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segunda-feira, 8 de setembro de 2025

O “plantation do bem”: memória, abolição e imaginação histórica

Introdução

A abolição da escravidão no Brasil (1888) foi uma conquista moral e jurídica inegável. Ainda assim, a República recém-instaurada (1889) falhou em promover a real integração dos libertos — perpetuando desigualdades e exclusão que ecoam até hoje. Este artigo explora uma hipótese literária contrafactual: e se os abolicionistas e os libertos tivessem suas memórias preservadas de modo radical — não pelo esquecimento ou vilipêndio simbólico, mas por meio da cremação transformadora de suas cinzas em adubo para plantações de algodão — um verdadeiro “plantation do bem”? Através dessa alegoria, propomos repensar o papel da memória na construção de uma civilização justa e digna.

O esquecimento republicano e a proposta de ressurreição simbólica

Na República emergente, havia uma clara tendência ao rompimento com os símbolos do passado, muitas vezes reduzindo a presença dos mortos na memória coletiva. Manoel de Barros certa vez escreveu que viver era “tornar visível aquilo que o tempo teoriza”. No cenário imaginário proposto, a cremação dos abolicionistas e libertos não representaria apagamento, mas sim fertilidade — uma ressurreição simbólica pelo cultivo da vida, invertendo o mecanismo do esquecimento.

O “plantation do bem” como subversão simbólica

  • O plantation, ícone máximo da escravidão, é subvertido: o campo torna-se lugar de redenção, santificação e honra.

  • O algodão, antes símbolo da exploração, converte-se em tecido da memória e da dignidade.

  • A produção de conjuntos de vestuário — camisa e calça — vindos de 13 plantas evoca Cristo e seus apóstolos, estabelecendo um paralelo entre santificação e trabalho.

  • Vestir-se desses tecidos seria, ao mesmo tempo, revestir-se da luta abolicionista e participar de um vínculo vivo com o passado glorioso dos que lutaram pela liberdade.

Revolução Industrial e a construção de um Império da Boa Sociedade

Neste romance histórico alternativo:

  1. Industrias de beneficiamento e exportação de algodão memorial nascem como extensão da memória coletiva, não apenas da economia.

  2. Surge o que chamei de “Império da Boa Sociedade”: um modelo de civilização em que o progresso técnico (revolução industrial) se conjuga à moralidade cristã, produzindo riqueza e justiça de forma simultânea.

  3. Os recursos resultantes são investidos em educação, moradia e projetos sociais, impulsionando a verdadeira integração dos descendentes de escravizados — não por concessão, mas como consequência natural de uma economia fundada na memória e na dignidade.

O livro O Império da Boa Sociedade no contexto histórico

O título dessa obra — O Império da Boa Sociedade: A Consolidação do Estado Imperial Brasileiro, de Ilmar Rohloff de Mattos e Márcia de Almeida Gonçalves — propõe uma retomada dos documentos e ideais que moldaram o Estado imperial, explorando as tensões entre elites, imigrantes e escravizados na formação do Brasil do século XIX lemad.fflch.usp.brApaixonados por História.

A expressão "boa sociedade" nesse volume remete ao ideal de uma civilização ordenada e honrosa — um contraponto ao “Império da Boa Sociedade” imaginado aqui, que se ergue sobre lembrança, justiça e trabalho. A utilização dessa referência bibliográfica reforça o diálogo entre história real e imaginação histórica que a ficção propõe

A literatura como crítica e profecia

Machado de Assis, em seus romances realistas, expôs com ironia o horizonte limitado das elites brasileiras. Sua escrita revelou um país incapaz de ver além dos próprios privilégios. O romance imaginado aqui se apresenta como uma imaginação histórica profética — expandindo o que poderia ter sido, ao mesmo tempo em que denuncia a amnésia estrutural que impede o Brasil de aprender com seu passado.

Conclusão

A concepção de um “plantation do bem”, adubado literalmente pelas cinzas dos abolicionistas, dos libertos e seus descendentes, ultrapassa a mera metáfora literária: é um convite à reflexão sobre a relevância da memória — ativa e viva — na construção de um país mais justo. O esquecimento, como sabemos, gera exclusão; a memória fértil, porém, pode tecer os fundamentos de uma sociedade renovada. Afinal, se vestimos nossa história, vestimos também nossa dignidade.

