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segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Substituição Tributária e Hortas Domésticas: entre a cesta básica e a produção sazonal

A substituição tributária é um regime pelo qual a cobrança de tributos é antecipada na cadeia produtiva, geralmente no momento em que o produto sai do campo ou da indústria em direção ao atacadista. No setor de alimentos, essa prática é comum quando se trata de itens que compõem a cesta básica — arroz, feijão, milho, soja, trigo — produtos de consumo massivo e parte essencial da dieta da população brasileira.

Como funciona a substituição tributária nos alimentos básicos

No caso desses produtos, os tributos federais (como PIS e Cofins) são recolhidos antecipadamente pelo governo federal sobre o cultivo e a produção industrial. Ao mesmo tempo, o governo estadual arrecada o ICMS diretamente do produtor, ainda antes que o produto chegue ao atacadista.

Assim, quando o bem chega ao mercado atacadista ou varejista, já vem com o imposto embutido no preço. Dessa forma, nem atacadistas nem varejistas recolhem ICMS na venda ao consumidor final: apenas repassam ao preço o que já foi antecipado pelo produtor. O resultado é que o produtor rural especializado em monocultura de larga escala (latifúndio) concentra a função de contribuinte substituto, repassando a carga tributária adiante.

Quando não há substituição tributária

Por outro lado, quando falamos de alimentos sazonais ou regionais, cujo cultivo atende a preferências locais (como frutas típicas, hortaliças específicas ou produtos de nicho), o regime de substituição tributária muitas vezes não se aplica. Nesse caso, a tributação pode se dar de forma fragmentada, em cada etapa da cadeia (produção, transporte, atacado, varejo). Isso encarece o produto para o consumidor final e aumenta a burocracia fiscal.

Esse é o motivo pelo qual, no setor de hortifruti fresco, consumidores como sua mãe acabam pagando tributos federais e estaduais embutidos em cada compra, sem se beneficiarem da simplificação da substituição tributária que existe para grãos ou outros itens da cesta básica.

A horta como forma de afastar a carga tributária

Diante dessa realidade, cultivar uma horta doméstica passa a ser uma solução econômica e estratégica. O alimento produzido para o próprio consumo escapa da tributação indireta, já que não há circulação mercantil tributável. Cada tomate, alface ou tempero colhido em casa é um alimento livre de impostos, pois não percorreu a cadeia formal de produção e comércio.

Além da economia direta com tributos, a horta traz outros benefícios: maior frescor dos alimentos, autonomia alimentar, possibilidade de cultivo de variedades não encontradas no mercado e redução da dependência das oscilações de preço e sazonalidade.

Conclusão

Enquanto os latifúndios especializados garantem a estabilidade da dieta básica da população através da substituição tributária — um mecanismo de arrecadação eficiente e antecipado —, a produção sazonal e regional fica fora desse regime, onerando o consumidor final. Nesse cenário, a horta doméstica surge não apenas como prática sustentável, mas como verdadeira estratégia econômica de afastamento da carga tributária, transformando o ato de plantar em casa em um negócio vantajoso para o bolso e para a saúde.

Plantar para economizar: como a horta doméstica reduz o peso dos impostos sobre o consumo

Introdução

O Brasil tem uma das cargas tributárias indiretas mais elevadas do mundo, especialmente sobre alimentos. Quando compramos produtos básicos, como frutas, legumes e verduras, pagamos não apenas pelo alimento em si, mas também por uma cadeia de tributos federais e estaduais embutidos no preço.

Nesse contexto, cultivar uma horta em casa não é apenas um ato de saúde e sustentabilidade, mas também um instrumento de economia tributária, já que elimina a intermediação do comércio formal e, com ela, os impostos incidentes.

A carga tributária no hortifruti comprada com a do supermercado

Mesmo que o setor de hortifruti in natura não esteja sujeito à substituição tributária, ele não escapa da tributação. O consumidor paga:

  • ICMS, recolhido pelo supermercado sobre cada venda;

  • PIS e Cofins, tributos federais sobre o faturamento;

  • Custos indiretos (logística, perdas, armazenamento), todos inflados por tributos incidentes em cada etapa.

