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sexta-feira, 21 de março de 2025

Conversa imaginada entre Gustavo Corção e D. Karol Wojtyła (Papa São João Paulo II)

Cenário: Uma sala de estudos repleta de livros. À mesa, dois homens conversam intensamente. De um lado, Gustavo Corção, escritor brasileiro e autor de A Descoberta do Outro. Do outro, D. Karol Wojtyła, filósofo e futuro Papa João Paulo II, autor de Osoba i Czyń (Pessoa e Ato). A discussão gira em torno da natureza do ser humano, do companheirismo e da transcendência do ato humano.

Gustavo Corção:
 Cardeal Wojtyła, sua obra me impressiona profundamente. Em Pessoa e Ato, o senhor defende que a pessoa se realiza no agir, que o ato humano não é um acidente, mas uma manifestação do ser. Isso me faz lembrar de minha própria inquietação: como o homem descobre o outro? Como ele rompe a bolha do egoísmo para verdadeiramente encontrar seu semelhante?

Karol Wojtyła:
Professor Corção, sua pergunta toca no centro da antropologia cristã. O homem se realiza no encontro com o outro, pois não fomos criados para o isolamento, mas para a comunhão. O conceito de towarzyszyć, em polonês, significa mais do que apenas estar ao lado; significa partilhar a vida, dividir o pão, seja o cotidiano, seja o Pão Eucarístico. O companheiro, o towarzyszem, é aquele que, no ato de estar presente, revela a verdade da pessoa.

Gustavo Corção:
Interessante! Em meu livro A Descoberta do Outro, analiso exatamente essa transição: o homem que se fecha em si mesmo vive na ilusão do eu absoluto, mas é ao reconhecer o outro que ele se humaniza. A conversão do homem se dá, em grande parte, nessa descoberta. No entanto, vejo que muitos reduzem essa relação a um mero convívio material, sem perceber a dimensão espiritual que ela carrega.

Karol Wojtyła:
Sim, e essa é uma redução perigosa. O ato de estar com o outro não pode ser apenas utilitário. O que diferencia a companhia verdadeira da mera coexistência é a presença da verdade e do amor. A pessoa se define na sua relação com Deus e com o próximo. Cristo nos ensinou que amar o outro significa também sacrificarmo-nos por ele. A partilha do pão é, ao mesmo tempo, um ato físico e transcendente.

Gustavo Corção:
E aqui encontramos o problema do mundo moderno! A dissolução das relações humanas em interesses, em uma busca pelo prazer ou pela segurança material. Quando eu escrevi A Descoberta do Outro, quis mostrar que sem o amor – o verdadeiro amor, que é sacrifício – não há encontro real entre as pessoas. Mas o que o senhor diria para aqueles que se fecham, por medo ou por orgulho, ao encontro com o outro?

Karol Wojtyła:
Eu lhes diria que sua liberdade está incompleta. O homem que se fecha no egoísmo não se realiza plenamente, pois foi criado para o dom de si. É na entrega ao outro que a pessoa descobre sua verdadeira identidade. Veja Cristo: Ele não apenas esteve entre nós, mas se entregou completamente por nós. O amor verdadeiro exige esse doar-se, esse agere sequitur esse – o agir que decorre do ser.

Gustavo Corção:
Sim! E esse é o ponto que une nossas reflexões. A descoberta do outro não é apenas uma questão de percepção, mas de ação. Quem se entrega, quem ama, torna-se verdadeiramente humano.

Karol Wojtyła:
Exatamente, professor Corção. E, em última instância, essa descoberta nos leva a Cristo, pois Ele é o Outro supremo que nos interpela, que nos chama à conversão e ao amor sem reservas.

(Os dois fazem um breve silêncio, como quem contempla uma verdade que transcende as palavras.)

Gustavo Corção:
 Cardeal Wojtyła, vejo que, apesar de falarmos línguas diferentes, compartilhamos a mesma convicção: o homem se encontra na entrega ao outro. No fundo, toda amizade verdadeira, toda companhia autêntica, é uma participação no mistério da caridade divina.

Karol Wojtyła:
Sim, professor. E essa é a verdadeira towarzyszenie, a companhia que salva. A relação entre as pessoas deve ser vista não apenas como um meio de interação social, mas como um caminho para a santidade. Cada encontro humano pode ser uma participação na comunhão que Deus deseja para nós. A descoberta do outro não se dá apenas na esfera da consciência, mas na abertura do coração à verdade do outro, que, por sua vez, nos remete à Verdade absoluta.