Bibliografia sugerida

  • ANDREWS, George Reid. Negros e brancos em São Paulo (1888-1988). Bauru: Edusc, 1998.

  • BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

  • FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Record, 2002 [1933].

  • MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1881.

  • MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

  • MATTOS, Ilmar Rohloff de; GONÇALVES, Márcia de Almeida. O Império da Boa Sociedade: A consolidação do Estado Imperial Brasileiro. São Paulo: Atual, 1991.

  • SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

  • SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

As treze plantas de algodão: Cristo, os doze apóstolos e o compromisso com a excelência fundado na santificação através do trabalho

Ao refletirmos sobre a quantidade de algodoeiros necessários para se confeccionar uma camisa e uma calça de ótima qualidade, chegamos à estimativa conservadora de treze plantas. Esse número, por si só, abre espaço para uma leitura simbólica: Cristo e os doze apóstolos, reunidos em um pequeno colégio que representa a Igreja nascente e, por extensão, o próprio modelo de santidade que nos foi dado desde a eternidade.

O algodão como símbolo de pureza

O algodão, com sua fibra branca, suave e maleável, evoca de imediato a ideia de pureza e simplicidade. Não por acaso, a Escritura nos convida a nos revestir de Cristo (Rm 13,14), Ele mesmo sendo a veste da justiça e da santidade. Cada cápsula de algodão que se abre é como um dom que a criação oferece, imagem da graça que brota do coração de Deus para nos cobrir e proteger.

Cristo, o algodoeiro central

Se tomarmos as treze plantas como uma alegoria, uma delas corresponde a Cristo, o algodoeiro central, de quem tudo procede. Ele é a fonte e a medida da santificação, o modelo de pureza que dá forma ao conjunto. Sem essa planta, as demais perdem o sentido: é Cristo quem dá unidade ao colégio apostólico, é Ele quem se oferece como veste para a humanidade.

Os doze apóstolos e a comunhão do trabalho

As outras doze plantas representam os apóstolos, escolhidos para prolongar a missão de Cristo no tempo e no espaço. Cada algodoeiro, por si só, não seria suficiente para produzir o tecido da vida cristã em plenitude; juntos, porém, oferecem o necessário para compor a veste que simboliza a Igreja. A imagem nos recorda que a santificação não é obra isolada, mas comunitária: a fibra só cumpre seu destino quando fiada, tecida e transformada em algo maior do que a soma das partes.

A santificação através do trabalho

O cultivo do algodão não é simples: requer paciência, cuidado com o solo, atenção às pragas, zelo pela colheita. Do mesmo modo, a vida cristã exige disciplina, vigilância e esforço contínuo. Essa dedicação se traduz no princípio da santificação através do trabalho, pois não se trata apenas de plantar por plantar, mas de fazê-lo em conformidade com o Todo que vem de Deus.

Trabalhar com excelência é, assim, compromisso de fé. O artesão que tece a fibra, o alfaiate que corta o tecido e o fiel que se reveste da roupa participam de uma mesma lógica de oferenda: dar o melhor a Deus e ao próximo. A roupa de algodão, confeccionada com cuidado, é imagem concreta de que até o ordinário — vestir-se — pode ser extraordinário quando feito em Cristo.

Conformidade com o Todo que vem de Deus

As treze plantas nos lembram que a vida cristã é marcada por um chamado à conformidade: unir-se ao Todo divino, reconhecendo que cada fibra, cada detalhe, encontra sua plenitude em Deus. O número não é mero acaso matemático, mas sinal de que até mesmo nos cálculos práticos da vida podemos encontrar uma pedagogia espiritual.

Se Cristo é a veste da salvação e os apóstolos são os fios que entrelaçam a Igreja, cada peça de roupa feita do algodão cultivado com zelo é também um sacramento da vida ordinária — um testemunho de que a santidade está ao alcance de quem se compromete com a excelência, em fidelidade ao plano divino.

Quantos algodoeiros são necessários para se confeccionar uma camisa e uma calça de ótima qualidade?

O algodão é uma das fibras mais antigas e universais utilizadas pela humanidade na confecção de roupas. Mas, se em nossas casas ele chega pronto em forma de tecido ou fio industrializado, pouca gente se dá conta de quanto esforço e quanta matéria-prima são necessários para transformar uma planta em vestimenta. A pergunta é direta e prática: quantos algodoeiros preciso cultivar para confeccionar uma camisa e uma calça de ótima qualidade?

