil herdou essa mesma estrutura simbólica — ainda que ofuscada pelas crises do tempo — e conserva em sua alma uma reserva espiritual capaz de oferecer ao mundo uma alternativa: o progresso com transcendência, a liberdade enraizada na graça.

Portugal e o Brasil têm o que falta à América: um mito de sentido. E é esse mito — o de Ourique — que pode inspirar um novo tipo de civilização, reconciliando o trabalho com o espírito, a técnica com a verdade e o homem com Deus.

6. Conclusão: o fim da fronteira e o retorno ao sagrado

“Quando o homem deixa de adorar a Deus, acaba por adorar qualquer coisa.”
G. K. Chesterton, Orthodoxy

O mito da fronteira, outrora força criadora da América, tornou-se um ciclo de repetição sem alma. O homem moderno já não conquista terras, mas curtidas; já não busca a eternidade, mas relevância. A fronteira física tornou-se digital, e o deserto espiritual ampliou-se ao infinito.

O cansaço que se espalha pelo mundo ocidental é o sintoma final da imanência — o preço da recusa do sagrado. Nenhuma técnica poderá curar a ausência de transcendência, porque a técnica opera no plano do útil, e o sentido pertence ao plano do verdadeiro.

Enquanto o Ocidente tecnificado busca um novo mito, o mundo luso-brasileiro conserva, em sua origem, uma chave esquecida: a certeza de que a história humana só encontra repouso quando se curva diante do mistério.

O futuro da civilização dependerá de quem for capaz de reencontrar o centro — o centro que não passa, onde o homem se reencontra não como criador absoluto, mas como colaborador da Criação.

Bibliografia essencial

  • Frederick Jackson TurnerThe Frontier in American History

  • Josiah RoyceThe Philosophy of Loyalty

  • Christopher DawsonReligion and the Rise of Western Culture

  • Byung-Chul HanA Sociedade do Cansaço

  • Viktor E. FranklEm Busca de Sentido

  • Richard WeaverIdeas Have Consequences

  • Alasdair MacIntyreAfter Virtue

  • Olavo de CarvalhoO Jardim das Aflições

  • José MarinhoA Filosofia Portuguesa

  • António QuadrosA Ideia de Portugal na História e na Cultura

  • G. K. ChestertonOrthodoxy

  • Romano GuardiniO Fim da Era Moderna

  • Josef PieperO Ócio e a Vida Intelectual

O Homem de Seis Milhões de Dólares e o mito da fronteira: da biônica ao capitalismo de alto desempenho

 

“Quando o extraordinário se torna ordinário, a fronteira deixa de ser expansão do espírito e torna-se apenas expansão do consumo.”

Nos anos 1970, a televisão americana produziu uma de suas metáforas mais poderosas: O Homem de Seis Milhões de Dólares (The Six Million Dollar Man). O astronauta Steve Austin, reconstruído com tecnologia biônica após um acidente, representava a fusão entre o corpo humano e o poder científico. Mas por trás dessa narrativa de ficção científica, esconde-se algo mais profundo: a atualização de um imaginário histórico americano — o mito da fronteira.

A fronteira como promessa e o corpo como território

O mito da fronteira, formulado por Frederick Jackson Turner em 1893, dizia que a identidade americana se formava na superação de seus limites — geográficos, técnicos e morais.
A cada nova descoberta, a civilização americana parecia renascer. A série dos anos 1970 transfere essa lógica para o corpo: o corpo humano torna-se a nova fronteira

Se no século XIX a fronteira era o Oeste selvagem, no século XX ela passa a ser a carne que se deixa colonizar pela máquina. O homem biônico é, portanto, o novo pioneiro — o frontiersman da era tecnológica. Ele avança onde o homem comum não pode, e por isso é herói. Mas quando a cultura de massa absorve esse espanto, quando o extraordinário é repetido, transformado em brinquedo, propaganda e clichê televisivo, o espanto perde sua força criadora. O extraordinário se torna ordinário.

Do espanto ao hábito: a inflação do imaginário

Quando o espanto é rebaixado à rotina, o imaginário da fronteira se corrompe. O que antes era superação espiritual e conquista do desconhecido, torna-se apenas inflação simbólica: tudo precisa ser mais caro, mais rápido, mais novo, mas nada é realmente novo.