Assim, um simples quilo de tomate pode custar muito mais do que o valor real da produção agrícola, em boa parte devido aos encargos tributários e de circulação.

A horta doméstica como “isenção tributária natural”

Quando o consumidor cultiva sua própria comida, a lógica muda completamente:

  • Não há incidência de ICMS: a produção não circula comercialmente;

  • Não há PIS/Cofins: não existe faturamento;

  • Custos de transporte e armazenagem são mínimos: basta colher no quintal ou no vaso.

Em outras palavras, o alimento da horta nasce isento de impostos, representando uma verdadeira “isenção tributária doméstica”.

Plantar como negócio indireto

Embora plantar em casa não gere renda tributada (a menos que haja venda), ele gera um negócio indireto:

  1. Economia no orçamento familiar: cada tomate, alface ou tempero cultivado em casa significa menos dinheiro gasto no supermercado e, consequentemente, menos imposto pago.

  2. Autonomia alimentar: a família não depende da oscilação de preços do mercado (que embute tributos e margens de lucro).

  3. Segurança no longo prazo: em tempos de inflação de alimentos, a horta atua como uma proteção patrimonial — funciona como um “ativo” que preserva valor.

Exemplo prático

Imagine que uma família consome R$ 300 por mês em hortifruti. Considerando uma carga tributária indireta média de 20% a 30%, isso significa algo entre R$ 60 e R$ 90 em impostos mensais, apenas nesse segmento.

Se metade dessa necessidade for suprida com uma horta doméstica, a economia anual pode chegar a mais de R$ 500 a R$ 600, sem contar a qualidade nutricional superior dos alimentos frescos.

Conclusão

O cultivo doméstico de alimentos funciona como uma estratégia silenciosa, mas poderosa, de economia tributária. Enquanto a substituição tributária não beneficia o consumidor final no hortifruti, a horta caseira elimina por completo a incidência de impostos sobre a alimentação cultivada para consumo próprio.

Nesse sentido, plantar comida em casa é mais do que um hábito saudável: é uma forma de resistir ao peso da tributação indireta e de transformar o quintal, a varanda ou até vasos em um negócio econômico de longo prazo.

Por que o consumidor de hortifruti não se beneficia da substituição tributária?

Introdução

A tributação indireta sobre o consumo no Brasil é complexa e impacta de formas diferentes os produtos que chegam à mesa do consumidor. Enquanto em segmentos como bebidas, combustíveis e produtos industrializados a substituição tributária (ST) tem papel relevante, no setor de hortifruti a situação é distinta. Consumidores que compram frutas, legumes e verduras em supermercados, como no caso citado da mãe do leitor, não se beneficiam desse regime especial, arcando com a carga tributária embutida diretamente no preço final.

O que é a substituição tributária?

A substituição tributária é um regime de arrecadação de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) no qual a responsabilidade de recolher o imposto é transferida para um elo anterior da cadeia de circulação.

  • Normalmente, a indústria ou o atacadista recolhe antecipadamente o ICMS de toda a cadeia, incluindo o que será devido pelas etapas posteriores de venda ao varejo.

  • A ideia é simplificar a fiscalização e evitar a sonegação, pois o fisco concentra a cobrança em poucos contribuintes de maior porte.

Para o consumidor, isso significa que o imposto já está embutido no preço de forma antecipada, e muitas vezes não há grandes variações na carga tributária final.

O caso do hortifruti: por que a ST não se aplica?

No setor de hortifruti, o regime de substituição tributária raramente é utilizado, e há razões específicas para isso:

  1. Natureza perecível dos produtos
    Os preços de frutas, legumes e verduras variam diariamente conforme safra, clima, transporte e oferta local. A tributação antecipada por ST tornaria difícil calcular o valor final com precisão.

  2. Venda pulverizada e descentralizada
    Diferente de produtos industrializados (como refrigerantes ou cigarros), o hortifruti é produzido por inúmeros pequenos agricultores e distribuído em feiras, CEASAs, supermercados e mercearias. Essa pulverização inviabiliza o recolhimento centralizado.