Gustavo Corção:
Sim, e veja como isso se relaciona com a crise do mundo moderno! A cultura contemporânea reduz as relações humanas a meras transações, onde o próximo se torna um instrumento para os próprios interesses. Mas esse reducionismo leva ao vazio, pois, sem o reconhecimento do outro como um fim em si mesmo, não há amor, não há sentido, e não há sequer verdadeira felicidade.

Karol Wojtyła:
E isso ocorre porque o homem moderno esqueceu sua identidade espiritual. A crise do individualismo exacerbado reflete um problema mais profundo: a perda da noção de que fomos criados à imagem e semelhança de Deus. O isolamento não é apenas um fenômeno social, mas uma consequência da ruptura entre o homem e seu Criador. Quando se perde o referencial divino, o outro deixa de ser um irmão e passa a ser um concorrente, um estranho ou, pior, um obstáculo.

Gustavo Corção:
Perfeito, eminência. O egoísmo e o materialismo caminham juntos nesse processo. Por isso, em A Descoberta do Outro, eu enfatizo que não basta reconhecer a existência do próximo; é preciso amá-lo. E amar exige sacrifício. A relação verdadeira não se sustenta apenas na simpatia ou no interesse momentâneo, mas na decisão de se doar. Creio que sua obra Pessoa e Ato explora isso ao demonstrar que o homem não pode ser reduzido a impulsos psicológicos ou a condicionamentos sociais.

Karol Wojtyła:
Exatamente. O ato humano é a expressão concreta do ser humano como pessoa. Ele não é determinado por forças externas, mas realizado por meio da liberdade. E a liberdade só encontra seu verdadeiro significado no amor. Veja como isso se reflete no que chamamos de towarzyszyć, a companhia que não é uma simples presença, mas um caminhar junto, uma partilha real da vida e do destino. E quando essa companhia é iluminada pelo amor de Cristo, ela se transforma em vocação.

Gustavo Corção:
Isso me lembra uma passagem de minha própria vida. Quando finalmente compreendi a fé católica em sua plenitude, percebi que minha conversão não poderia ser apenas intelectual, mas existencial. Descobrir o outro significava descobrir a mim mesmo à luz de Deus. É curioso como a jornada pessoal de cada um de nós revela essa verdade. O senhor também experimentou isso, padre Wojtyła?

Karol Wojtyła:
Sem dúvida. Minha vocação nasceu no sofrimento e na busca pela verdade. Durante os anos de ocupação nazista na Polônia, vi minha pátria sofrer, vi homens se fechando em desespero, mas também vi outros se abrindo ao sacrifício pelo próximo. Aprendi que o verdadeiro sentido da liberdade não está na ausência de restrições, mas na disposição para amar, mesmo em meio ao sofrimento. E isso só se torna possível quando a pessoa compreende que sua existência não é solitária, mas relacional.

Gustavo Corção:
Que testemunho impressionante! O sofrimento, quando vivido com sentido, nos ensina muito. Ele nos purifica do egoísmo e nos lembra que não fomos feitos para a autossuficiência, mas para a comunhão. E aqui voltamos ao que discutimos: o homem só se descobre verdadeiramente quando se abre ao outro. Mas vejo que há um desafio em tudo isso, padre Wojtyła. Como convencer aqueles que vivem fechados no materialismo de que esse caminho é real?

Karol Wojtyła:
O testemunho da vida é o argumento mais forte. O homem pode rejeitar um discurso, mas não pode ignorar o impacto de um ato autêntico de amor. Foi assim que os primeiros cristãos converteram o mundo: não apenas com palavras, mas com o testemunho de sua entrega e caridade. Hoje, mais do que nunca, precisamos ser sinais vivos dessa verdade.

Gustavo Corção:
Sim… e isso me faz pensar que a nossa missão, como escritores e pensadores católicos, é justamente essa: oferecer ao mundo uma visão mais elevada do homem, uma visão que o resgate de sua própria prisão interior. Nossa escrita deve ser um eco da Verdade.

Karol Wojtyła:
Exatamente, professor Corção. Pois, ao fim de tudo, é o Logos que ilumina as trevas. O homem precisa reencontrar seu caminho, e esse caminho passa necessariamente pela descoberta do outro – e, no outro, a face de Cristo.

