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segunda-feira, 13 de outubro de 2025

A morte e o perdão das dívidas: o limite natural do direito e a superioridade moral do civil law sobre o sistema de falência americano, fundado no common law

 Há um ponto de profunda sabedoria no Direito Civil brasileiro que passa quase despercebido: a morte como causa natural de extinção das obrigações pessoais. À primeira vista, parece apenas uma regra técnica. Mas, sob o olhar filosófico, revela-se um princípio de justiça que transcende os códigos: a vida encerra seus próprios débitos, e ninguém pode ser cobrado além de seus limites existenciais.

1. O princípio civilista da extinção natural da obrigação

O artigo 6º do Código Civil brasileiro estabelece que a existência da pessoa natural termina com a morte. O que cessa, portanto, não é apenas a vida biológica, mas também a capacidade de contrair e responder por obrigações.

O artigo 1.499 do mesmo diploma reforça:

“Extingue-se a obrigação pela morte do devedor, quando a prestação lhe for personalíssima.”

E o artigo 1.997 completa a moldura:

“A herança responde pelo pagamento das dívidas do falecido; feita a partilha, cada herdeiro responde na proporção da parte que na herança lhe coube.”

Há, nesse conjunto normativo, uma coerência ética admirável: o devedor responde até onde tem, e somente com o que tem. Passada a morte, se os bens não bastam, o direito se cala. O Estado reconhece que não pode ultrapassar o limite da existência para continuar cobrando.

Trata-se de um limite ontológico do direito: onde não há mais pessoa, não há mais débito.

2. O contraste com o sistema de falência americano

O direito norte-americano, de tradição common law, adota a bankruptcy como mecanismo de reabilitação econômica. O U.S. Bankruptcy Code, em especial no Chapter 7 e Chapter 13, prevê a liquidação dos bens e a reorganização das dívidas, visando a um fresh start — um “recomeço limpo” para o devedor.

Em tese, trata-se de uma oportunidade de renascimento financeiro. Mas, na prática, a falência é um processo de exposição pública e de degradação social. O devedor é submetido a um escrutínio moral: seus bens, gastos e escolhas são examinados por juízes, credores e órgãos fiscais.

A promessa de um fresh start vem acompanhada do peso da humilhação e da perda de credibilidade. O perdão é concedido pelo tribunal, não pela ordem natural das coisas. O que deveria ser uma purificação se converte, muitas vezes, em estigma.

3. O modelo brasileiro: o perdão como ordem natural

No Brasil, a extinção das obrigações pela morte não é concessão do Estado, mas reconhecimento de um limite da própria natureza humana. O direito não se arroga o poder de cobrar o impossível; reconhece que, diante da morte, toda exigência perde sentido.

Essa é uma forma discreta, porém profundamente moral, de justiça. Ela não expõe o devedor à vergonha pública, nem o reduz a um símbolo de fracasso econômico. Ela apenas encerra o ciclo, com a serenidade de quem compreende que toda vida — com seus méritos e falhas — se consuma em si mesma.

Os dependentes e herdeiros não herdam o fardo da culpa, mas apenas os bens e responsabilidades que o patrimônio comporta. Assim, o sistema preserva a dignidade da pessoa e de sua família, mesmo diante da ruína financeira.

4. O perdão jurídico e o perdão divino

Há, nessa concepção civilista, um traço cristão inegável. No Evangelho, o perdão não é um prêmio, mas um reconhecimento da miséria humana e da finitude da vida. De modo análogo, o direito brasileiro entende que ninguém pode ser perpetuamente cobrado por aquilo que já não pode reparar.

Enquanto o sistema americano exige uma espécie de “confissão pública de falência” para recomeçar, o brasileiro entrega o recomeço ao curso natural da vida. A morte é, por si só, o juízo final das obrigações terrenas.

Há aqui uma sabedoria que o mundo moderno tende a esquecer:

A justiça não consiste apenas em punir ou cobrar, mas em saber quando é hora de encerrar o ciclo e deixar que o tempo — e Deus — façam o resto.

5. Conclusão

O sistema brasileiro, ao extinguir as obrigações com a morte, demonstra uma superioridade moral e filosófica sobre o modelo americano de falência. Ele reconhece que há fronteiras que o direito não deve transpor — e que o verdadeiro perdão jurídico nasce da humildade do próprio ordenamento diante da realidade da morte.