É por isso que, na modernidade, o “homem de seis milhões de dólares” deu lugar ao jogador mediano de seis milhões de dólares. A fronteira tecnológica tornou-se uma mercadoria — e o corpo, um investimento, a ponto de gerar um culto ao corpo no sentido materialista do terimo.

Essa inflação do imaginário traduz-se também na vida cotidiana: o consumo não é mais movido pelo amor ao belo ou ao verdadeiro, mas por uma concupiscência de novidade, uma gula de Chronos, o tempo devorador a ponto de querer ser o primeiro a cada segundo. A cada nova fronteira superada — seja no esporte, na tecnologia ou na biotecnologia — a experiência do espanto é imediatamente absorvida pelo mercado, que se torna cada mais impessoal, tais como são as coisas do Estado.

Chronos e Kairos: o tempo perdido da fronteira

Na visão clássica, havia dois tempos:

  • Chronos, o tempo que devora, o tempo da sequência, da produtividade e do cálculo.

  • Kairos, o tempo oportuno, qualitativo, em que o homem se encontra com o sentido do seu agir.

A modernidade, ao negar Kairos, transformou toda descoberta em produto. O sentido da fronteira — que deveria ser crescimento interior, alargamento da alma — foi reduzido a expansão quantitativa.

 Assim, o homem moderno conquista o espaço, mas perde o eixo. Avança nas galáxias, mas não no espírito. Refaz o corpo, mas esquece de reconstruir o coração.

O novo homem biônico e a negação do espanto

Hoje, os atletas e celebridades são os herdeiros do mito da fronteira: superam recordes, ultrapassam limites humanos, medem seu valor em milhões. Mas diferentemente do herói de Turner, que via na fronteira uma prova de caráter, o homem moderno vê nela apenas um espelho do próprio desejo inflacionado.

O corpo biônico contemporâneo — repleto de sensores, algoritmos e métricas de desempenho — é o retrato de uma civilização que perdeu a medida entre meio e fim. O homem que queria dominar a natureza acabou por transformar a si mesmo em objeto de consumo.

Epílogo: o retorno do espanto

Talvez a verdadeira fronteira de nosso tempo não seja mais tecnológica, mas espiritual. A fronteira que resta é aquela que separa o Chronos do Kairos — o tempo que devora do tempo que salva. 

Enquanto não recuperarmos o espanto diante do extraordinário, permaneceremos reconstruindo corpos, mas não reconstruindo almas.E assim, o homem de seis milhões de dólares continuará sendo o homem de uma cultura falida — rica em meios, pobre em fins.

Nota final: Turner, Royce e a fronteira da lealdade

A leitura de The Frontier in American History, de Frederick Jackson Turner, revela que o avanço da fronteira não era apenas um processo econômico ou geográfico, mas um ato moral e espiritual. Cada movimento rumo ao desconhecido implicava uma recriação do caráter nacional — uma metanoia coletiva.
Mas essa força regeneradora só podia existir enquanto a fronteira guardava o mistério do Kairos, o tempo do chamado interior.

Quando Turner escreve, o homem ainda pressente que a fronteira é lugar de provação e crescimento.
Quando O Homem de Seis Milhões de Dólares é filmado, a fronteira já se tornou laboratório e espetáculo.

Nesse ponto, a reflexão de Josiah Royce, em A Filosofia da Lealdade, torna-se decisiva. Para Royce, a lealdade autêntica é aquela que se dirige a uma causa criadora e comum, uma fidelidade que transcende o indivíduo e o liga ao Todo de Deus.
Sem essa lealdade superior, o progresso degenera em idolatria de si mesmo; a fronteira se transforma em deserto, e o homem — biônico ou não — em prisioneiro da própria técnica.

A fronteira, para voltar a ser promessa, precisa reencontrar a lealdade criadora.
E o homem, para ser novamente “reconstruído”, precisa reconhecer que nenhuma tecnologia o salvará enquanto não for movida pela caridade do espírito.