  3. Margem de lucro variável
    O supermercado pode praticar margens diferentes de acordo com a sazonalidade ou perda de estoque. Fixar uma base de cálculo presumida pela ST criaria distorções.

  4. Exceções legais
    Muitos Estados isentam ou reduzem o ICMS de hortifrutis in natura para estimular o consumo de alimentos básicos. Nesses casos, a ST nem seria aplicável, pois não há imposto a antecipar.

O que o consumidor realmente paga

Na compra de hortifrutis, o consumidor arca com tributos embutidos diretamente no preço, sem antecipação via ST. Entre eles:

  • ICMS (estadual), recolhido pelo supermercado na operação de venda;

  • PIS e Cofins (federais), incidentes sobre a receita do estabelecimento;

  • Custos indiretos de logística, armazenamento e perdas, que também sofrem influência tributária.

Assim, a mãe do leitor paga os impostos sem qualquer vantagem trazida pelo regime de substituição tributária, que é restrito a outros setores.

Comparação: hortifruti x produtos industrializados

  • Arroz, feijão ou macarrão: muitas vezes sujeitos à ST. O imposto já é recolhido pelo atacadista/indústria, e o preço chega ao consumidor com a carga tributária embutida e relativamente estável.

  • Tomate, banana ou alface: não sujeitos à ST. O supermercado calcula o ICMS sobre o preço de venda no caixa, somando ao custo da mercadoria as variações de mercado e demais encargos.

Conclusão

Consumidores de hortifrutis, como a mãe do leitor, não se beneficiam da substituição tributária porque este regime não se aplica a produtos de natureza perecível, preço volátil e cadeia de produção pulverizada. No hortifruti, o ICMS e os tributos federais continuam a ser repassados diretamente ao preço final, sem antecipação ou simplificação.

Enquanto grandes atacadistas e varejistas encontram vantagens em setores onde a ST é aplicada, no caso dos hortifrutis prevalece a lógica tradicional de tributação, onde o consumidor paga integralmente a carga tributária de forma diluída no preço, sem qualquer benefício adicional.

domingo, 26 de outubro de 2025

O prazo de proteção dos direitos autorais na Espanha e o caso de Ortega y Gasset (e de outros autores espanhóis)

Introdução

A legislação de direitos autorais é um campo em que história, política cultural e interesses econômicos se entrelaçam. Embora a União Europeia tenha buscado harmonizar os prazos de proteção, a Espanha manteve uma particularidade notável: a regra dos 80 anos post mortem auctoris para autores falecidos antes de 1987. Esse regime jurídico prolongado impactou diretamente grandes nomes da literatura espanhola, como José Ortega y Gasset, Miguel de Unamuno, Antonio Machado e Federico García Lorca.

A tradição espanhola dos 80 anos

A Lei de Propriedade Intelectual de 1879, posteriormente reformada em 1987, estabeleceu prazos de 80 anos após a morte do autor. Essa extensão foi justificada pela ideia de proteger não apenas os herdeiros, mas também a herança cultural espanhola.

Com a Lei 22/1987, esse prazo foi consolidado, criando uma situação excepcional dentro da Europa. Autores falecidos antes dessa data permaneceram sob a regra dos 80 anos, mesmo depois da harmonização legislativa europeia.

A intervenção da União Europeia

Com a Diretiva 93/98/CEE, depois consolidada em 2006/116/CE, a União Europeia fixou o prazo em 70 anos post mortem para todos os Estados-membros. Contudo, para evitar prejuízo a herdeiros e editoras, a norma trouxe uma cláusula de não-retrocesso: países que já garantiam prazos mais amplos não precisariam reduzi-los.

Nota de Rodapé

A cláusula de não-retrocesso foi essencial para evitar que milhares de obras caíssem instantaneamente em domínio público. No caso da Espanha, isso significou que autores falecidos antes de 7 de dezembro de 1987 permaneceriam sob a proteção dos 80 anos. Por isso, a obra de Ortega y Gasset, falecido em 1955, continua protegida até 2035.