Enquanto o sistema americano tenta “salvar” o devedor pela força da lei, o brasileiro simplesmente o libera pela força da natureza. E, nisso, há mais humanidade, mais dignidade — e, paradoxalmente, mais justiça.

Bibliografia Jurídica e Doutrinária

  • BRASIL. Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002).

    • Art. 6º – A existência da pessoa natural termina com a morte.

    • Art. 1.499 – Extingue-se a obrigação pela morte do devedor, quando a prestação lhe for personalíssima.

    • Art. 1.997 – A herança responde pelo pagamento das dívidas do falecido; feita a partilha, cada herdeiro responde na proporção da parte que na herança lhe coube.

  • GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Contratos e Atos Unilaterais. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2023.

  • VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Parte Geral. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2022.

  • TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: Volume Único. 13. ed. São Paulo: Método, 2023.

  • DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria Geral das Obrigações. 38. ed. São Paulo: Saraiva, 2023.

  • UNITED STATES BANKRUPTCY CODE, Title 11, Chapters 7 & 13.

  • WARREN, Elizabeth & WESTBROOK, Jay Lawrence. The Law of Debtors and Creditors. 8th ed. New York: Wolters Kluwer, 2023.

  • JACKSON, Thomas H. The Logic and Limits of Bankruptcy Law. Cambridge: Harvard University Press, 2001.

Depender para ficar independente ou a sabedoria jurídica da dependência consciente

Há uma estratégia que, à primeira vista, parece paradoxal, mas que, ao ser compreendida sob o prisma jurídico e moral, revela uma sabedoria prática notável: depender para ficar independente. Essa fórmula descreve a situação de quem, por um tempo, se apoia em uma estrutura já estabelecida — como um cartão de crédito vinculado à conta de um familiar — para, gradualmente, consolidar sua autonomia.

A dependência que ensina

O cartão adicional é um exemplo clássico dessa dinâmica. O dependente tem acesso aos benefícios do crédito — pontuação, recompensas, comodidade nas compras —, mas sem a responsabilidade direta sobre o contrato principal. Ele aprende, pela prática, a gerir limites, datas de vencimento e prioridades financeiras, como quem exercita o uso de uma ferramenta sob supervisão.

Essa forma de dependência não é servil; é pedagógica. O dependente cresce dentro de uma ordem, aprendendo a administrar recursos que não são plenamente seus, mas que exigem o mesmo zelo. Assim, forma-se o caráter do responsável: aquele que respeita o que lhe foi confiado, ainda que não lhe pertença totalmente.

O acontecimento inevitável

Quando o titular do cartão falece, o contrato principal extingue-se por força de lei. A morte, fato jurídico natural, dissolve a obrigação principal e, por consequência, todas as obrigações acessórias.

Se o dependente vinha honrando as faturas, todas as suas compras e aquisições se consolidam de forma legítima. Ele nada deve e nada deve devolver. A morte não é um ato de má-fé; é apenas a transição da vida para outro estado, diante do qual o direito se cala e encerra os vínculos terrenos.

A ética da boa-fé

Aquele que, em vida, agiu com boa-fé, pagando o que devia e usando o que lhe era permitido, não comete fraude nem se beneficia indevidamente com o falecimento do titular. Ao contrário: demonstra prudência.
A dependência consciente permitiu que aprendesse, sob tutela, a usar os meios econômicos de modo justo e moderado.

Há, nisso, um valor moral e pedagógico profundo. O dependente, que viveu sob a sombra da autoridade do titular, agora se vê livre — não por ruptura, mas por uma sucessão natural. Ele pode, então, refazer sua vida financeira, agora como titular de si mesmo, trazendo consigo a experiência adquirida e a consciência de que a verdadeira independência nasce do exercício prudente da dependência.

Conclusão

A morte não gera calote; apenas encerra o que é da ordem temporal. E o dependente que aprendeu a agir dentro da lei, honrando compromissos e respeitando o vínculo de confiança, não perde nada do que adquiriu legitimamente. Ele apenas muda de posição: de agregado, torna-se autônomo.

