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terça-feira, 2 de setembro de 2025

A imprensa como assessoria social na democracia plebiscitária

Em uma democracia plebiscitária, em que o povo exerce a soberania de forma direta e informada, a imprensa assume um papel central que vai muito além da simples transmissão de fatos. Ela se transforma, efetivamente, em uma assessoria social, oferecendo ao cidadão os instrumentos necessários para compreender, avaliar e decidir sobre os rumos da sociedade.

O conceito de assessoria social atribuído à imprensa parte do princípio de que a participação popular exige informação precisa, contextualizada e transparente. Diferentemente de uma democracia representativa puramente formal, em que os eleitores delegam poder a representantes, a democracia plebiscitária pressupõe que o povo seja o agente ativo de decisões políticas. Nesse cenário, a imprensa não apenas relata eventos, mas interpreta, compara alternativas, aponta consequências e alerta sobre riscos ou inconsistências nas ações governamentais.

A condição essencial para que essa função seja cumprida é o compromisso com a verdade. Uma imprensa livre, mas pautada em interesses particulares ou na manipulação de dados, deixa de ser assessora e passa a ser uma ferramenta de distorção, desviando a soberania popular. Por isso, a ética jornalística, fundamentada na transparência e no rigor factual, torna-se imperativa: apenas uma imprensa fiel à realidade pode permitir que o povo exerça sua autoridade com discernimento.

Historicamente, sociedades em que a imprensa atuou como mediadora responsável e independente mostraram maior resiliência institucional. A circulação de informações confiáveis permite a educação cívica, a fiscalização do poder e a correção de rumos quando necessário, consolidando a função social do jornalismo. Ao mesmo tempo, ela estabelece um canal de diálogo entre Estado e sociedade, tornando visíveis demandas, insatisfações e necessidades, que, de outra forma, poderiam permanecer ignoradas.

Do ponto de vista teórico, autores como Jürgen Habermas (1989) destacam o papel do espaço público na consolidação da democracia, enfatizando que uma esfera pública informada é fundamental para a deliberação racional entre cidadãos. Já Noam Chomsky e Edward Herman (1988), em Manufacturing Consent, alertam para os riscos de uma mídia concentrada e manipulada, que pode transformar a imprensa em instrumento de poder econômico e político, desviando-a de seu papel social. Por sua vez, Seymour Martin Lipset (1960) mostra que a educação política e a informação de qualidade são essenciais para a estabilidade democrática, reforçando a ideia de que a imprensa bem feita é um pilar da soberania popular.

Portanto, a imprensa, quando bem exercida, cumpre um papel quase institucional de assessoria à cidadania. Ela transforma o ato de informar em uma ferramenta de empoderamento coletivo, reforçando a democracia ao permitir que cada cidadão participe de maneira fundamentada. A liberdade de imprensa, nesse contexto, não é um privilégio da mídia, mas um direito público essencial, um instrumento que assegura que a soberania popular não se limite a formalidades, mas se concretize em decisões conscientes e eficazes.

Em última análise, a imprensa livre e veraz é a ponte entre o cidadão e o exercício pleno de sua soberania. Ao prestar serviços de informação de qualidade, ela garante que a democracia plebiscitária não seja apenas um ideal abstrato, mas uma realidade viva, fundamentada no conhecimento, na transparência e na verdade.

Bibliografia

  • CHOMSKY, Noam; HERMAN, Edward S. Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media. New York: Pantheon Books, 1988.

  • HABERMAS, Jürgen. The Structural Transformation of the Public Sphere. Cambridge: MIT Press, 1989.

  • LIPSET, Seymour Martin. Political Man: The Social Bases of Politics. New York: Doubleday, 1960.

  • McQUAIL, Denis. McQuail’s Mass Communication Theory. London: Sage, 2010.

  • SCHUDSON, Michael. The Sociology of News. New York: W.W. Norton, 2003.