O caso de José Ortega y Gasset

O filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883–1955) é exemplo claro da excepcionalidade espanhola.

  • Brasil: Pela lei de 1973 (60 anos), sua obra está em domínio público desde 01/01/2016.

  • Espanha/União Europeia: Pela regra dos 80 anos, a proteção dura até 31/12/2035. Somente em 01/01/2036, suas obras entrarão em domínio público.

Esse descompasso cria uma diferença de 20 anos entre o acesso brasileiro e o europeu ao mesmo patrimônio cultural.

Outros autores espanhóis atingidos

  1. Miguel de Unamuno (1864–1936)

    • Espanha: domínio público em 2017.

    • Brasil: domínio público em 1997.

  2. Antonio Machado (1875–1939)

    • Espanha: domínio público em 2020.

    • Brasil: domínio público em 2000.

  3. Federico García Lorca (1898–1936)

    • Espanha: domínio público em 2017.

    • Brasil: domínio público em 1997.

Esses exemplos mostram como o regime espanhol prolongou por décadas a exclusividade de exploração das obras desses autores em relação ao Brasil.

Quadro Comparativo 

Jurisdição Lei Aplicável Ano da Morte Início da Contagem Prazo Fim da Proteção Início do Domínio Público
Brasil Lei 5.988/1973 (60 anos) 1955 01/01/1956 60 anos 31/12/2015 01/01/2016
Espanha Lei 22/1987 (80 anos para autores pré-1987) 1955 01/01/1956 80 anos 31/12/2035 01/01/2036
UE Diretiva 93/98/CEE + 2006/116/CE 1955 01/01/1956 70 anos (regra geral, mas respeita 80 da Espanha) 31/12/2035 01/01/2036

Panorama de Autores Espanhóis 

Autor Ano de Falecimento Domínio Público no Brasil Domínio Público na Espanha
Miguel de Unamuno 1936 01/01/1997 01/01/2017
Antonio Machado 1939 01/01/2000 01/01/2020
Federico García Lorca 1936 01/01/1997 01/01/2017
José Ortega y Gasset 1955 01/01/2016 01/01/2036

Conclusão

O caso de Ortega y Gasset e de outros escritores espanhóis mostra como o direito autoral não é apenas uma questão jurídica, mas também um marco cultural que define o tempo de circulação das ideias.

No Brasil, leitores e editores tiveram acesso às obras desses autores décadas antes dos espanhóis, enquanto na Espanha a proteção prolongada manteve a exclusividade em mãos de herdeiros e editoras até o século XXI.

Essa situação evidencia a tensão permanente entre a justa remuneração e proteção do autor e seus herdeiros e o direito coletivo de acesso à cultura. No caso espanhol, essa balança pendeu fortemente para o lado da proteção patrimonial, retardando o pleno florescimento popular de alguns dos maiores escritores do século XX.

 👉 Assim, Ortega y Gasset e seus contemporâneos não são apenas exemplos literários, mas também símbolos do impacto da legislação autoral na circulação cultural: suas ideias atravessaram fronteiras, mas ficaram presas por décadas em malhas jurídicas distintas.

Do potencial de traduzir as obras de Marcel Granet para o português

Introdução

Marcel Granet (1884–1940), discípulo de Émile Dürkheim e expoente da Escola Sociológica Francesa, é uma das vozes mais relevantes no diálogo entre sociologia, história e sinologia. Suas obras, escritas na primeira metade do século XX, ofereceram um olhar inovador sobre a China antiga, interpretando seus mitos, religiões, instituições e sistemas de pensamento à luz da sociologia durkheimiana. No entanto, apesar de sua importância, ainda são escassas as traduções de seus textos para o português. A entrada de sua obra em domínio público, desde 2011, abre uma oportunidade singular para preencher esta lacuna cultural e acadêmica.

O valor intelectual das obras de Granet

Granet não se limitou à erudição filológica ou à descrição histórica. Seu método articulava três dimensões fundamentais:

  1. Análise sociológica – Com base no legado de Dürkheim, estudava ritos, religiões e estruturas sociais da China como sistemas vivos de coesão.