Depender para ficar independente, portanto, é mais do que uma tática financeira — é uma lição de maturidade. Ensina que a verdadeira liberdade não é o rompimento com toda forma de dependência, mas a sabedoria de crescer dentro dela, até o ponto em que o discípulo já não precisa do mestre, porque aprendeu, com o exemplo e com o tempo, a caminhar por conta própria.

Bibliografia Jurídica e Doutrinária

  • BRASIL. Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002).

    • Art. 195 – “As obrigações acessórias seguem a sorte da obrigação principal.”

    • Art. 1.499 – “Extingue-se a obrigação: (...) II – pela morte do devedor, quando a prestação lhe for personalíssima.”

    • Art. 1.997 – “A herança responde pelo pagamento das dívidas do falecido; feita a partilha, cada herdeiro responde na proporção da parte que na herança lhe coube.”

  • GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Contratos e Atos Unilaterais. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2023.

  • VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Parte Geral. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2022.

  • TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: Volume Único. 13. ed. São Paulo: Método, 2023.

  • DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria Geral das Obrigações. 38. ed. São Paulo: Saraiva, 2023.

O leão e o carro: uma reflexão sobre o homem, a técnica e a natureza

Durante um safari, é possível observar um fenômeno curioso e profundamente revelador: ainda que um homem esteja sozinho dentro de um carro, o leão não o ataca. Aos olhos do animal, o homem e o automóvel são uma só coisa. O carro é percebido como um grande corpo, estranho, mas não ameaçador — uma presença que não desperta o instinto de caça. Só quando o homem sai do carro, revelando-se como um ser separado, o leão o identifica como presa.

Essa cena, aparentemente simples, encerra uma das lições mais sutis sobre a relação entre o homem e a técnica. No momento em que o homem entra no automóvel, ele se funde com sua criação: torna-se um “ser ampliado”, um híbrido de carne e metal, protegido pela carapaça da máquina. O leão não vê o homem, mas a forma total do artefato técnico. É como se, por um instante, o homem tivesse deixado de ser natureza para ser pura técnica.

Essa fusão nos leva a uma reflexão sobre a função essencial da técnica. Desde as origens da civilização, a técnica foi o meio pelo qual o homem buscou compensar sua vulnerabilidade diante do mundo natural. Sem garras, presas ou pelagem, o ser humano inventou instrumentos — primeiro a lança, depois a roda, o abrigo, o motor — para mediar sua relação com a natureza. Cada invenção é uma extensão do corpo e da mente. E, no caso do carro, trata-se de uma extensão tão eficiente que até o rei da selva é enganado.

Mas há também um lado filosófico mais profundo. O leão, ao não distinguir homem e máquina, nos revela algo sobre a própria identidade humana. A técnica, quando atinge certo grau de integração, dissolve as fronteiras entre o natural e o artificial, entre o sujeito e o objeto. O homem, dentro do carro, não é mais um indivíduo separado da natureza, mas um ser que transcendeu momentaneamente essa separação por meio de sua inteligência criadora.

Entretanto, essa fusão é frágil e ilusória. Basta abrir a porta do carro, expor o corpo nu ao sol da savana, para que o disfarce se desfaça e o homem volte a ser o que sempre foi: uma criatura vulnerável entre outras criaturas. O carro é um escudo temporário, não uma transformação ontológica. A técnica protege, mas não redime.

Há aqui, portanto, uma lição de humildade: o poder técnico não nos torna deuses, mas apenas estrategistas engenhosos diante do perigo. E, se o leão não nos ataca enquanto estamos dentro do carro, é porque nossa inteligência aprendeu a usar a aparência como defesa — não a força. O verdadeiro domínio do homem sobre a natureza não está na violência, mas na prudência, na capacidade de compreender as percepções do outro e agir de acordo com elas.

Em última análise, o leão e o carro nos ensinam que a técnica é uma forma de convivência disfarçada com o mundo natural. O homem, que constrói máquinas para sobreviver, precisa lembrar que cada invenção é apenas um modo de permanecer vivo dentro de uma ordem que o ultrapassa. A sabedoria está em reconhecer esse limite — e saber quando permanecer dentro do carro.

Bibliografia comentada

HEIDEGGER, Martin. A Questão da Técnica. In: Ensaios e Conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Vozes, 2006.