(Os dois se entreolham, compreendendo que partilham não apenas um diálogo intelectual, mas uma vocação comum: conduzir os homens à verdade do amor cristão. Do lado de fora, a luz da tarde se filtra pela janela, como se confirmasse silenciosamente as palavras que acabaram de ser ditas.)

Gustavo Corção:
E veja, Cardeal Wojtyła, como essa descoberta do outro exige de nós um movimento interior. Não basta reconhecer a presença do próximo de forma passiva; é preciso um ato consciente, uma abertura da alma que nos permite enxergá-lo na plenitude do seu ser. O que me preocupa, e imagino que o senhor compartilhe dessa inquietação, é que o mundo moderno tem incentivado o oposto: o fechamento, o isolamento, a cultura do descarte.

Karol Wojtyła:
Sim, professor Corção. A cultura do individualismo, que se apresenta como liberdade, na verdade aprisiona. O homem moderno, ao rejeitar a comunhão, julga-se autossuficiente, mas acaba condenado à solidão. E a solidão, quando não escolhida como ascese, é uma forma de miséria espiritual. Por isso, a verdadeira liberdade não se encontra na rejeição do outro, mas na decisão de amá-lo. E essa decisão é um ato da vontade que só pode ser sustentado pela graça.

Gustavo Corção:
E como oferecer essa graça a um mundo que a rejeita? Como mostrar ao homem contemporâneo que sua inquietação e seu vazio são, na verdade, um chamado para algo maior?

Karol Wojtyła:
Penso que a resposta está no testemunho vivo. Como já dissemos, a palavra pode ser rejeitada, mas a autenticidade do amor não pode ser ignorada. É preciso que os cristãos vivam de tal maneira que sua vida seja, por si só, um convite. E mais do que isso: precisamos resgatar o sentido do sacrifício. Em Pessoa e Ato, procuro mostrar que o homem se realiza na doação, que a experiência do amor verdadeiro exige renúncia. Sem isso, toda relação se degrada em utilitarismo.

Gustavo Corção:
Essa palavra, utilitarismo, é central para entender nossa época. O outro não é mais visto como uma pessoa, mas como um meio. O amor, reduzido a prazer; a amizade, a conveniência; o trabalho, a um instrumento de ganho. E quando as coisas deixam de ser úteis, são descartadas. O que nos resta, então? Uma sociedade fragmentada, em que cada um se sente ilhado em seu próprio egoísmo.

Karol Wojtyła:
E essa fragmentação não é apenas social, mas interior. O homem que vive para si mesmo perde sua unidade, pois se torna escravo de suas paixões e instintos. Ele se desintegra, perde o sentido do que significa ser pessoa. O que devemos resgatar, professor Corção, é a visão do homem como ser relacional, chamado à comunhão. E aqui entra um ponto fundamental: a Eucaristia.

Gustavo Corção:
A Eucaristia! Eis o centro de tudo. Se o homem redescobrisse o sentido da Eucaristia, ele redescobriria também a si mesmo. Porque na Eucaristia aprendemos que a verdadeira vida é a vida entregue, o pão partido e compartilhado. Não é acaso que a própria etimologia de companheiro nos remete à ideia de partilha do pão.

Karol Wojtyła:
Exato! Em polonês, towarzyszyć significa acompanhar, estar junto. E essa companhia verdadeira se dá plenamente no Corpo de Cristo. Por isso, a Eucaristia não é apenas um rito, mas a realidade mais profunda da existência cristã. Nela, aprendemos a ser para o outro, a nos doar sem reservas. Quem compreende a Eucaristia, compreende a própria vocação humana.

Gustavo Corção:
E talvez essa seja a resposta para nossa pergunta anterior: como alcançar o homem moderno? A resposta está no altar. O homem perdido em sua solidão só reencontrará seu caminho quando voltar-se para Cristo. É ali, na humildade de um pedaço de pão consagrado, que ele poderá reencontrar sua dignidade e seu destino eterno.

Karol Wojtyła:
Sim, e cabe a nós sermos instrumentos para esse reencontro. Nossa missão não é apenas denunciar os erros do mundo, mas oferecer uma alternativa. Devemos mostrar, por meio de nossa vida e de nosso trabalho, que há um caminho melhor, um caminho que leva à verdadeira liberdade e felicidade.