O futebol como ponte geopolítica e geoeconômica cultural

O futebol é, talvez, o mais poderoso vetor cultural do Brasil no mundo contemporâneo. Desde o século XX, a exportação de jogadores brasileiros para os grandes centros europeus ultrapassou a dimensão esportiva e se converteu em um fenômeno de geopolítica cultural, pois ampliou a presença simbólica do Brasil em espaços estratégicos da Europa, e em um fenômeno de geoeconomia cultural, ao gerar fluxos econômicos e simbólicos que consolidaram o futebol como mercadoria global.

1. O jogador brasileiro como embaixador cultural

Na ausência de uma política cultural organizada pelo Estado brasileiro, foram os craques que assumiram a função de verdadeiros embaixadores informais do país. Pelé nos anos 1960, Zico e Falcão nos anos 1980, Ronaldo, Rivaldo, Ronaldinho e Kaká nos anos 1990–2000 foram não apenas atletas, mas símbolos nacionais transnacionais, transmitidos ao vivo pelas televisões da Europa e agora eternizados no YouTube.

Cada jogador projetava no gramado europeu uma imagem do Brasil: talento natural, improviso criativo, alegria no jogo. Essa estética do futebol brasileiro funcionou como soft power, tornando o país admirado e reconhecido globalmente sem a necessidade de aparato diplomático direto.

2. O futebol como geopolítica cultural

O movimento dos craques brasileiros para a Europa configurou uma cartografia cultural que coincide com os centros do poder mundial.

  • Na Itália, os brasileiros integraram o auge da Serie A (anos 1980–2000), conectando o público brasileiro ao imaginário renascentista e à política italiana contemporânea.

  • Na Espanha, com o Barcelona de Romário, Rivaldo, Ronaldinho e depois Neymar, o Brasil se projetou dentro de uma narrativa de vanguarda cultural e modernidade catalã.

  • Na Holanda, os brasileiros no Ajax e PSV criaram vínculos com um país pequeno em território, mas gigante em comércio internacional, história colonial e inovação.

  • Na Inglaterra, com a Premier League, o talento brasileiro se inseriu no epicentro do capitalismo financeiro e do globalismo esportivo.

Assim, o futebol serviu como uma forma de inserção cultural indireta do Brasil em polos estratégicos da Europa.

3. A geoeconomia cultural do futebol

O futebol brasileiro tornou-se também um ativo da geoeconomia cultural. Cada transferência de jogador gerava não apenas receita imediata, mas um capital simbólico para o Brasil. As imagens exportadas pela televisão, e hoje reproduzidas livremente no YouTube, criam memórias emocionais de gerações inteiras de europeus e brasileiros.

Essa memória emocional se converte em um valor econômico de longo prazo: brasileiros consomem as línguas e culturas da Itália, Espanha, Holanda e Inglaterra através do futebol, e, em contrapartida, esses países mantêm o Brasil como fornecedor de talentos, sustentando uma relação assimétrica, mas duradoura.

4. O futebol como ponte de idiomas e culturas

Na prática, o futebol permitiu que milhões de brasileiros tivessem contato com o italiano, o espanhol, o holandês e o inglês por meio das transmissões esportivas. O YouTube reforçou essa ponte ao reabrir o arquivo histórico, permitindo que memórias individuais se transformassem em instrumentos de aprendizado cultural e linguístico.

Dessa forma, o futebol criou um campo de circulação simbólica que não depende de governos, mas da memória coletiva construída pela paixão esportiva. O brasileiro que aprende italiano ouvindo as narrações do Calcio dos anos 1990 está, sem perceber, participando de uma rede de geoeconomia cultural, na qual o consumo do esporte gera circulação de capital simbólico, linguístico e identitário.

Conclusão

O futebol brasileiro é mais que um espetáculo: é um instrumento geopolítico de inserção cultural e um ativo geoeconômico de longo prazo. Pela exportação de jogadores e pela difusão das transmissões esportivas, o Brasil projetou sua identidade para além de suas fronteiras, conectando gerações às línguas, culturas e imaginários europeus.

Assim, o futebol se confirma como uma das mais eficazes formas de soft power brasileiro, uma ponte que liga gramados a culturas, gols a línguas, e que transforma memória esportiva em patrimônio cultural transnacional.

Bibliografia

  • Nye, Joseph S. Soft Power: The Means to Success in World Politics. PublicAffairs, 2004.