Obra fundamental para compreender a essência filosófica da técnica. Heidegger argumenta que a técnica moderna não é apenas um conjunto de instrumentos, mas um modo de revelar o real — um “enquadramento” que transforma tudo, inclusive o homem, em recurso.

SIMONDON, Gilbert. Du mode d’existence des objets techniques. Paris: Aubier, 1958.

Simondon analisa a técnica como algo vivo, dotado de uma gênese própria. Sua noção de “individuação técnica” ajuda a compreender o automóvel como um prolongamento do homem e não apenas uma ferramenta passiva.

ELLUL, Jacques. Le Système technicien. Paris: Calmann-Lévy, 1977.

Ellul vê a técnica como um sistema autônomo, que escapa ao controle humano e redefine as relações sociais e éticas. A fusão entre homem e carro no safari é um exemplo claro do domínio simbólico desse sistema.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

Merleau-Ponty mostra como o corpo é a origem de toda percepção. A incorporação do carro como “extensão do corpo” remete diretamente à sua teoria da corporeidade.

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

Arendt diferencia o trabalho, a obra e a ação. O carro, enquanto obra humana, exemplifica o modo como o homem se distancia do mundo natural, mas também como se expõe ao perigo da alienação.

McLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem. Trad. Décio Pignatari. São Paulo: Cultrix, 1964.

McLuhan define toda tecnologia como uma extensão do corpo e da mente. O carro é literalmente uma extensão dos pés e dos olhos — o que explica o modo como ele muda nossa relação com o ambiente e com os outros seres.

Da pechincha ao cashback: duas culturas de consumo em choque

Na cultura americana, é raro ver alguém pechinchar. Os preços são fixos, as etiquetas são sagradas, e negociar com o vendedor é visto como algo quase deselegante. Isso não significa, porém, que o consumidor norte-americano aceite passivamente o valor que lhe é imposto. Ao contrário: ele confia num mecanismo próprio de compensação — o cashback — que, no fundo, representa uma maneira institucionalizada de obter vantagem sem precisar discutir preço.

Enquanto no Brasil, e em tantas culturas latinas, a pechincha é um ritual social e emocional, nos Estados Unidos o cashback é um cálculo racional. A diferença é profunda: a primeira depende da astúcia, do tato e da arte de conversar; a segunda, da confiança em sistemas automáticos de recompensa. Em vez de um “desconto na hora”, o americano aceita pagar o valor cheio, mas recebe depois uma porcentagem de volta — um “bônus” calculado por algoritmos de fidelidade e performance.

Há, aqui, um contraste simbólico entre duas mentalidades econômicas. No mundo latino, negociar é um gesto de humanidade: quem pechincha está dizendo “sou parte deste comércio, vamos encontrar um meio-termo justo”. O ato de barganhar cria laços, desperta simpatia e, muitas vezes, termina com um sorriso. Já no mundo anglo-saxão, a justiça do preço está no contrato, não na conversa. O sistema promete tratar todos igualmente, de modo que não haja espaço para subjetividade — apenas para eficiência.

O cashback, portanto, cumpre uma função cultural: ele substitui a pechincha com uma lógica de mercado automatizada. Em vez de depender da inteligência social, depende da inteligência financeira. O consumidor não demonstra esperteza negociando, mas escolhendo o cartão certo, o aplicativo certo, o momento certo para comprar. Ele transforma o ato de consumir em investimento — uma busca por retorno, não por relação.

No fundo, tanto a pechincha quanto o cashback são expressões da mesma necessidade humana: o desejo de equilíbrio entre o que se dá e o que se recebe. A diferença está no modo como cada civilização entende a justiça desse equilíbrio. Nos países onde o vínculo humano ainda prevalece sobre o contrato, o preço é maleável, e o valor depende da palavra. Já onde o contrato prevalece sobre o vínculo, o preço é fixo, mas o sistema devolve o que prometeu, como um juiz impessoal.