Gustavo Corção:
E essa é a grande descoberta do outro, não é? No final das contas, só descobrimos o outro plenamente quando o vemos em Cristo. E só nos descobrimos plenamente quando nos enxergamos com os olhos d’Ele.

Karol Wojtyła:
Assim como os discípulos de Emaús, que só reconheceram o Senhor ao partir do pão.

(Os dois sorriem, compreendendo que chegaram ao centro da questão. O diálogo continua, mas agora em silêncio, numa oração comum. Lá fora, a luz do entardecer se suaviza, como se a própria criação participasse daquele instante de comunhão.)

(O silêncio que se instaurou entre os dois não era um silêncio de fim, mas de plenitude. Por alguns instantes, nada precisava ser dito. Ambos contemplavam, cada um à sua maneira, a grandeza da verdade que acabavam de reafirmar. Mas então, Corção rompeu o silêncio, não para questionar, mas para aprofundar.)

Gustavo Corção:
 Cardeal Wojtyła, o que o senhor diz me faz pensar que toda verdadeira amizade deve ser eucarística. Isto é, toda amizade autêntica exige essa partilha, essa doação. Mas não é exatamente esse o ponto em que mais falhamos? Quantos laços humanos se rompem porque um não quer doar-se ao outro?

Karol Wojtyła:
Sim, professor Corção. A amizade verdadeira exige sacrifício. Em Pessoa e Ato, exploro como o amor autêntico não pode ser reduzido a mero sentimento, pois o sentimento é instável e passageiro. O amor verdadeiro é um compromisso com a pessoa do outro, não apenas com as emoções que ele nos desperta. E esse compromisso implica cruz, implica renúncia.

Gustavo Corção:
Isso me leva a outra reflexão. Se o amor autêntico é um ato de vontade e não uma simples emoção, então podemos dizer que a cultura moderna, ao enfatizar o sentimentalismo, destrói a própria possibilidade do amor. Se tudo se resume ao que se sente no momento, como pode alguém perseverar na doação?

Karol Wojtyła:
Exatamente. O sentimentalismo moderno mina o amor ao torná-lo escravo do prazer momentâneo. Ora, o verdadeiro amor deve resistir ao tempo, às provações, às dores. Veja o matrimônio: quantos casamentos desmoronam porque foram construídos sobre a areia do mero sentimento? Um amor que não se alicerça na verdade e na entrega está fadado à ruína.

Gustavo Corção:
E o mesmo vale para a amizade. Amigos de verdade não são aqueles que apenas compartilham momentos agradáveis, mas aqueles que permanecem fiéis mesmo quando o outro se torna um peso, um fardo. Isso me lembra a ideia do towarzyszyć, do estar junto.

Karol Wojtyła:
Sim! Veja que belo é esse conceito polonês. Estar junto não significa apenas desfrutar da companhia do outro em momentos felizes, mas acompanhá-lo mesmo na dor. É por isso que Cristo é o nosso maior companheiro: Ele caminha conosco, carrega nossos fardos, nunca nos abandona.

Gustavo Corção:
E aqui está a verdadeira resposta para a crise do homem moderno: ele não precisa apenas de novas teorias ou de melhores condições materiais. Ele precisa redescobrir a verdadeira amizade, e isso só pode acontecer quando ele redescobre Deus.

Karol Wojtyła:
Perfeitamente. O homem moderno clama por amor, mas rejeita o único amor que pode sustentá-lo. Ele quer ser amado, mas não quer amar. Quer ser acolhido, mas não quer acolher. Esse é o grande dilema da nossa época: uma humanidade que se sente sozinha porque se recusa a se entregar.

Gustavo Corção:
Então, eminência, a nossa missão, como escritores, como pensadores, como cristãos, é testemunhar essa verdade. Mostrar que não há vida sem sacrifício, que não há amor sem entrega. E, acima de tudo, que não há felicidade sem Cristo.

Karol Wojtyła:
Sim, e esse testemunho começa em nós. Que nossas palavras não sejam apenas belas reflexões, mas expressões de uma vida verdadeiramente oferecida a Deus e ao próximo. Somente assim nossa mensagem terá autoridade.

(Os dois se entreolham, sabendo que cada um, a seu modo, tem uma grande missão pela frente. E, como que confirmando tudo o que foi dito, voltam-se em silêncio para a oração. Porque, no fim das contas, todo verdadeiro diálogo deve culminar na comunhão com Aquele que é a própria Verdade.)

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