  • Giulianotti, Richard; Robertson, Roland. Globalization and Football. SAGE Publications, 2009.

  • Lever, Janet; Puig, Núria. Soccer as Symbol: The World Cup and the Politics of Identity. International Review for the Sociology of Sport, 1983.

  • Helal, Ronaldo; Soares, Antônio Jorge. Futebol e cultura: coletânea de estudos. Rio de Janeiro: Mauad, 2002.

  • DaMatta, Roberto. Universo do Futebol: Esporte e Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982.

  • Poli, Raffaele; Ravenel, Loïc; Besson, Roger. Exporting Football Talent: The International Transfer Market. CIES Football Observatory Reports, 2016.

  • Lever, Janet. Soccer Madness: Brazil's Passion for the World’s Most Popular Sport. Waveland Press, 1983.

Robin Hood e São Dimas: Justiça, Moral e Heroísmo

A tradição cristã e a literatura medieval nos oferecem figuras que desafiam a lei e ao mesmo tempo se tornam símbolos de justiça. Dois exemplos notáveis são São Dimas, o “bom ladrão” crucificado ao lado de Jesus, e Robin Hood, lendário fora da lei da Inglaterra medieval. Embora separados por contexto histórico e motivação, ambos representam a tensão entre legalidade e justiça, oferecendo uma reflexão sobre moralidade, heroísmo e redenção.

São Dimas: Redenção e Justiça Espiritual

São Dimas é conhecido como o ladrão arrependido que, crucificado ao lado de Cristo, reconheceu a divindade e justiça do Senhor. Segundo o Evangelho de São Lucas (23:39-43), ele repreendeu o outro ladrão, demonstrando fé e arrependimento, e recebeu a promessa do Paraíso.

A figura de São Dimas simboliza a justiça espiritual e a redenção individual. Seu crime não é celebrado; o que importa é sua transformação moral. Ele nos lembra que a justiça verdadeira não se reduz à lei humana, mas se enraíza na ética, na fé e na possibilidade de reconciliação com o divino.

Robin Hood: Justiça Social e Heroísmo Popular

Robin Hood, por outro lado, surge da Inglaterra medieval como um herói popular que “roubava dos ricos para dar aos pobres”. Diferente de São Dimas, sua motivação não é espiritual, mas social: corrigir desigualdades impostas pela nobreza e pelo governo, desafiando leis injustas em nome de uma moral percebida pelo povo.

Robin Hood encarna a justiça social e o heroísmo coletivo. Ele se torna símbolo de resistência e solidariedade, lembrando que, em certas circunstâncias, a lei pode entrar em conflito com a moralidade e o bem comum. Sua ação é admirada não por arrependimento, mas pelo efeito positivo sobre a comunidade.

Semelhanças e Diferenças

Embora distintos, há pontos de contato entre Robin Hood e São Dimas:

Aspecto São Dimas Robin Hood
Lei Ladrão à margem da lei, mas arrependido Fora da lei, mas combate injustiças sociais
Motivação Arrependimento e fé Justiça social e redistribuição
Justiça Espiritual, transcendental Social, terrena
Reconhecimento Promessa de salvação Apoio popular e admiração
Impacto Individual e moral Coletivo e social

O paralelo entre ambos pode ser visto na forma como a justiça não coincide necessariamente com a lei formal. São Dimas representa a justiça eterna que transcende a legislação humana, enquanto Robin Hood ilustra a justiça terrena, que desafia a legislação para equilibrar desigualdades.

Conclusão

Podemos dizer que Robin Hood é uma versão medieval e social de São Dimas, no sentido de que ambos questionam a lei em nome de um princípio superior de justiça. No entanto, a diferença fundamental é que São Dimas busca redenção pessoal e salvação espiritual, enquanto Robin Hood busca transformação social e reconhecimento popular. Ambos nos convidam a refletir sobre o sentido profundo da justiça: nem sempre a lei protege o bem, e nem sempre o crime é moralmente condenável quando motivado pelo bem maior.