1. O peso das peças de roupa

Antes de calcular, é preciso estimar quanto de fibra cada peça demanda. Uma camisa de algodão de boa qualidade, com tecido denso e bom caimento, pesa em torno de 350 gramas. Já uma calça de algodão — seja um chino, sarja ou brim, sem chegar ao peso de um jeans bruto — pode exigir 700 gramas de fibra. Assim, somadas, essas duas peças necessitam de aproximadamente 1.050 gramas de algodão limpo.

2. A produção de um algodoeiro

Cada planta de algodão, em condições razoáveis de cultivo, pode render entre 100 a 200 gramas de fibra limpa após o beneficiamento. Essa variação depende da variedade plantada, do clima, da fertilidade do solo e dos cuidados com a cultura. Para efeito prático, pode-se trabalhar com uma média de 150 gramas por planta.

3. O fator das perdas inevitáveis

Entre a colheita das cápsulas, a retirada das sementes (ginagem), a fiação, a tecelagem e até o corte e costura, sempre há perdas de material. É razoável acrescentar um percentual de 20% de margem de segurança, o que eleva a necessidade total de fibra para aproximadamente 1.260 gramas.

4. O número de plantas necessárias

Com esses números em mãos, é possível estimar:

  • Cenário otimista (200 g/planta): 6 a 7 plantas bastariam.

  • Cenário médio (150 g/planta): seriam necessárias 9 plantas.

  • Cenário conservador (100 g/planta): de 12 a 13 plantas.

Assim, para confeccionar uma camisa e uma calça de ótima qualidade, é realista pensar em 9 a 13 plantas de algodão, dependendo das condições de cultivo e do nível de aproveitamento da fibra.

5. O cultivo em vasos: é possível?

O algodoeiro é uma planta arbustiva que pode atingir até 1,5 metro de altura, e, embora seja tradicionalmente cultivado em campos, é possível adaptá-lo ao cultivo em vasos. Para tanto, recomenda-se utilizar recipientes de 20 a 30 litros de volume, com solo fértil, boa drenagem e exposição a pelo menos seis horas diárias de sol pleno.

O ciclo, do plantio até a abertura das cápsulas, dura de cinco a seis meses, e cada vaso deve comportar apenas uma planta. Portanto, para produzir a fibra necessária às duas peças de roupa, seria preciso manter entre 9 e 13 vasos grandes, o que já constitui uma pequena horta têxtil doméstica.

6. Reflexão final

Saber que uma simples camisa e uma calça exigem de 9 a 13 algodoeiros ajuda a valorizar não só a agricultura, mas também o trabalho humano por trás da indústria têxtil. O que para nós parece banal — comprar uma peça pronta em uma loja — é resultado de um longo processo agrícola, técnico e artesanal que começa no campo, passa por vários beneficiamentos e termina no ateliê ou fábrica de costura.

Ao cultivar algodão em casa, mesmo em vasos, descortina-se uma experiência única: aproximar-se da raiz material de nossas roupas, compreender o valor do trabalho envolvido e, de certo modo, resgatar a dignidade do vestir.

Vestir a Memória: jardim, anticrese e a perspectiva de segunda pessoa nos méritos de Cristo

A morte, em sua aparente definitividade, abre espaço para símbolos que transcendem a perda e revelam novos modos de presença. Entre esses símbolos, a imagem de um jardim construído a partir da memória dos entes queridos ocupa um lugar privilegiado: nele, a vida não apenas retorna à terra, mas renasce em forma de cuidado, beleza e alimento. Quando se aduba um algodoeiro com as cinzas de alguém que partiu, planta-se também a memória desse ser. E quando, do algodão colhido, se tece uma camisa, o ato de vestir deixa de ser apenas uma função prática e passa a ser sacramental: é a vida do falecido que, transformada, se coloca sobre o corpo do vivo.

Vestir uma camisa assim é assumir, de modo literal, a continuidade da existência dos que nos precederam. Não se trata apenas de honrar a lembrança, mas de incorporá-la ao próprio gesto, como quem carrega consigo uma segunda pele feita de história, afeto e princípios. E se esses entes queridos foram intelectuais, o ato se amplia ainda mais: vestir sua fibra é também vestir suas ideias, seus princípios, suas lutas. É tomar para si o peso e a dignidade daquilo que eles sustentaram, dando continuidade ao fio de pensamento que não pode ser interrompido pela morte.