Epígrafe final

“Não é a força, nem a rapidez, nem a destreza que tornam o homem perfeito, mas a direção de sua vontade. E esta só se aperfeiçoa quando é leal ao Bem que a transcende.”
Leão XIII, paráfrase da Rerum Novarum combinada com o espírito de Josiah Royce

Bibliografia Comentada

Turner, Frederick Jackson. The Frontier in American History. New York: Henry Holt & Company, 1920.

Obra fundadora da tese do “mito da fronteira”. Turner defende que a expansão para o Oeste moldou o caráter americano — individualista, pragmático e inovador —, mas também espiritual, em sua crença no autodomínio e na renovação constante.

Royce, Josiah. The Philosophy of Loyalty. New York: Macmillan, 1908.

Royce propõe a lealdade como princípio moral supremo, capaz de unir o indivíduo a uma causa maior do que si mesmo. Sua noção de “lealdade criadora” inspira a crítica à modernidade técnica que perdeu o sentido do dever transcendente.

Leão XIII. Rerum Novarum (Encíclica, 1891).

O Papa define o trabalho como participação na criação divina, estabelecendo uma ponte entre justiça social e espiritualidade. Sua defesa da dignidade humana diante da mecanização do trabalho antecipa o debate sobre a desumanização tecnológica.

Ellul, Jacques. The Technological Society. New York: Knopf, 1964.

Um dos grandes diagnósticos do século XX sobre o poder autônomo da técnica. Ellul argumenta que a eficiência tornou-se fim em si mesma, substituindo os valores espirituais por uma lógica instrumental — tema essencial ao presente ensaio.

McLuhan, Marshall. Understanding Media: The Extensions of Man. New York: McGraw-Hill, 1964.

O homem biônico é o símbolo por excelência do conceito mcluhaniano: “o meio é a mensagem”. A fusão do corpo com a máquina representa a extensão extrema da condição humana pela tecnologia.

Guardini, Romano. Das Ende der Neuzeit (O Fim da Modernidade). Würzburg: Werkbund-Verlag, 1950.

Guardini vê a técnica moderna como perda do centro espiritual do homem. Seu pensamento reforça a ideia de que a fronteira tecnológica só pode ser redimida pelo reencontro com o Kairos, o tempo do espírito.

Pieper, Josef. Leisure: The Basis of Culture. New York: Pantheon Books, 1952.

Pieper distingue o tempo produtivo (Chronos) do tempo contemplativo (Kairos), defendendo o ócio como espaço de abertura ao transcendente. Sua filosofia ilumina a contraposição entre o tempo devorador da modernidade e o tempo da graça.

Sloan, Robin (org.). The Six Million Dollar Man: The Complete Series. Universal Television, 1973–1978.

A série televisiva, marco da cultura pop, é aqui reinterpretada como espelho de uma mentalidade que vê o corpo humano como território de experimentação técnica e símbolo da vitória da ciência sobre o mistério.

Do homem de seis milhões de dólares ao jogador mediano da NBA: como o mito do corpo perfeito foi inlfacionado em termos econômicos

Nos anos 1970, quando a televisão ainda era o grande laboratório do imaginário popular, surgiu uma série que marcou época: O Homem de Seis Milhões de Dólares (The Six Million Dollar Man). Protagonizada por Lee Majors, a trama contava a história de Steve Austin, um astronauta gravemente ferido em um acidente que é “reconstruído” com partes biônicas. “Podemos reconstruí-lo. Temos a tecnologia”, dizia a icônica introdução. O custo? Seis milhões de dólares — uma quantia quase inimaginável para a época.

O valor de um corpo em 1973

Quando a série estreou em 1973, seis milhões de dólares representavam algo próximo de quarenta milhões em valores atuais (2025), corrigidos pela inflação americana. Era um número que simbolizava não apenas o alto custo da tecnologia, mas também o sonho do progresso científico que dominava o imaginário pós-Apollo 11 e o auge da Guerra Fria. O homem biônico era o símbolo do poder tecnológico do Ocidente, uma metáfora da capacidade humana de superar suas limitações por meio da ciência.