Bibliografia

  1. Bíblia Sagrada, Edição Pastoral, CNBB, 2006. (Lucas 23, 39-43)

  2. Holt, J. C. Robin Hood. London: Thames & Hudson, 1982.

  3. Dobson, R. B., & Taylor, J. Rymes of Robin Hood. Sutton Publishing, 1997.

  4. Brown, Peter. The Body and Society: Men, Women and Sexual Renunciation in Early Christianity. Columbia University Press, 1988.

  5. Knight, Stephen. Robin Hood: A Complete Study of the English Outlaw. Blackwell, 1994.

  6. Crossan, John Dominic. Jesus: A Revolutionary Biography. HarperOne, 1994.

A origem do imposto de renda na Inglaterra: da exceção de guerra à permanência fiscal

O imposto de renda, tal como conhecemos hoje, tem suas raízes na Inglaterra do final do século XVIII. Sua gênese revela um instrumento fiscal inicialmente extraordinário, criado em meio a crises econômicas e militares, que acabaria se consolidando como fonte regular de receita do Estado.

1. Contexto Histórico

No final do século XVIII, a Inglaterra enfrentava a necessidade urgente de financiar suas guerras contra a França revolucionária. O governo britânico precisava de recursos extraordinários, uma vez que os impostos tradicionais sobre consumo, comércio e propriedades não eram suficientes para sustentar os custos militares crescentes.

Foi nesse cenário que, em 1798, o então Primeiro-Ministro William Pitt, o Jovem, instituiu o Income Tax Act, criando o primeiro imposto de renda moderno. Esse imposto incidia sobre rendimentos individuais acima de determinados limiares, com alíquotas progressivas, atingindo principalmente a elite e as classes médias abastadas. A intenção era clara: tratar-se de um tributo extraordinário, temporário, voltado exclusivamente a financiar a guerra contra a França.

2. Natureza Temporária do Tributo

O imposto de renda nasceu, portanto, como medida emergencial. Pitt estabeleceu que ele seria revogado assim que a situação financeira se normalizasse. Ao longo do século XIX, o tributo foi suspenso diversas vezes, sempre que cessavam as crises ou guerras, confirmando sua natureza de exceção e não de regra.

3. Da Emergência à Permanência

Apesar de ser inicialmente extraordinário, o imposto de renda revelou-se eficaz como instrumento de arrecadação direta. A necessidade constante de financiar o Estado, somada à complexidade crescente da economia, evidenciou que depender apenas de tributos indiretos sobre consumo e comércio era insuficiente.

Em 1842, sob o governo de Sir Robert Peel, o imposto de renda foi restabelecido com caráter permanente. Peel reconheceu que, além de financiar emergências, o tributo poderia sustentar investimentos públicos e serviços essenciais, tornando-se pilar da política fiscal do Estado moderno. A regulamentação passou a exigir declaração formal de rendimentos e estabeleceu limites de isenção, consolidando a prática moderna de tributação sobre renda.

4. Paralelo Contemporâneo: CPMF no Brasil

A história do imposto de renda na Inglaterra tem paralelo com a criação de tributos temporários no Brasil, como a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira). Assim como o imposto de Pitt, a CPMF foi criada como um tributo extraordinário, voltado a financiar gastos específicos — no caso, o sistema de saúde e o equilíbrio fiscal. Entretanto, a experiência histórica mostra que tributos temporários podem ganhar vida própria e se tornar parte da estrutura fiscal regular, caso a necessidade do Estado se mantenha.

5. Legado e Conclusão

A trajetória do imposto de renda britânico evidencia que medidas extraordinárias, criadas para enfrentar crises temporárias, podem se tornar instrumentos permanentes de arrecadação pública. Sua eficácia transformou um tributo emergencial em pilar da política fiscal moderna, influenciando sistemas tributários em todo o mundo. A lição é clara: tributos provisórios, quando bem-sucedidos, têm grande potencial de se tornar permanentes, moldando a economia e a sociedade de forma duradoura.

Bibliografia Sugerida

  • Brewer, John. The Sinews of Power: War, Money, and the English State, 1688-1783. London: Unwin Hyman, 1989.

  • Daunton, Martin. Trusting Leviathan: The Politics of Taxation in Britain, 1799-1914. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.