  2. Sensibilidade etnográfica – Seu convívio com chineses em Pequim permitiu-lhe compreender a língua e a cultura chinesas em sua organicidade.

  3. Perspectiva comparativa – Ao contrastar o pensamento chinês com categorias ocidentais, Granet revelou tanto as singularidades quanto as afinidades entre culturas.

Obras como La Pensée Chinoise (1934), La Civilisation Chinoise (1929) e Danses et Légendes de la Chine Ancienne (1926) permanecem referências obrigatórias para quem deseja compreender a lógica cultural da China.

A necessidade da tradução para o português

A ausência de edições acessíveis em língua portuguesa limita o alcance de Granet ao público lusófono. Traduzir sua obra significaria:

  • Enriquecer o debate acadêmico brasileiro e lusófono: as universidades e centros de pesquisa em ciências sociais, filosofia e estudos orientais ganhariam um recurso fundamental para o ensino e a pesquisa.

  • Aproximar culturas: o Brasil, com sua crescente presença chinesa no comércio e na diplomacia, beneficiaria-se de um instrumento de compreensão cultural profundo.

  • Ampliar horizontes intelectuais: leitores fora do meio acadêmico, interessados em filosofia, sociologia ou comparações culturais, teriam acesso a um pensamento que mostra outras formas de racionalidade.

Oportunidades editoriais

Como as obras de Granet já se encontram em domínio público patrimonial, podem ser livremente digitalizadas, traduzidas e publicadas, desde que se respeitem os direitos morais do autor – isto é, citar sempre a autoria, não deturpar seu pensamento e deixar claro quando há adaptações ou notas do tradutor.

Isso abre espaço para:

  • Edições críticas com aparato de notas explicativas.

  • Traduções bilíngues, úteis a estudantes de francês ou chinês.

  • Versões digitais de acesso livre, ampliando o alcance da obra.

  • Coleções temáticas, reunindo Granet com outros autores da sinologia clássica, como Marcel Mauss ou Henri Maspero.

Desafios da tradução

Traduzir Granet exige:

  • Fidelidade conceitual – sua escrita sociológica contém termos técnicos da tradição durkheimiana.

  • Rigor sinológico – sua interpretação depende do vocabulário chinês clássico, que requer precisão.

  • Estilo literário – Granet escrevia com elegância e ritmo, o que desafia o tradutor a manter clareza sem perder a cadência.

Conclusão

Traduzir Marcel Granet para o português não é apenas um exercício acadêmico: trata-se de um ato cultural estratégico. Suas obras permitem que compreendamos como uma grande civilização elaborou suas formas de pensar, crer e viver em sociedade. Para o Brasil, onde o diálogo com a China é cada vez mais relevante, disponibilizar Granet em nossa língua é abrir um caminho de diálogo intelectual, intercultural e espiritual. Preservando os direitos morais do autor e respeitando sua honestidade intelectual, a tradução se torna não apenas legítima, mas necessária.

A expansão hispânica e a herança portuguesa no Brasil: integração, replicação e identidade além-mar

1. O princípio da replicação institucional

María Elvira Roca Barea observa que, ao expandir-se, a Monarquia Hispânica replicava as instituições de Castela nos novos territórios, sem instituir um ordenamento colonial distinto. Todos eram súditos do mesmo rei, fossem peninsulares, índios ou mestiços. A noção de “colônia” como espaço jurídico subordinado à metrópole, típica do modelo britânico, não se aplicava ao universo hispânico.

Essa lógica também se aplicava a Portugal: a expansão ultramarina não criou uma ordem jurídica paralela, mas transplantou o município, o direito régio e o catolicismo como eixos organizadores. A América portuguesa não era concebida como “colônia” no sentido moderno, mas como parte integrante do Reino — daí a expressão “portugueses de além-mar”.

2. O Brasil como extensão do Reino de Portugal

No Brasil, desde a fundação das primeiras capitanias e vilas, foram instituídos cabildos lusitanos (as câmaras municipais), irmandades religiosas e universidades jesuíticas, à semelhança do que já existia no reino europeu. Essa replicação garantiu continuidade cultural e jurídica, formando uma população que se via portuguesa, ainda que em terras americanas.