O homem biônico e o homem atlético

Cinquenta anos depois, o “homem de seis milhões de dólares” não é mais um experimento secreto do governo americano — ele veste tênis da Nike, assina contratos com a Adidas e joga basquete profissional. Na NBA, o salário médio de um jogador gira em torno de US$ 6 a 10 milhões por temporada, e as grandes estrelas, como Stephen Curry, LeBron James e Giannis Antetokounmpo, ultrapassam facilmente a marca dos US$ 45 milhões anuais.

O que antes era o preço de uma reconstrução biônica hoje é o preço de um atleta regular, cuja “biônica” é produzida não em laboratórios secretos, mas em academias, centros de performance e programas de nutrição e análise de dados de última geração.

Do sonho tecnológico ao capitalismo de desempenho

O corpo biônico da década de 1970 simbolizava a esperança na ciência. Já o corpo atlético do século XXI é a expressão de um capitalismo do desempenho.

Cada músculo é treinado, mensurado e transformado em ativo. Cada ponto, rebote ou assistência gera valor de mercado. O atleta é uma máquina biotecnológica e financeira, cuja eficiência é quantificada por métricas, contratos e patrocínios.

Assim, o sonho da ficção se realizou — não em bases militares, mas nas quadras, nas arenas e nos centros de mídia global. O homem biônico tornou-se real, mas à custa de um sistema que transforma o corpo em investimento e a vitalidade em produto.

A ironia da cifra

Há uma ironia histórica aqui: o número que outrora representava o auge do progresso humano — seis milhões de dólares — hoje é apenas o salário de um jogador mediano.

O símbolo do extraordinário tornou-se comum. Isso diz muito sobre a inflação dos sonhos humanos: quanto mais a tecnologia e a economia crescem, mais caro se torna o próprio ideal de perfeição.

Em 1973, seis milhões bastavam para reconstruir um homem. Em 2025, mal bastam para pagar o substituto de um titular.

O novo homem biônico: sensores, dados e inteligência artificial

Hoje, a biônica não é mais uma metáfora — ela é rotina. Os atletas profissionais são monitorados por sensores que medem batimentos cardíacos, pressão muscular, velocidade e até padrões de sono. Cada treino é acompanhado por algoritmos de inteligência artificial que analisam desempenho em tempo real, prevendo lesões e otimizando movimentos.

Em esportes como o basquete, há câmeras instaladas em todos os ângulos das quadras, captando cada gesto técnico e transformando o corpo humano em um conjunto de coordenadas matemáticas. Treinadores e cientistas do esporte usam esses dados para “reconstruir” o atleta todos os dias — ajustando treinos, dietas e estratégias com a mesma precisão com que o governo americano, na ficção, reconstruía Steve Austin.

Assim, o homem biônico renasceu — não como ficção científica, mas como realidade estatística.
A fronteira entre o corpo e a máquina desapareceu. A promessa da série dos anos 1970 foi cumprida: “Podemos reconstruí-lo. Temos a tecnologia.” Mas a pergunta permanece — quem é dono desse corpo reconstruído?O  próprio atleta, ou o sistema que mede, lucra e controla cada centímetro de sua força?

MacGyver e o espírito da gambiarra: como o Brasil transformou Profissão: Perigo em algo maior que o original

Quando a série MacGyver chegou ao Brasil, era apenas mais uma produção americana de ação dos anos 1980. O herói, interpretado por Richard Dean Anderson, era um engenheiro genial que usava ciência e improviso para resolver problemas sem recorrer à violência. Mas quando a Rede Globo a trouxe para o público brasileiro, o nome mudou — e, com ele, mudou também o espírito da obra. O título “Profissão: Perigo” sintetizou algo que não estava no original: a arte de sobreviver criativamente em um país onde o improviso é virtude.

O título que revelou o Brasil

Nos Estados Unidos, MacGyver era apenas o sobrenome do personagem — símbolo do individualismo técnico americano, do homem que domina a natureza com engenho e método.

No Brasil, “Profissão: Perigo” deslocou o foco da pessoa para a condição existencial: viver é um risco, e cada dia de trabalho é uma operação de sobrevivência.