Aqui encontramos uma imagem singular da anticrese, instituto jurídico pelo qual o credor assume a posse dos frutos do bem dado em garantia até que a dívida se cumpra. Transposto ao campo da literatura espiritual, o mecanismo revela uma analogia potente: ao herdar os frutos intelectuais e morais de nossos mortos, colocamo-nos em sua posição. O que eles semearam em vida passa a ser colhido por nós, seus sucessores. Somos, por assim dizer, credores de uma herança espiritual que nos é confiada, e ao vesti-la, tornamo-nos responsáveis por levá-la adiante.

Mas há ainda um nível mais profundo: o de assumir a perspectiva de segunda pessoa. Quando vestimos a camisa dos nossos mortos, não apenas recordamos sua presença (terceira pessoa), nem apenas falamos de nós mesmos em relação a eles (primeira pessoa), mas passamos a enxergar o mundo tal como eles o viam. Esse é o exercício espiritual de colocar-se no lugar do outro, de adotar seu olhar, sua voz, seu juízo. É o mesmo movimento que Deus fez ao se encarnar em Jesus Cristo: a Palavra eterna não permaneceu distante, mas assumiu a nossa carne, viveu como nós, olhou o mundo a partir de dentro. Ali, a conversão se deu pela proximidade radical, pela perspectiva do “Tu” que se dirige a cada um de nós.

O jardim da memória, portanto, não é apenas lugar de saudade. É espaço de conversão, onde a vida que partiu se torna matéria para a vida presente. É também um ateliê de responsabilidade: quem veste a fibra dos seus não pode deixar de carregar consigo o peso de seus princípios. E é, sobretudo, um caminho de Cristo: assim como Ele nos revestiu de Si mesmo, somos chamados a revestir-nos daquilo que os nossos nos deixaram, enxergando o mundo com um olhar que ultrapassa os limites da carne e nos faz ver o que não se vê.

Bibliografia sugerida

  • Bíblia Sagrada

    • São Paulo: “Revesti-vos do Senhor Jesus Cristo” (Rm 13,14).

    • “Todos vós que fostes batizados em Cristo vos revestistes de Cristo” (Gl 3,27).

  • Santo Agostinho

    • Confissões, especialmente o Livro X, sobre memória: a memória como espaço onde Deus fala ao homem e onde os mortos permanecem vivos.

  • Hans Urs von Balthasar

    • Teodramática: sobre a perspectiva da segunda pessoa, a encarnação como o “Tu” de Deus que nos chama ao diálogo.

  • Joseph Ratzinger (Bento XVI)

    • Introdução ao Cristianismo: sobre a fé como encontro de pessoas, não apenas adesão a ideias abstratas.

  • Paul Ricoeur

    • A Memória, a História, o Esquecimento: sobre a responsabilidade de guardar a memória como ato ético.

  • Maurice Halbwachs

    • A Memória Coletiva: a dimensão comunitária da lembrança e sua atualização nos símbolos.

  • José de Oliveira Ascensão

    • Direito Civil – Reais: para o estudo técnico da anticrese, como base da metáfora literária aqui aplicada.

A rede da memória viva: sementes, cinzas e a cultura cristã da solidariedade

Quando adubamos uma planta com as cinzas de um ente querido, ela deixa de ser apenas um ser vegetal para tornar-se um símbolo vivo de memória. Seus frutos, flores ou perfumes passam a carregar consigo não apenas nutrientes do solo, mas também a lembrança de uma vida que amamos e que permanece entre nós. No gesto de cuidar da planta, estamos também cuidando da memória, e ao usufruir de seus frutos, participamos de uma continuidade que ultrapassa a morte.

Essa dinâmica, porém, alcança uma dimensão ainda mais profunda quando ocorre a troca de sementes e mudas entre famílias diferentes. Nesse ato de doação, o que se transmite não é apenas um bem material, mas uma herança espiritual: cada família passa a cultivar, em sua própria casa, a memória de alguém que não conheceu em vida, mas que passa a ser honrado e cuidado como se fosse seu.