  • O’Brien, Patrick. Fiscal Exceptionalism: Britain and the Development of the Modern Tax System, 1790-1850. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.

  • Pitt, William. Speech on the Income Tax Bill, 1799.

  • Slack, Paul. The English Poor Law, 1531-1782. London: Macmillan, 1988.

1922: O PCB, o Imposto de Renda e a concentração dos bens da vida em poucas mãos, sobretudo nas mãos do Estado

O ano de 1922 foi decisivo para a história política e econômica do Brasil. De um lado, em março, nascia em Niterói o Partido Comunista Brasileiro (PCB), inspirado pela Revolução Russa e pela orientação da Internacional Comunista. De outro, em dezembro, o governo federal instituía pela primeira vez o Imposto de Renda (Lei 4.625/1922), regulamentado dois anos depois. Embora aparentemente distintos, esses dois acontecimentos estão ligados por um mesmo eixo: a questão do poder sobre os bens da vida — quem os produz, quem os usufrui e quem os controla.

O PCB e a centralização política

O PCB foi criado como braço brasileiro da revolução mundial sonhada por Lênin. Sua meta era abolir a propriedade privada e instaurar um regime onde os meios de produção e os frutos do trabalho estivessem concentrados nas mãos do Estado, que se tornaria o administrador supremo da sociedade. Essa lógica partia da convicção de que a desigualdade só poderia ser eliminada pela supressão da iniciativa privada e pela imposição de uma autoridade central.

O imposto de renda e a centralização econômica

Paralelamente, o imposto de renda foi instituído no Brasil com um discurso semelhante ao que se havia utilizado no Reino Unido no século XIX: uma medida temporária e emergencial, voltada à arrecadação para enfrentar crises e modernizar o Estado. No entanto, aquilo que nasceu como exceção tornou-se regra. O novo tributo, longe de ser apenas um mecanismo técnico de arrecadação, representava uma mudança de paradigma: o Estado passava a ter direito legal de usar, gozar e dispor de parte dos bens dos cidadãos.

Com isso, criava-se uma assimetria de poder. O cidadão era forçado a abrir sua vida financeira ao escrutínio estatal, sob ameaça de multas ou criminalização, enquanto o Estado assumia um papel de superioridade absoluta — “tudo no Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado”, como ecoaria décadas depois no fascismo italiano.

A crítica distributista

É nesse ponto que a crítica distributista se torna pertinente. Inspirado por pensadores como G.K. Chesterton e Hilaire Belloc, o distributismo denunciava tanto o capitalismo monopolista, que concentrava os bens da vida em poucas mãos privadas (a oligarquia econômica), quanto o estatismo socialista, que entregava todos os bens ao Estado (a oligarquia política travestida de coletividade).

Chesterton observava:

“O problema do capitalismo não é que haja muitos capitalistas, mas sim poucos capitalistas.” (The Uses of Diversity, 1921)

E ainda:

“A escravidão não desapareceu. Apenas assumiu novas formas; hoje, um homem é escravo do Estado ou do patrão, quando deveria ser senhor de sua pequena propriedade.” (The Outline of Sanity, 1926)

Belloc, por sua vez, advertia em The Servile State (1912):

“Quando a propriedade está concentrada em poucas mãos, surge inevitavelmente uma classe servil, dependente de quem controla os bens da vida.”

Essas palavras revelam como tanto o imposto de renda quanto os sistemas socialistas — cada um a seu modo — colaboravam para reforçar essa condição de dependência. Em vez de promover liberdade, geravam oligarquia, isto é, o domínio de poucos sobre muitos, em oposição à verdadeira aristocracia, que deveria se pautar pelo serviço ao bem comum.