Enquanto o americano via um herói racional, o brasileiro viu um espelho de si mesmo. MacGyver não era mais um agente secreto com diploma de química; ele era o vizinho que conserta o ventilador com fita isolante e arame. O nome “Profissão: Perigo” descrevia a vida de milhões de brasileiros que vivem de “bicos” e improvisos — não por escolha, mas por necessidade.

A invenção da gambiarra nobre

O termo “gambiarra”, tão nosso, ganhou em Profissão: Perigo uma dignidade inédita. No Brasil, MacGyver não era só um herói técnico; ele era um artesão do impossível, alguém que transformava sucata em solução.

Essa ética do improviso, que na cultura americana poderia parecer amadora, aqui se tornou sinônimo de inteligência prática, de inventividade popular.

MacGyver virou verbo: “dar um MacGyver” passou a significar resolver um problema com criatividade e coragem — o que, em muitos lares brasileiros, é a definição cotidiana de heroísmo.

A trilha sonora da astúcia: Rush e a música proibida

A transformação brasileira de MacGyver não se deu apenas no título ou na dublagem. A Rede Globo decidiu dar uma trilha sonora à altura do novo herói — e escolheu, sem autorização, o tema instrumental de “Tom Sawyer”, da banda canadense Rush.

O resultado foi explosivo. A bateria pulsante de Neil Peart, o sintetizador de Geddy Lee e a guitarra de Alex Lifeson criaram uma introdução tão marcante que, para o público brasileiro, aquela música era o MacGyver.

Durante décadas, os fãs acreditaram que a canção fazia parte da série original. Quando o Rush descobriu o uso não autorizado, anos depois, o espanto foi inevitável — mas também revelador: no Brasil, MacGyver havia se tornado algo completamente novo, um herói tropical com alma progressiva e rebelde.

A reação do Rush à “macgyveragem” televisiva

Em entrevistas e matérias posteriores, Geddy Lee, vocalista e baixista do Rush, confessou ter ficado surpreso ao descobrir que sua música havia sido usada pela TV brasileira.

“Foi muito engraçado, porque eu não fazia ideia de que a minha música estava sendo tocada para isso”, disse ele, ao recordar o episódio com bom humor.

O uso da canção como tema de Profissão: Perigo virou caso lendário entre fãs de rock e cultura pop. Sites e fóruns ainda recordam o episódio como uma das gambiarras mais icônicas da televisão brasileira, uma “pirataria criativa” que uniu três elementos improváveis: um herói americano, uma trilha canadense e o espírito brasileiro do improviso.

Nos fóruns e sites de cultura pop, comenta-se que a Globo “deu um MacGyver no próprio MacGyver”, ao usar Tom Sawyer sem licença. Ironicamente, o gesto foi tão “macgyveresco” quanto o próprio protagonista: uma solução improvisada, funcional e genial.

A genialidade do improviso institucionalizado

O uso não autorizado da música é, em si, um ato macgyveresco — uma gambiarra institucional. A Globo, ao usar Tom Sawyer, improvisou uma solução estética com os recursos disponíveis, sem seguir as regras formais.

Esse gesto reflete, em escala nacional, a filosofia do personagem: fazer o melhor possível com o que se tem.

Assim, a “macgyveragem” brasileira não apenas adaptou a série — ela criou uma estética própria, que sintetiza a mistura de ousadia, limitação e engenhosidade que define a cultura popular do país.

O herói que o Brasil adotou

MacGyver, portanto, não foi simplesmente dublado; ele foi reimaginado. Tornou-se o arquétipo do brasileiro que não tem as ferramentas ideais, mas tem a cabeça e o coração certos.

Enquanto nos EUA o personagem simbolizava o triunfo da razão técnica, no Brasil ele encarnou o triunfo da engenhosidade moral — aquele instinto que move quem vive entre dificuldades, mas se recusa a desistir.

A persistência da história e o legado cultural

Quarenta anos depois, o casamento entre Profissão: Perigo e Tom Sawyer continua vivo na memória afetiva de quem cresceu nos anos 1980. Vídeos no YouTube e memes nas redes sociais mantêm viva a trilha, e muitos brasileiros só descobriram que a música não era parte original da série quando já adultos.