A expressão “portugueses de além-mar” reforça o caráter de unidade política e cultural: a nação portuguesa não era definida apenas pelo território europeu, mas pela fidelidade ao rei e pela comunhão espiritual sob a Igreja Católica.

3. A transferência da Corte (1808) e o Brasil como centro do Império

Esse princípio de unidade atingiu sua expressão máxima com a vinda da família real portuguesa ao Brasil em 1808, fugindo das tropas napoleônicas. Pela primeira vez na história moderna, a cabeça do Reino deslocava-se para uma de suas partes ultramarinas. O que era “Portugal de além-mar” tornou-se, literalmente, Portugal central.

Entre as medidas de D. João VI, destacam-se:

  • Abertura dos portos às nações amigas (1808): o Brasil deixa de depender exclusivamente do comércio metropolitano.

  • Criação de instituições régias no Rio de Janeiro: Banco do Brasil, Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, Biblioteca Real, Tribunais Supremos.

  • Elevação do Brasil a Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves (1815): a consagração jurídica da ideia de que o Brasil não era mais “colônia”, mas parte essencial do Império.

Esse movimento confirmou que, desde o início, o Brasil era parte orgânica da monarquia portuguesa. Ao contrário das colônias britânicas da América do Norte, que se rebelaram contra a metrópole, o Brasil recebeu a metrópole em si — e, assim, herdou sua estrutura política completa.

4. Diferença em relação ao modelo britânico

O contraste é evidente:

  • Modelo ibérico: integração institucional, replicação de leis e reconhecimento dos súditos além-mar como membros do Reino.

  • Modelo britânico: separação jurídica, distinção rígida entre colonos e nativos, cidadania restrita.

Enquanto um indiano jamais poderia portar passaporte britânico, um luso-brasileiro era reconhecido como português. A independência de 1822 não foi uma ruptura total, mas a apropriação, em terras americanas, da mesma máquina de Estado que já funcionava em Lisboa.

5. Quadro comparativo dos modelos coloniais 

Aspecto Modelo Ibérico (Espanha/Portugal) Modelo Britânico Modelo Francês
Status jurídico Territórios integrados ao Reino; súditos do mesmo monarca Colônias juridicamente separadas; cidadania restrita Regime misto: colônias como prolongamento cultural, mas sem plena cidadania
Instituições Replicação de municípios, universidades, câmaras, irmandades Charter colonies, companhias privadas, autogoverno limitado Administração centralizada em Paris; códigos coloniais
Cidadania Inclusão formal (mesmo que desigual na prática) Exclusão dos nativos; distinção rígida Inclusão limitada; Código Napoleônico adaptado
Identidade “Portugueses/Espanhóis de além-mar” Colono = britânico; nativo ≠ britânico Sujeitos franceses de segunda ordem
Legado Unidades nacionais integradas (Brasil, Hispano-américa) Comunidades da Commonwealth Diversidade linguística e tensões pós-coloniais

6. Consequências históricas

  • Unidade linguística: Portugal assegurou o predomínio do português no Brasil.

  • Cultura política: O municipalismo e o direito régio moldaram a vida brasileira.

  • Centralidade atlântica: A instalação da Corte no Rio de Janeiro transformou o Brasil em cabeça do Império.

  • Independência peculiar: Quando rompeu com Portugal, o Brasil já possuía Estado, burocracia e identidade próprios — herança direta do Reino.

7. Conclusão

A leitura de Roca Barea ajuda a compreender que a colonização ibérica não foi simplesmente uma relação de exploração econômica. Foi também um projeto de replicação civilizacional, em que Portugal e Espanha expandiram seus mundos jurídicos, culturais e religiosos. O Brasil herdou de Portugal não só instituições, mas o próprio estatuto de parte essencial do Reino.

A transferência da Corte em 1808 confirmou essa lógica: o Brasil não era periferia, mas um Portugal de além-mar tornado centro do Império. Essa singularidade explica tanto a unidade nacional brasileira após a Independência quanto a continuidade institucional que diferencia sua trajetória da maioria das ex-colônias modernas.