A Doutrina Social da Igreja

As preocupações distributistas encontravam eco na Doutrina Social da Igreja. Já em Rerum Novarum (1891), o Papa Leão XIII defendia a propriedade privada como direito natural, fundamento da liberdade e proteção da família contra a arbitrariedade do Estado e dos monopólios. Ele advertia:

“O Estado não deve absorver o indivíduo ou a família; deve deixá-los livres no gozo de seus direitos.” (RN, §35)

Décadas depois, Pio XI, na encíclica Quadragesimo Anno (1931), denunciaria tanto a concentração capitalista quanto a centralização socialista, afirmando:

“O poder econômico se tornou tremendamente concentrado em poucos, e muitas vezes em detrimento da liberdade individual e do bem comum.” (QA, §105)

E ao condenar tanto o liberalismo absoluto quanto o coletivismo socialista, Pio XI lembrava o princípio de subsidiariedade:

“Assim como não é lícito tirar aos indivíduos o que eles podem realizar por sua própria iniciativa e indústria, para confiá-lo à comunidade, também é injusto passar para uma associação maior e mais elevada o que pode ser feito por sociedades menores e inferiores.” (QA, §79)

Esses ensinamentos mostram que a concentração dos bens da vida — seja na mão de grandes oligopólios privados, seja no Leviatã estatal — é contrária à ordem natural e à justiça social.

O uso histórico do imposto de renda no Brasil

  • Era Vargas (1930–1945): Getúlio Vargas ampliou a estrutura tributária e usou o imposto de renda como instrumento de fortalecimento do Estado Novo. O governo centralizou recursos para financiar a industrialização e, ao mesmo tempo, para manter uma máquina política de controle sobre sindicatos e trabalhadores.

  • Regime Militar (1964–1985): Os militares expandiram a carga tributária, elevando alíquotas e ampliando a base de contribuintes. O imposto de renda foi peça fundamental para financiar grandes obras de infraestrutura e o “milagre econômico”, mas também sustentou um Estado hipertrofiado, que restringia liberdades civis e políticas.

  • Nova República e Constituição de 1988: Embora o regime democrático tenha prometido descentralização, o imposto de renda continuou sendo a principal fonte de arrecadação federal. O pacto federativo deixou estados e municípios dependentes das transferências da União, perpetuando a lógica de concentração: os recursos sobem para Brasília e descem condicionados a interesses políticos e burocráticos.

Esses três exemplos mostram que, em contextos diferentes — ditadura de Vargas, regime militar e democracia recente — o imposto de renda foi invariavelmente um instrumento de centralização estatal.

O paradoxo de 1922

Assim, o Brasil testemunhava em 1922 duas iniciativas convergentes, ainda que vindas de matrizes ideológicas distintas:

  • O PCB, pregando a centralização política e econômica nas mãos do Estado;

  • O Imposto de Renda, instaurando na prática essa centralização tributária e financeira.

Ambos contribuíram para a consolidação de um modelo em que a liberdade individual e a propriedade privada ficavam subordinadas a uma lógica de controle superior.

Atualidade: o PL 4329/2025

Mais de um século depois, surge o Projeto de Lei 4329/2025, da deputada Júlia Zanatta (PL/SC), propondo a extinção do imposto de renda no Brasil. Sua justificativa ecoa, ainda que em linguagem política contemporânea, os mesmos princípios distributistas e da Doutrina Social da Igreja: a defesa da liberdade econômica, a crítica à espoliação do trabalhador e a busca de um modelo tributário menos invasivo, que não concentre poder nas mãos do Estado.

Ainda que seja um projeto de tramitação difícil, pois o imposto de renda é uma das maiores fontes de arrecadação da União, sua proposta recoloca em debate a mesma questão de 1922: quem deve deter o poder sobre os frutos do trabalho humano — o Estado, os monopólios ou a própria pessoa que trabalha?

Conclusão

O distributismo, em sintonia com a Doutrina Social da Igreja, propunha uma via de desconcentração dos bens da vida, estimulando a pequena propriedade, a autonomia das famílias e a solidariedade comunitária. Sua crítica permanece atual: quando os frutos do trabalho são sugados por oligarquias — sejam elas privadas ou estatais — a dignidade humana é ferida e a liberdade, comprometida.

O marco de 1922 nos lembra que a luta contra a concentração de poder, seja pela via revolucionária ou pela via tributária, é parte essencial da busca por uma sociedade mais justa, onde os bens da vida estejam de fato distribuídos de maneira ampla e ordenada ao bem comum.

Bibliografia

  • BELLOC, Hilaire. The Servile State. London: T.N. Foulis, 1912.

  • CHESTERTON, G.K. The Uses of Diversity. London: Methuen, 1921.