Pode-se dizer, então, que o americano não pechincha porque confia no sistema — e o latino pechincha porque confia nas pessoas. Um acredita na planilha; o outro, no olhar. E é por isso que, mesmo pagando mais caro, o americano sorri ao receber seu cashback: ele sente que o sistema lhe devolveu o que é justo. O latino, por sua vez, sorri antes da compra — porque, ao pechinchar, já sentiu o prazer de ter vencido uma pequena batalha humana.

domingo, 12 de outubro de 2025

O nome e o destino: quando os árbitros da NHL herdaram a dignidade romana

 Na Roma Antiga, acreditava-se que o nome carregava o destino. O nomen não era apenas uma identificação, mas uma síntese do ser, uma marca espiritual e social que vinculava o indivíduo à sua linhagem, aos deuses e ao dever. Ter um nome era ter uma missão — e desonrá-lo era desonrar toda uma casa.

Durante décadas, a National Hockey League (NHL) manteve, talvez sem se dar conta, uma herança dessa tradição antiga: os árbitros traziam seus sobrenomes estampados nas costas. Essa prática, abandonada nas últimas décadas em favor de números, concedia aos juízes do gelo algo que hoje falta a muitas instituições modernas: a autoridade pessoal vinculada à responsabilidade moral.

Quando um árbitro errava, não era um número anônimo que errava — era Smith, McCreary ou Koharski. E esse erro não se dissolvia na burocracia, mas recaía sobre o peso de um nome que o identificava perante todos. Cada decisão era um ato público de julgamento, e cada partida se tornava um pequeno fórum romano, onde o árbitro era o pretor, o guardião momentâneo da ordem.

Mais ainda: se o sobrenome fosse raro, o impacto de suas ações ultrapassava o tempo e o indivíduo. Um erro grave poderia manchar não apenas a reputação do árbitro, mas também a de seus descendentes — assim como na Roma republicana, onde o nomen gentilicium (nome de família) carregava a glória ou a infâmia de todos os seus membros.

Hoje, os árbitros da NHL vestem números. São identificáveis, é verdade, mas não de modo pessoal. O anonimato numérico dilui a honra e a responsabilidade — e, com isso, a nobreza do ofício. Talvez o retorno dos nomes às costas dos árbitros fosse mais do que uma questão estética: seria uma restauração simbólica da dignitas, da ideia de que quem julga em público deve também ser julgado em nome próprio.

Assim como o magistrado romano, o árbitro é chamado a aplicar a lei, garantir a justiça e proteger a integridade do jogo — ou, em termos clássicos, da res publica, a “coisa pública”. Na Roma antiga, o pretor que administrava mal a justiça não apenas perdia o cargo: perdia a honra, e com ela a memória digna de seu nome.

O nome, portanto, é mais do que um rótulo; é um testemunho permanente. E a autoridade, quando dissociada do nome, converte-se em poder impessoal — o que é sempre o primeiro passo para a arbitrariedade. Quando os árbitros da NHL usavam seus sobrenomes nas costas, o gelo não era apenas o palco de um esporte: era também o espelho de uma civilização que ainda lembrava que o julgamento é um ato sagrado.

Quando os árbitros tinham nome: uma lembrança da velha NHL

 A era dos nomes

Houve um tempo em que os árbitros da NHL usavam o sobrenome nas costas do uniforme. Para quem viveu aquela época, não era apenas uma questão estética — era uma forma de reconhecer que até o juiz tinha uma história dentro do gelo. Sob o tecido listrado em preto e branco, havia um homem que errava, acertava, mas sobretudo interpretava o jogo com um certo estilo pessoal, como quem participa, ainda que de forma discreta, da narrativa épica do hóquei.

Quando se via Fraser, McCreary ou Koharski nas costas de um árbitro, havia uma sensação de familiaridade. O torcedor sabia o que esperar: o rigor de um, a diplomacia de outro, a autoridade silenciosa de um terceiro. O nome tornava a arbitragem algo humano, visível, responsável. Era quase como um selo de honra — o árbitro se apresentava ao público, dizendo: “estou aqui, e meu julgamento tem dono.”

A padronização de 1994

Em 1994, a NHL decidiu substituir os nomes por números, numa tentativa de padronizar e despersonalizar a arbitragem. A justificativa era técnica: reduzir a pressão individual, evitar que os árbitros se tornassem alvos da mídia e devolver o foco ao jogo. A decisão fazia sentido em tempos de globalização e profissionalização, mas algo se perdeu nesse movimento.

A figura do árbitro, antes parte do drama esportivo, tornou-se anônima, quase burocrática — como se o gelo agora fosse vigiado por códigos, não por consciências. O nome desapareceu, e com ele desapareceu também o vínculo entre o árbitro e o torcedor.

