O presidente eleito Donald Trump ameaçou retaliar os países do BRICS com uma tarifa alfandegária de 100% caso eles tentem substituir o dólar com a nova moeda única do bloco ou outra moeda qualquer. É claro que essa notícia repercutiu muito por toda a internet, especialmente no Brasil, porque foi a primeira ameaça direta ao nosso país. A razão disso é porque o presidente Lula é um dos grandes apoiadores da idéia de uma moeda comum para o BRICS, já que ele também defende a ideia de suplantar o dólar americano no comércio global.
Este episódio diz muito sobre a ordem monetária do momento e sobre as prioridades do governo Trump. Embora seja altamente improvável a criação de uma nova moeda para o BRICS, ou a mera tentativa do bloco de destronar o dólar como uma moeda de reserva mundial, é preciso tirar lições do que está acontecendo porque é um momento macroeconômico importante, pois o dólar como padrão internacional de valor começou a ser questionado e desafiado. E eu começo logo pelo tweet do Trump que foi no sábado dia 30 de novembro e que pegou todo mundo de surpresa. É preciso até lê-lo na íntegra - eu faço isso agora
"A idéia de que os países do BRICS estão tentando se afastar do dólar enquanto nós ficamos parados observando acabou. Exigimos o compromisso desses países de que eles não criarão uma nova moeda para o BRICS nem apoiarão qualquer outra moeda para substituir o poderoso dólar americano - ou enfrentarão tarifas de 100% e deverão dizer adeus às vendas para a maravilhosa economia dos Estados Unidos. Caso façam isto, que eles procurem outro otário. Não há nenhuma chance de os BRICS substituírem o dólar americano no comércio internacional e qualquer país que fizer isto deve dizer adeus aos Estados Unidos".
Esta não foi uma ameaça apenas aos países do BRICS - ela se destinou a todos que se aventurem nessa ideia de se desvencilhar do dólar americano e buscar outra moeda de reserva mundial. Eis as tarifas, mais uma vez, sendo usadas como big stick, como ferramenta de barganha do governo Trump.
É possível esta notícia tenha influenciado no preço do dólar, pois várias moedas se desvalorizaram em relação ao dólar. O índice do dólar subiu bastante - o yuan chinês chegou hoje no nível de 7,27, com quase 0,5% de alta. Este é um momento também delicado das taxas de câmbio entre esses países - se pararmos pra pensar, a verdade por trás da moeda do BRICS é a tentativa de internacionalização do yuan chinês - e essa moeda é que vai competir com o dólar de modo a substitui-la no comércio internacional. Por essa razão, é mais provável que ela incentive ou force os seus principais parceiros comerciais a usar o yuan, o que já está acontecendo, do que criar uma nova moeda.
Só que a China tem um grande problema: o que impede o yuan de se tornar uma moeda concorrente ao dólar é que ele não é plenamente conversível. A China continua com seu mercado fechado - enquanto ela não abrir as fronteiras financeiras, é muito difícil o yuan se internacionalizar. E se ela o fizer, e esse é o grande problema, o yuan chinês tem uma tendência de se desvalorizar e muito. E aí que neste ponto que a moeda dos BRICS.
É preciso demonstrar não só a improbabilidade da criação da moeda única do bloco mas também recapitular algumas estatísticas que evidenciam a força e a dominância do dólar americano no mundo, no comércio e nas reservas. Primeiro é que o dólar é usado no financiamento do comércio em 83% das transações comerciais - ou seja, ele ainda é muito demandado. O segundo colocado, que acabou de passar o euro, é o yuan chinês, com quase 5,8%, e o euro com 5,64%, e lá atrás vem o iene e depois até que o rial da Arábia Saudita.
Se nós olharmos pela ótica das reservas internacionais, que são aqueles investimentos que os países mantêm como colchão de liquidez ou como reservas estratégicas para o comércio global e para fazer frente às entradas e saídas de capitais das suas fronteiras, o dólar permanece como o grande líder, comquase 60% das reservas. Sua dominância tem caído, é verdade, mas ainda é o principal, lá atrás o euro e mais abaixo ainda o iene japonês e depois o yuan chinês, enquanto os demais países estão muito atrás.
E tem uma estatística que eu já mostrei para vocês algumas vezes, que vale a pena também atualizar, que é o monitoramento que faz o SWIFT, o sistema de transmissão de mensagens no tocante às transferências entre bancos internacionais, que mostra também o yuan chinês, que continua na quinta posição. Esse foi o dado atualizado em outubro deste ano, o dólar na liderança 47%, euro 23%, depois a libra esterlina, depois o iene japonês e aí vem o yuan chinês. E sendo que nos últimos cinco anos o yuan tem conseguido ganhar muito espaço, está praticamente estagnado sempre na quinta posição, conseguiu subir de forma consistente no final do ano passado até o meio deste ano e ficou na quarta posição, mas voltou a cair agora para a quinta posição, então não consegue se firmar como a principal moeda depois do dólar.
Ainda está na quinta posição no percentual de pagamentos globais, pois é isso que monitora essa estatística do SWIFT. Mas muitos dizem que a China está desovando os dólares, assim como outros países. Na margem, sim, está havendo uma diversificação das reservas, especialmente para o ouro, mas ainda assim a China mantém um nível enorme de reservas internacionais, assim como o Brasil.