  • CHESTERTON, G.K. The Outline of Sanity. London: Methuen, 1926.

  • LEÃO XIII, Papa. Rerum Novarum. Roma, 1891.

  • PIO XI, Papa. Quadragesimo Anno. Roma, 1931.

  • FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2019.

  • CARONE, Edgar. O PCB (1922–1943): o nascimento de um partido. São Paulo: Difel, 1982.

  • IANNI, Octavio. Estado e Planejamento Econômico no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.

  • ZANATTA, Júlia. Projeto de Lei nº 4329/2025. Câmara dos Deputados, Brasília, 2025.

A proteção jurídica da voz de Íris Lettieri: entre o direito autoral e o direito da personalidade

O falecimento de Íris Lettieri Costa em 28 de agosto de 2025 encerrou a trajetória daquela que ficou conhecida como “a voz do Aeroporto do Galeão”. Sua locução, marcada pela suavidade e clareza, acompanhou gerações de passageiros em diferentes aeroportos brasileiros, tornando-se parte da memória afetiva coletiva. No entanto, sua morte também suscita um debate jurídico relevante: qual é o destino dos direitos sobre sua voz?

1. Voz como obra interpretativa e proteção autoral

A voz gravada de Íris Lettieri não é apenas um registro mecânico de sons, mas uma interpretação artística, enquadrada nos direitos conexos ao direito autoral. Nos termos da Lei nº 9.610/1998 (Lei de Direitos Autorais – LDA), os artistas intérpretes ou executantes têm garantidos direitos sobre suas interpretações, inclusive de autorizar ou proibir sua utilização.

No Brasil, essa proteção se estende por 70 anos, contados a partir de 1º de janeiro do ano subsequente ao falecimento do intérprete (art. 41, LDA). Assim, como Íris Lettieri faleceu em 28/08/2025, a proteção de sua voz perdurará até 01/01/2096.

Isso significa que qualquer uso de suas gravações — seja em anúncios sonoros de aeroportos, seja em composições musicais ou recriações digitais — depende de autorização de seus herdeiros ou sucessores.

2. A dimensão da personalidade: voz como identidade pessoal

A proteção da voz vai além da esfera patrimonial. Ela é reconhecida também como parte da identidade e da personalidade do indivíduo. O Código Civil brasileiro (art. 20) estabelece que a utilização não autorizada da imagem ou voz de alguém pode ensejar reparação civil, sobretudo se houver exploração econômica ou ofensa à memória do falecido.

Nesse sentido, a voz de Íris Lettieri não se limita a ser “um som registrado”, mas um traço único de sua individualidade, carregado de valor simbólico. O uso indevido da sua identidade vocal, mesmo após sua morte, pode ser contestado por seus familiares.

3. Traduções, Clonagem de Voz e Inteligência Artificial

Um ponto de destaque na contemporaneidade é a questão da clonagem de voz por inteligência artificial. Tecnicamente, seria possível recriar a voz de Íris Lettieri para fazer anúncios em outros idiomas ou para novos contextos. Contudo, tal prática sem autorização dos detentores dos direitos violaria tanto a LDA quanto o direito da personalidade.

Assim, até 01/01/2096, nenhuma reprodução, clonagem ou adaptação de sua voz poderá ser feita sem autorização. Após esse prazo, as gravações cairão em domínio público, mas ainda assim restará o debate ético sobre a conveniência e o respeito à memória da locutora.

4. O caráter afetivo e cultural da voz

Mais do que um aspecto jurídico, a voz de Íris Lettieri tem dimensão cultural e afetiva. Milhares de brasileiros e estrangeiros identificavam o Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro/Galeão–Tom Jobim com sua voz. A perda, portanto, não é apenas de um bem imaterial, mas de um símbolo sonoro do Brasil.

A preservação e respeito a esse legado exigem equilíbrio entre o direito de exploração patrimonial e o cuidado com a memória coletiva.

Conclusão

A voz de Íris Lettieri permanecerá juridicamente protegida até 2096, tanto pelo direito autoral conexo quanto pelo direito da personalidade. Seu uso em qualquer formato — seja em português, seja em outros idiomas, seja por meio de inteligência artificial — depende de autorização expressa dos herdeiros.