O anonimato moderno

Hoje, quando vemos um árbitro em ação, ele é apenas “o número 8” ou “o 22”, e não mais Kerry Fraser, com seu cabelo impecável e gestos firmes. O número substituiu o nome, e com isso o torcedor perdeu a possibilidade de reconhecer o homem por trás da autoridade.

Talvez seja um detalhe, mas o hóquei sempre viveu desses detalhes — da coragem de um bloqueio, do som do patim que corta o gelo, do olhar entre o atacante e o goleiro antes do disparo. O nome nas costas do árbitro fazia parte desse universo. Ele lembrava que, mesmo no papel mais ingrato do esporte, ainda havia espaço para a individualidade, para a honra e para a memória.

Entre o rosto e o número

Hoje, porém, vivemos a era da neutralidade aparente — tudo é função, número, protocolo. A figura humana foi substituída pela eficiência institucional, e o esporte, em muitos sentidos, reflete essa tendência. Perdemos os rostos, os gestos e os estilos. Perdemos, talvez, a consciência de que até a justiça — no gelo ou fora dele — precisa ter um nome, um rosto e uma alma.

Afinal, o hóquei não é apenas um jogo de regras. É um jogo de homens — e os homens têm nome.

A economia como ciência moral: de Aristóteles a Henry Sidgwick

 I. Introdução

Há uma tradição esquecida que percorre toda a história da filosofia: a de compreender a economia não como uma técnica de enriquecimento, mas como uma ciência subordinada à ética. Desde Aristóteles até Henry Sidgwick, passando por John Stuart Mill, essa tradição insiste que o problema econômico é, antes de tudo, um problema moral — isto é, o problema do justo uso dos bens para o florescimento humano.

Em The Principles of Political Economy (1883), Sidgwick retoma a herança aristotélica sob uma nova forma: procura conciliar a racionalidade econômica moderna com as exigências éticas que, na Grécia antiga, eram o coração da phronesis, a sabedoria prática. O que resulta é uma espécie de “aristotelismo utilitarista”, que reintegra a moralidade ao cálculo econômico.

II. A teleologia aristotélica e a economia como parte da ética

Na Ética a Nicômaco, Aristóteles afirma que “toda ação e toda escolha visam algum bem” — e o bem supremo é a eudaimonia, a felicidade entendida como vida plena conforme à virtude. A economia, ou oikonomiké, é apenas uma parte dessa grande arquitetura da vida boa: sua função é prover os meios materiais para que os cidadãos possam viver de modo virtuoso na pólis.

O estagirita distingue claramente entre a verdadeira economia, que administra bens em vista da virtude, e a chrematistiké, o simples acúmulo de riquezas pelo desejo ilimitado de posse. Essa distinção é decisiva: ela marca o limite entre uma ciência moral e uma técnica da cobiça. A riqueza, diz Aristóteles, é um meio; jamais um fim.

III. A transição moderna: John Stuart Mill e a moral do bem-estar

Séculos mais tarde, com o advento do liberalismo e da economia clássica, o vínculo entre ética e economia foi sendo rompido. John Stuart Mill, contudo, tentou restaurá-lo. Em On Liberty e Principles of Political Economy, Mill procurou harmonizar liberdade individual e bem-estar coletivo, afirmando que o Estado pode e deve intervir quando a liberdade de uns ameaça a dignidade de outros.

Em seu utilitarismo, Mill distingue prazeres “superiores” e “inferiores” — o que já constitui uma tentativa de reencontrar o ideal aristotélico de medida moral. Assim, se Aristóteles via a felicidade como realização da virtude, Mill passa a entendê-la como o resultado de uma ordem social racionalmente organizada para o bem comum.

Mas Mill permanece prisioneiro de uma tensão: seu utilitarismo é ético, mas ainda não filosófico no sentido aristotélico — ele carece de uma fundamentação racional do dever moral.

IV. Henry Sidgwick: um aristotélico racionalista em Cambridge

Henry Sidgwick, professor de Filosofia Moral na Universidade de Cambridge, percebeu essa limitação. Em The Principles of Political Economy, ele afirma que a economia é “um ramo da filosofia moral”, e que as leis econômicas só têm sentido quando subordinadas a uma concepção de dever e de bem comum.