Aqui a China ainda está com mais de 3 trilhões de dólares de reservas no total, sendo que a principal parte dessa reserva é composta de dólares americanos. Essa reserva tem caído, ma,s ainda assim ,é a parte mais relevante. O Brasil, com quase 372 bilhões de dólares, continua com um nível relevante de suas reservas em dólar, pois mais de 80% da reserva está composta de dólares, uma vez que não há no momento uma busca real de uma nova moeda para compor a reserva cambial, até porque o governo brasileiro não fez a desova desses dólares. Esta não é uma prática tão simples de se fazer porque os demais países com os quais a China comercializa, e o Brasil também, ainda exigem pagamento em dólares, e estes não vão simplesmente aceitar os termos da China.
Por mais que ela seja o principal parceiro comercial da maior parte dos países, ainda assim eles têm muito receio de aceitar o Yuan como a moeda no comércio, e mais ainda como uma moeda relevante nas suas reservas internacionais. E o outro dado muito importante que muita gente esquece é que a maior parte das dívidas no planeta está denominada em dólares, e dívidas fora dos Estados Unidos, é o chamado offshore dollar ou euro-dollar, que são dívidas emitidas fora das fronteiras dos Estados Unidos para outros países, ainda assim é o dólar a principal moeda e que tem ampliado a sua vantagem em relação ao segundo colocado, que é o euro. Aqui temos do dólar, de 2000 até o momento, que está em mais de 13 trilhões, é o total de dívidas no offshore dollar, saiu de pouco mais de 2 trilhões lá em 2000 e agora 13 trilhões.
Quando a gente analisa a situação do euro, vamos mostrar que o pico que tinha sido no ciclo anterior foi 2,3 trilhões de euros, e agora, 2024, segundo trimestre, atingiu 4,2 trilhões de euros. Parece que cresceu muito junto com o dólar, porém se nós fizermos o ajuste pela taxa de câmbio, lá em 2008 o euro valia muito mais, era 1,5 em relação ao dólar, agora está quase na paridade 1 para 1,07. Isso significa que, de 2008 até agora, as dívidas denominadas em euro fora da União Europeia aumentaram apenas 30%, e em dólar, o offshore dollar, aumentou mais de 120%, e isso também significa que em qualquer cenário de crise, de algum problema maior, de crise de liquidez, crash nos mercados, o dólar será a moeda que todo mundo irá se refugiar e demandar até mesmo para repagar essas dívidas. Quanto mais o mundo se endivida em dólares, maior a demanda por dólares em momentos de crise financeira, e é isso que ajuda a perpetuar o padrão monetário baseado no dólar. Isso não é o único fator, mas é um dos mais importantes.
O que essa ameaça do Trump evidencia é que a manutenção do dólar como moeda de reserva mundial é uma das prioridades do governo Trump a partir de agora, e isso pode ser visto através de seus pronunciamentos, declarações e entrevistas ao Scott Besant, que é o seu secretário de tesouro - ele também defende até mesmo o uso das tarifas alfandegárias como big stick, de modo que os Estados consigam proteger os seus interesses.
Ele não defende o uso da imposição da tarifas como um grande porrete, defende que as negociações feitas sob a mira de uma pistola - e o não cumprimento desse acordo já seria o gatilho necessário para a aplicação das sanções econômicas - e uma delas são as tarifas, o big stick moderno, tal como dito numa entrevista que foi dada ao Wall Street Journal. Estas medidas devem ser usadas como mecanismos de legítima defesa, pois estamos num novo tempo de Guerra Fria.
Como vimos, o próprio Brasil foi posto no rol dos países ameaçados por guerras tarifárias. Agora temos a China, temos a União Europeia, temos o Canadá, temos o México, os países do BRICS, o Brasil - todos eles ameaçados de tarifas pelo governo Trump - o que diz muito sobre a nossa ordem monetária, porque Trump e seus principais aliados querem preservar o padrão dólar, porque sabem muito bem do grande privilégio e as vantagens que isso traz para os Estados Unidos.
O problema é que, no curto prazo, essas ameaças, essas políticas, até podem dissuadir alguns países de tentar usar outras moedas e substituir o dólar, mas a mais longo prazo é inevitável que os países busquem diversificar suas reservas e busquem formas alternativas. É claro que o grande gatilho para essa nova busca por proteção além do dólar foi o início da guerra na Ucrânia, depois das sanções financeiras, especialmente depois do congelamento de reservas.
Só que essas ameaças do Trump não devem mudar esse estado de coisas no longo prazo. Por isso que, no fim das contas, esse tipo de política e ameaça do Trump é sim um tiro no pé nos Estados Unidos e na ideia do padrão internacional de valor lastreado no dólar americano. E o secretário do Tesouro indicado pelo Trump compartilha dessas mesmas preocupações, tanto é que ele deu no início de outubro falando sobre como fazer o sistema econômico internacional relevante novamente. E uma das prioridades do governo Trumpo é justamente a manutenção do dólar como uma moeda de reserva cambial.
Fernando Ulrich
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