Esse caso ilustra como a proteção jurídica da voz ultrapassa o campo técnico do direito autoral, alcançando a esfera da dignidade, da memória e da identidade de quem marcou gerações não apenas pelo que disse, mas por como disse.

Bibliografia

  • BRASIL. Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre os direitos autorais e dá outras providências.

  • BRASIL. Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002).

  • BITTAR, Carlos Alberto. Direito de Autor. 6ª ed. São Paulo: Forense, 2018.

  • ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Autoral. 4ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2019.

  • GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil – Direitos da Personalidade. São Paulo: Saraiva, 2021.

  • Site da ABI – Associação Brasileira de Imprensa. “Íris Lettieri, locutora que deu voz ao aeroporto internacional do Rio por quatro décadas, morre aos 84 anos”. Disponível em: https://www.abi.org.br

A evolução da proteção de direitos autorais no Japão: do espírito de Dejima à modernidade

Historicamente, o Japão adotou uma abordagem distinta em relação aos direitos autorais, refletindo fatores culturais, econômicos e legais que diferiam profundamente do modelo ocidental. Até o início do século XXI, o país não fazia uma distinção rigorosa entre obras artísticas e invenções industriais, tratando a propriedade intelectual de maneira pragmática e de curta duração.

Essa perspectiva remonta à era de Dejima, quando o Japão mantinha um controle restrito sobre o comércio internacional, permitindo a circulação limitada de ideias e produtos estrangeiros. Mesmo após a assinatura da Convenção de Berna em 1899, que visava harmonizar a proteção de direitos autorais internacionalmente, o Japão aderiu com reservas significativas. Tais reservas incluíam prazos de proteção mais curtos, especialmente para obras estrangeiras, criando um ambiente em que criações intelectuais ocidentais podiam ser copiadas com relativa facilidade.

Essa diferença normativa teve implicações culturais e econômicas. Enquanto no Ocidente a legislação reconhecia claramente a distinção entre obras criativas e patentes industriais, garantindo proteção prolongada e rígida, no Japão tradicional a prioridade era a utilidade prática e o desenvolvimento econômico, não o reconhecimento prolongado da autoria. Esse modelo de proteção limitada favoreceu a difusão rápida de produtos culturais, mas restringiu os direitos dos criadores em termos internacionais.

A mudança significativa ocorreu entre 2018 e 2019, quando pressões de grandes corporações tecnológicas e culturais, como Sony e Nintendo, impulsionaram reformas legais. Essas empresas, que baseavam parte de seu sucesso em produtos eletrônicos associados a criações artísticas originais, demandaram um alinhamento com os padrões internacionais de proteção. Como resultado, o Japão atualizou sua legislação para garantir proteção autoral de 70 anos após a morte do autor, equiparando-se às práticas da Europa e dos Estados Unidos.

Essa evolução demonstra a transição do “espírito de Dejima” — caracterizado por pragmatismo econômico e adaptação seletiva — para uma realidade jurídica moderna, compatível com os padrões globais de propriedade intelectual. Hoje, o Japão não apenas protege seus criadores locais de forma mais rigorosa, mas também cumpre normas internacionais, garantindo que obras intelectuais ocidentais recebam a mesma proteção que em seus países de origem.

Em síntese, a trajetória da legislação japonesa de direitos autorais reflete a tensão histórica entre tradição cultural, interesses econômicos e integração global, culminando em um sistema contemporâneo que valoriza a autoria, incentiva a inovação e harmoniza o Japão com o padrão internacional.

Bibliografia

  • Koepfle, Leo. Copyright Protection Throughout the World Part VII Near East, Far East, Africa, Asia, Surinam and Curacao. US Department of Commerce, January 1937.

  • Nakajima, K. Copyright in Japan, Past and Present. ProQuest, 1956.

  • Hartmann, M. "Towards a global copyright law: Japan's involvement in the Berne Convention." Journal of International Economic Law, 2020.

  • Japan Patent Office. "Outline of the Japanese Copyright Law." https://www.jpo.go.jp/e/system/laws/