Essa persistência comprova algo maior: Profissão: Perigo não é apenas uma adaptação de MacGyver — é um fenômeno cultural brasileiro.

Foi através dessa “gambiarra sonora” que muitos conheceram o Rush, e foi com essa trilha canadense “pirateada” que o público brasileiro encontrou um símbolo de sua própria criatividade.

Conclusão: o espelho da nossa identidade

O “MacGyver brasileiro” é mais do que um personagem de TV: é um retrato simbólico de um país que sobrevive criando. Profissão: Perigo tornou-se um fenômeno cultural porque traduziu, com humor e heroísmo, a dignidade da gambiarra, essa forma singular de inteligência que nasce do improviso e da esperança.

O herói americano pode ter sido engenheiro; o brasileiro, porém, transformou-o em poeta do improviso, um santo padroeiro dos que vencem o perigo com um pedaço de arame, uma boa ideia — e uma trilha sonora roubada que, paradoxalmente, deu ao mundo um som de liberdade.

sábado, 1 de novembro de 2025

Sobre o princípio da irretroatividade da lei não-penal e sobre a inconstitucionalidade de uma lei análoga à “Lei Sonny Bono” no ordenamento jurídico brasileiro

Resumo

O presente artigo analisa a impossibilidade jurídica de uma lei análoga à Sonny Bono Copyright Term Extension Act de 1998 ser validamente promulgada no Brasil. Demonstra-se que, à luz da Constituição Federal de 1988, tal norma seria materialmente inconstitucional por violar o princípio da irretroatividade da lei (art. 5º, XL), o direito adquirido da coletividade ao domínio público (art. 6º da LINDB) e a função social da propriedade intelectual (art. 5º, XXIX). O estudo compara os fundamentos da decisão Eldred v. Ashcroft da Suprema Corte dos EUA com o modelo de segurança jurídica característico do civil law, evidenciando que o direito brasileiro concebe o domínio público não como um resíduo do direito autoral, mas como um direito positivo do povo, expressão da liberdade de criação e do progresso cultural.

1. Introdução

Em 1998, o Congresso norte-americano aprovou a Sonny Bono Copyright Term Extension Act, ampliando retroativamente o prazo de proteção autoral de vida + 50 anos para vida + 70 anos. A justificativa formal foi alinhar os Estados Unidos à União Europeia; o efeito real, porém, foi prolongar monopólios privados sobre obras que estavam prestes a ingressar no domínio público.

A constitucionalidade dessa extensão foi questionada no caso Eldred v. Ashcroft (2003). A Suprema Corte americana manteve a lei, entendendo que o Congresso poderia definir “limited times” (prazos limitados) a seu critério.

Em contraste, a Constituição brasileira de 1988 consagra princípios rígidos de irretroatividade, segurança jurídica e função social da propriedade. Diante disso, uma lei de idêntico teor seria, no Brasil, manifestamente inconstitucional.

2. O princípio constitucional da irretroatividade

O art. 5º, XL, da Constituição é categórico:

“A lei não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.”

Esse comando traduz uma tradição do direito romano-canônico: o tempo não retrocede sobre o ato perfeito.

A LINDB, em seu art. 6º, reforça:

“A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.”

A irretroatividade é, portanto, garantia de segurança jurídica, não apenas individual, mas também coletiva. No campo dos direitos autorais, a coletividade adquire o direito de acesso às obras após o prazo legal; tal expectativa, uma vez constituída, não pode ser frustrada por lei posterior que amplie a exclusividade.

3. O domínio público como direito adquirido da coletividade

A doutrina brasileira — de Pontes de Miranda a José de Oliveira Ascensão — reconhece que o domínio público é o momento em que o bem cultural retorna à comunhão social. A proteção autoral é temporária, mas o destino final da obra é pertencer ao público, em consonância com o art. 5º, XXIX, da Constituição:

“A lei assegurará aos autores [...] o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar, com vista ao interesse social e ao desenvolvimento tecnológico e econômico do País.”