Dessa forma, cria-se uma rede de sucessão e solidariedade, em que a memória dos mortos não é confinada ao espaço privado, mas circula e se partilha em comunidade. Isso tem consequências culturais e espirituais de grande valor:

  • Cuidado redobrado: uma planta recebida de outra família não será tratada como qualquer outra, mas com uma reverência especial, porque nela repousa a lembrança de alguém amado por outrem.

  • Comunhão de memórias: a troca de sementes une famílias em vínculos de solidariedade espiritual, ampliando a comunhão dos santos para além do espaço do templo e penetrando o espaço cotidiano da vida.

  • Preparação para a morte: a prática educa para uma verdadeira ars moriendi (arte de bem morrer), não no sentido de resignação, mas de esperança: morrer não é desaparecer, mas continuar vivo no cuidado dos que permanecem.

  • Serviço nos méritos de Cristo: ao compartilhar não apenas frutos, mas memórias transfiguradas, os cristãos aprendem a servir uns aos outros inspirados nas virtudes de seus entes queridos, fazendo frutificar na terra o que já floresce no Céu.

Esse gesto dialoga com símbolos antigos. Entre povos indígenas, havia o entendimento de que os mortos transmitiam suas forças aos vivos pela assimilação ritualizada. No entanto, a fé cristã eleva esse mesmo instinto a uma profundidade maior: não se trata de uma absorção material, mas de uma comunhão espiritual, em que as virtudes dos que partiram são cultivadas como sementes que florescem na vida comunitária.

Assim, a simples troca de sementes e mudas se torna um ato de caridade e memória, onde o biológico se une ao espiritual e o cultural se abre ao eterno. O que Mendel viu na genética como transmissão de características encontra aqui seu sentido mais pleno: não apenas utilidade, mas herança de amor e solidariedade cristã.

No fim, cada planta cultivada com as cinzas de alguém é um testemunho da ressurreição: da morte brota a vida, da perda nasce a comunhão, e da memória surge a esperança.

Do mal menor à vida que permanece: memória, cinzas e continuidade

A morte de um ente querido é um momento de dor intensa, mas também de reflexão sobre como honrar a vida que se foi. No Rio de Janeiro, onde resido, essa responsabilidade se torna particularmente desafiadora. Muitos cemitérios da cidade têm se mostrado vulneráveis à ação pública, que, em vez de proteger, pode expor os mortos ao vilipêndio, afrontando a memória e a dignidade das famílias.

Diante dessa realidade, minha família optou pela cremação de meu pai no Jardim da Saudade, na Sulacap. As cinzas, longe de serem descartadas, foram utilizadas para nutrir as plantas do próprio cemitério. Essa decisão, embora conflituosa à luz do cristianismo tradicional — que veda a cremação —, representou um mal menor diante da possibilidade de violação da dignidade do corpo.

Mas a experiência sugere algo ainda mais profundo: a transformação da matéria em vida. Se eu tivesse um jardim, faria das cinzas de meus entes queridos adubo para plantas, quem sabe uma árvore frutífera. Do fruto dessa árvore, nutrido pelas cinzas, eu me alimentaria, como os povos indígenas fazem em certos rituais de assimilação simbólica. É um canibalismo indireto, mas de reverência e memória, não de violência. Cada fruto, cada folha, cada flor seria uma ponte viva entre passado e presente, entre morte e vida, uma extensão concreta do legado daqueles que amamos.

Essa prática nos ensina que a morte não precisa ser passiva, e a memória não precisa ser apenas sentimental. Ela pode ser ativa, tangível, nutrir a vida ao redor e prolongar, de forma simbólica, as qualidades e virtudes dos que partiram. Do mal inevitável da morte, pode emergir um bem — a continuidade da vida, a preservação da memória e a afirmação de que o amor verdadeiro transcende o corpo físico.

No Jardim da Saudade, essa transição torna-se visível: o corpo de meu pai, transformado em cinzas, nutre o espaço, perpetua-se nas plantas e mantém viva a lembrança de quem ele foi. O mal menor da cremação se converte, assim, em um bem maior: a dignidade, o respeito e a memória que continuam a existir de forma concreta, sensível e viva.

A res derelictae como bem público dominical municipal: teoria e prática no Direito Administrativo Brasileiro

 Resumo: 

O presente artigo analisa a classificação de bens imóveis urbanos abandonados como res derelictae, enquadrando-os na categoria de bens públicos dominicais municipais. A partir da doutrina e da jurisprudência, discute-se a função social desses bens, a vedação constitucional à usucapião e as implicações práticas dessa classificação no contexto brasileiro.