Ao contrário de muitos economistas de sua época, Sidgwick não reduz o homem a um homo oeconomicus movido pelo interesse próprio. Ele o entende como um agente moralmente responsável, cuja racionalidade deve incluir o juízo ético sobre os fins e os meios da ação.

Sidgwick, portanto, não é apenas um economista: é um moralista no sentido clássico, que acredita ser possível compatibilizar o cálculo racional das consequências com a exigência do dever. A economia, para ele, é um campo em que se deve exercitar a prudência (phronesis) — virtude aristotélica que delibera bem sobre o que é bom e conveniente à vida humana.

V. Virtude, prazer e dever: entre a phronesis e o utilitarismo

O núcleo do diálogo entre Sidgwick e Aristóteles está justamente na concepção da razão prática.

  • Para Aristóteles, a phronesis é a faculdade que guia a ação rumo à virtude.

  • Para Sidgwick, a razão é a faculdade que calcula as consequências das ações em vista do bem racional.

Ambos admitem que o prazer é um sinal da boa vida, mas não seu fim último. Sidgwick adapta o prazer aristotélico — que acompanha a virtude — ao contexto moderno: o prazer é bom quando é racionalmente harmonizado com o bem coletivo. Assim, substitui a teleologia metafísica por uma moral consequencialista, sem perder de vista o horizonte da justiça.

VI. Justiça e Estado: de Aristóteles à economia moral moderna

Na Ética a Nicômaco e na Política, Aristóteles ensina que a justiça é a virtude perfeita, porque diz respeito ao bem dos outros. Ela se divide em distributiva e comutativa: a primeira regula a repartição de bens conforme o mérito; a segunda, a igualdade nas trocas.

Sidgwick, por sua vez, reinterpreta essa doutrina à luz da sociedade industrial. Para ele, a justiça distributiva exige equilíbrio entre liberdade e equidade — não uma igualdade mecânica, mas uma ordem que assegure dignidade e oportunidade a todos. O Estado deve intervir para corrigir distorções injustas do mercado, sem abolir a liberdade individual.

Essa prudência estatal, inspirada na ética, faz de Sidgwick o precursor de uma economia moral do bem-estar — algo que, mais tarde, seria desenvolvido por Arthur Pigou e John Maynard Keynes, seus herdeiros intelectuais em Cambridge.

VII. Conclusão: a restauração da economia como arte moral

Aristóteles ensina que o verdadeiro bem político consiste em “fazer os cidadãos bons e justos”.
Sidgwick, séculos depois, retoma esse ideal com os instrumentos da razão moderna. Entre a phronesis aristotélica e o cálculo utilitarista, ele constrói uma ponte: mostra que a economia só é ciência autêntica quando permanece fiel à ética.

Assim, podemos dizer que Sidgwick é um aristotélico racionalista — não porque partilhe da metafísica do Estagirita, mas porque conserva o mesmo espírito: o de subordinar o saber técnico ao bem humano, a riqueza à virtude, e o cálculo ao dever.

No fundo, tanto Aristóteles quanto Sidgwick buscam o mesmo ideal: que a vida econômica não seja uma guerra de apetites, mas uma comunhão ordenada de esforços em direção ao bem comum.
E se o primeiro fundou a filosofia moral sobre a virtude, o segundo procurou traduzi-la em termos de racionalidade ética — lembrando-nos, em pleno século XIX, que a economia, sem moral, é apenas a técnica da servidão.

Referências bibliográficas

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. António de Castro Caeiro. Lisboa: Gulbenkian, 2004. 

ARISTÓTELES. Política. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: UNB, 1998. 

MILL, John Stuart. Principles of Political Economy. London: Longmans, 1848. 

MILL, John Stuart. Utilitarianism. London: Parker, Son, and Bourn, 1863. 

SIDGWICK, Henry. The Methods of Ethics. London: Macmillan, 1874. 

SIDGWICK, Henry. The Principles of Political Economy. London: Macmillan, 1883. 

PIGOU, Arthur Cecil. The Economics of Welfare. London: Macmillan, 1920. 

KEYNES, John Maynard. Essays in Biography. London: Macmillan, 1933.