Logo, o domínio público não é um vazio jurídico: é o direito adquirido da sociedade. Ampliar retroativamente o prazo autoral retira da coletividade um bem que já estava na iminência de ser devolvido. Trata-se de expropriação legislativa do comum cultural, sem indenização nem utilidade pública — uma violação clara da função social da propriedade intelectual.

4. A lei Sonny Bono e o modelo americano de retroatividade

Nos Estados Unidos, o fundamento constitucional do copyright está no art. I, § 8, cl. 8 da Constituição:

“To promote the Progress of Science and useful Arts, by securing for limited Times to Authors and Inventors the exclusive Right to their respective Writings and Discoveries.”

A expressão “limited Times” foi interpretada pela Suprema Corte como flexível, permitindo sucessivas extensões, desde que cada uma fosse formalmente limitada. Assim, a Lei Sonny Bono aplicou-se retroativamente a todas as obras ainda sob proteção, adiando por vinte anos o ingresso no domínio público.

Essa decisão reflete uma característica do common law: a supremacia do precedente legislativo e da conveniência econômica sobre o princípio da segurança jurídica abstrata. O Estado pode alterar o equilíbrio entre autor e público desde que não suprima a forma — apenas o conteúdo.

5. Por que seria inconstitucional no Brasil?

Se o legislador brasileiro instituísse uma lei análoga à Lei Sonny Bono, a norma seria materialmente inconstitucional por três motivos principais:

a) Violação da irretroatividade (art. 5º, XL)

A retroação só é admitida “para beneficiar o réu”. Aqui, o beneficiário seria o titular econômico, não o réu social. Logo, haveria retroatividade lesiva, expressamente proibida.

b) Ofensa ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito (art. 6º LINDB)

O ingresso no domínio público é um ato jurídico perfeito previsto pela lei vigente ao tempo da morte do autor. Modificar o prazo posterior equivale a revogar retroativamente um direito consolidado.

c) Desvio da função social da propriedade intelectual (art. 5º, XXIX)

A extensão retroativa não promove o desenvolvimento, mas o entorpece.Ela posterga a livre circulação do conhecimento e o acesso à cultura, contrariando o objetivo constitucional da limitação temporal.

6. Implicações práticas e filosóficas

A distinção entre o modelo americano e o brasileiro expressa duas concepções distintas de justiça:

Aspecto 🇧🇷 Brasil – Civil Law 🇺🇸 EUA – Common Law
Natureza do copyright Direito moral e patrimonial limitado Direito econômico concedido pelo Estado
Retroatividade Proibida, salvo benéfica Admitida, se “razoável”
Domínio público Direito adquirido coletivo Estado residual após o monopólio
Função social Essencial, explícita Implícita, interpretativa

No Brasil, a verdade jurídica funda a liberdade cultural: o tempo da lei é kairológico, ordenado ao bem comum. Nos EUA, o tempo da lei é cronológico e utilitário: mede-se pelo interesse econômico.

Assim, o princípio “a lei não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” revela mais que uma regra técnica; ele expressa a ética do direito brasileiro, que reconhece na passagem do tempo a consumação da justiça e na memória cultural o direito do povo.

7. Conclusão

A Lei Sonny Bono representa, sob o prisma da Constituição de 1988, um exemplo paradigmático de retroatividade inconstitucional. Se transplantada para o Brasil, ela violaria o art. 5º, XL, o art. 6º da LINDB e o art. 5º, XXIX, por:

  1. negar o princípio da irretroatividade;

  2. frustrar o direito adquirido da coletividade ao domínio público;

  3. desvirtuar a função social da propriedade intelectual.

O domínio público não é uma ausência de direitos, mas a presença do direito comum. Sua defesa é dever de todo jurista e escritor que compreende que a liberdade criadora floresce não da extensão do monopólio, mas de sua justa limitação no tempo.

Referências essenciais

  • Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.

  • Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/1942).

  • Lei nº 9.610/1998 – Direitos Autorais.

  • Eldred v. Ashcroft, 537 U.S. 186 (2003).

  • U.S. Copyright Term Extension Act (1998) – Sonny Bono Act.

  • PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado.

  • ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Autoral.

  • SILVEIRA, Newton. Propriedade Intelectual: Direito, Economia e Cultura.