Bibliografia

  • BOXER, Charles R. O Império Marítimo Português (1415–1825). Lisboa: Edições 70, 2002.

  • ELLIOTT, John H. Empires of the Atlantic World: Britain and Spain in America 1492–1830. New Haven: Yale University Press, 2006.

  • HESPANHA, António Manuel. As Vésperas do Leviatã: Instituições e poder político em Portugal, séc. XVI–XVIII. Coimbra: Almedina, 1994.

  • MAXWELL, Kenneth. A Devassa da Devassa: A Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal, 1750–1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

  • PRADO Jr., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1942.

  • ROCA BAREA, María Elvira. Imperiofobia y leyenda negra. Madrid: Siruela, 2016.

  • SCHWARTZ, Stuart B. Sovereignty and Society in Colonial Brazil. Berkeley: University of California Press, 1973.

  • VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil. 3 vols. São Paulo: Melhoramentos, 1948.

sábado, 25 de outubro de 2025

A promessa cristã: entre a imitação de Cristo e a fragilidade humana

1. A promessa diante do verdadeiro Deus e verdadeiro Homem

Para um cristão digno desse nome, prometer algo não é simples. Quando se contempla Cristo — verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, igual a nós em tudo, menos no pecado — percebe-se o abismo entre a perfeição d’Ele e a nossa limitação. Cristo, sendo onisciente, conhece o coração humano, antecipa as circunstâncias e nunca falha na palavra dada. Sua promessa é, ao mesmo tempo, ato de verdade e cumprimento. Já nós, frágeis e falíveis, ao prometer estamos expostos ao risco de não conhecer nem a nós mesmos, nem plenamente aqueles a quem prometemos.

2. A imitação como caminho árduo, mas possível

Seguir Cristo significa buscar imitá-Lo também no compromisso da palavra. Essa imitação, porém, não se trata de cópia mecânica, mas de participação na Sua vida pela graça. Santo Agostinho já dizia que o cristão é um “alter Christus”: alguém chamado a reproduzir, em sua limitação, a fidelidade do Filho ao Pai. Por isso, prometer não é apenas um gesto humano de boa vontade, mas um exercício de fé, esperança e caridade. Exige prudência para medir as próprias forças, justiça para respeitar o outro, fortaleza para perseverar e temperança para não assumir encargos impossíveis.

3. O mérito da promessa não está na grandeza, mas na fidelidade

O valor de uma promessa não reside em sua extensão, mas em sua lealdade. Cristo nos mostra isso ao prometer estar conosco “até o fim dos tempos” (Mt 28,20). Sua palavra se cumpre não porque Ele se limita ao que é pequeno, mas porque o Seu amor é eterno e fiel. Já o cristão, ao prometer, deve ter consciência da própria condição: não é onisciente, não sabe o futuro e nem sempre entende quem está diante de si. Isso não desvaloriza a promessa, mas a coloca na luz da humildade: ao prometer, o fiel precisa reconhecer sua dependência da graça de Deus.

4. Prometer como ato de fé e esperança

Toda promessa cristã é, portanto, feita sob o olhar de Deus. É um ato de fé, porque crê que o Senhor sustentará o prometente em sua fidelidade. É também um ato de esperança, pois, se houver falhas, sempre haverá espaço para arrependimento, reparação e recomeço. A dificuldade de prometer — justamente por não sermos iguais a Cristo — transforma-se, assim, em ocasião de crescimento espiritual. É no esforço de manter a palavra dada que a alma se purifica, aprende a perseverar e testemunha que a graça pode tornar possível o que parece impossível.

5. A promessa como escola da santidade

Prometer é, em última instância, um exercício de santidade. Ao fazê-lo, o cristão se coloca no caminho do Cristo que nunca faltou à Sua palavra. É um desafio árduo, mas não intransponível. A cada promessa cumprida, mesmo nas pequenas coisas, a vida do fiel vai se configurando à de Cristo, até que um dia se possa dizer com São Paulo: “Já não sou eu quem vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20).