1. Introdução

No Direito Administrativo brasileiro, os bens públicos são classificados conforme sua destinação e uso. Entre essas categorias, destacam-se os bens dominicais, que pertencem ao Estado sem uma destinação pública específica. Este artigo explora a aplicação dessa classificação a bens imóveis urbanos abandonados, conhecidos como res derelictae, e analisa as implicações jurídicas e sociais dessa abordagem.

2. Bens Públicos Dominicais: Conceito e Classificação

O Código Civil de 1916 estabelecia três categorias de bens públicos: de uso comum do povo, de uso especial e dominicais. Essa classificação foi mantida pelo Código Civil de 2002, que, em seu artigo 99, §3º, define os bens dominicais como aqueles pertencentes ao Estado sem destinação específica, podendo ser utilizados ou alienados conforme o interesse público.

No contexto municipal urbano, bens imóveis abandonados podem ser classificados como res derelictae, ou seja, coisas abandonadas pelo proprietário, sem dono conhecido, suscetíveis de apropriação por quem delas tomar posse. Essa classificação implica que tais bens são considerados de propriedade do Estado, mas sem uma destinação pública específica, enquadrando-se na categoria de bens dominicais municipais.

3. Função social dos bens públicos dominicais

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso XXIII, estabelece que a propriedade atenderá à sua função social. Essa diretriz aplica-se também aos bens públicos dominicais, que devem ser utilizados de forma a promover o bem-estar coletivo e o interesse público.

No caso das res derelictae, a função social pode ser atendida por meio da ocupação e utilização desses bens para fins habitacionais, culturais ou comunitários, desde que observadas as normas legais e respeitados os direitos fundamentais.

4. Vedação à usucapião de bens públicos

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 183, §3º, e artigo 191, parágrafo único, veda expressamente a usucapião de bens públicos. Essa vedação visa proteger o patrimônio público e garantir que os bens públicos sejam utilizados conforme sua destinação e interesse coletivo.

No entanto, a doutrina e a jurisprudência divergem quanto à aplicação dessa vedação aos bens dominicais. Alguns juristas defendem que, por não estarem afetados a uma finalidade pública específica, os bens dominicais poderiam ser sujeitos à usucapião, desde que atendida a função social da propriedade.

5. Prática Administrativa e Desafetação de Bens Públicos

A administração pública, ao identificar bens públicos dominicais sem utilização específica, pode promover sua desafetação, ou seja, retirar a destinação pública anterior, permitindo sua alienação ou utilização para outros fins. No caso das res derelictae, a desafetação pode ser realizada por meio de edital público, visando à regularização fundiária e à promoção do interesse social.

Entretanto, a prática administrativa no Brasil enfrenta desafios relacionados à burocracia, corrupção e falta de transparência, o que pode comprometer a efetividade dessas ações e resultar em disputas fundiárias e injustiças sociais.

6. Jurisprudência Relevante

A jurisprudência brasileira tem se posicionado no sentido de que é possível o manejo de interditos possessórios em litígios entre particulares sobre bens públicos dominicais, desde que a ocupação atenda à função social da propriedade. O Superior Tribunal de Justiça tem reconhecido a possibilidade de posse sobre bens públicos dominicais quando a disputa ocorre entre particulares, considerando a função social da propriedade como critério para a solução dos conflitos possessórios.

7. Conclusão

A classificação de bens imóveis urbanos abandonados como res derelictae e sua inclusão na categoria de bens públicos dominicais municipais oferece uma abordagem teórica para a gestão e utilização desses bens, visando atender à função social da propriedade. Contudo, a efetividade dessa abordagem depende da atuação transparente e eficiente da administração pública, que deve garantir que a utilização desses bens promova o interesse coletivo e respeite os direitos fundamentais.

Referências Bibliográficas:

  • CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 27. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

  • DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Atlas, 2018.

  • GARCIA, José dos Santos. Direito Administrativo Brasileiro. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

  • MARTINS, Ives Gandra da Silva. Direito Administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2016.

  • PEREIRA, Maria Chaves Lobo; AZEVEDO, Thiago Augusto Galeão de. "A impossibilidade de usucapião em bem público como obstáculo jurídico para garantia da dignidade de sujeitos marginalizados". Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação, v. 10, n. 1, jan. 2024.