Pesquisar este blog

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Vestir a Memória: jardim, anticrese e a perspectiva de segunda pessoa nos méritos de Cristo

A morte, em sua aparente definitividade, abre espaço para símbolos que transcendem a perda e revelam novos modos de presença. Entre esses símbolos, a imagem de um jardim construído a partir da memória dos entes queridos ocupa um lugar privilegiado: nele, a vida não apenas retorna à terra, mas renasce em forma de cuidado, beleza e alimento. Quando se aduba um algodoeiro com as cinzas de alguém que partiu, planta-se também a memória desse ser. E quando, do algodão colhido, se tece uma camisa, o ato de vestir deixa de ser apenas uma função prática e passa a ser sacramental: é a vida do falecido que, transformada, se coloca sobre o corpo do vivo.

Vestir uma camisa assim é assumir, de modo literal, a continuidade da existência dos que nos precederam. Não se trata apenas de honrar a lembrança, mas de incorporá-la ao próprio gesto, como quem carrega consigo uma segunda pele feita de história, afeto e princípios. E se esses entes queridos foram intelectuais, o ato se amplia ainda mais: vestir sua fibra é também vestir suas ideias, seus princípios, suas lutas. É tomar para si o peso e a dignidade daquilo que eles sustentaram, dando continuidade ao fio de pensamento que não pode ser interrompido pela morte.

Aqui encontramos uma imagem singular da anticrese, instituto jurídico pelo qual o credor assume a posse dos frutos do bem dado em garantia até que a dívida se cumpra. Transposto ao campo da literatura espiritual, o mecanismo revela uma analogia potente: ao herdar os frutos intelectuais e morais de nossos mortos, colocamo-nos em sua posição. O que eles semearam em vida passa a ser colhido por nós, seus sucessores. Somos, por assim dizer, credores de uma herança espiritual que nos é confiada, e ao vesti-la, tornamo-nos responsáveis por levá-la adiante.

Mas há ainda um nível mais profundo: o de assumir a perspectiva de segunda pessoa. Quando vestimos a camisa dos nossos mortos, não apenas recordamos sua presença (terceira pessoa), nem apenas falamos de nós mesmos em relação a eles (primeira pessoa), mas passamos a enxergar o mundo tal como eles o viam. Esse é o exercício espiritual de colocar-se no lugar do outro, de adotar seu olhar, sua voz, seu juízo. É o mesmo movimento que Deus fez ao se encarnar em Jesus Cristo: a Palavra eterna não permaneceu distante, mas assumiu a nossa carne, viveu como nós, olhou o mundo a partir de dentro. Ali, a conversão se deu pela proximidade radical, pela perspectiva do “Tu” que se dirige a cada um de nós.

O jardim da memória, portanto, não é apenas lugar de saudade. É espaço de conversão, onde a vida que partiu se torna matéria para a vida presente. É também um ateliê de responsabilidade: quem veste a fibra dos seus não pode deixar de carregar consigo o peso de seus princípios. E é, sobretudo, um caminho de Cristo: assim como Ele nos revestiu de Si mesmo, somos chamados a revestir-nos daquilo que os nossos nos deixaram, enxergando o mundo com um olhar que ultrapassa os limites da carne e nos faz ver o que não se vê.

Bibliografia sugerida

  • Bíblia Sagrada

    • São Paulo: “Revesti-vos do Senhor Jesus Cristo” (Rm 13,14).

    • “Todos vós que fostes batizados em Cristo vos revestistes de Cristo” (Gl 3,27).

  • Santo Agostinho

    • Confissões, especialmente o Livro X, sobre memória: a memória como espaço onde Deus fala ao homem e onde os mortos permanecem vivos.

  • Hans Urs von Balthasar

    • Teodramática: sobre a perspectiva da segunda pessoa, a encarnação como o “Tu” de Deus que nos chama ao diálogo.

  • Joseph Ratzinger (Bento XVI)

    • Introdução ao Cristianismo: sobre a fé como encontro de pessoas, não apenas adesão a ideias abstratas.

  • Paul Ricoeur

    • A Memória, a História, o Esquecimento: sobre a responsabilidade de guardar a memória como ato ético.

  • Maurice Halbwachs

    • A Memória Coletiva: a dimensão comunitária da lembrança e sua atualização nos símbolos.

  • José de Oliveira Ascensão

    • Direito Civil – Reais: para o estudo técnico da anticrese, como base da metáfora literária aqui aplicada.

A rede da memória viva: sementes, cinzas e a cultura cristã da solidariedade

Quando adubamos uma planta com as cinzas de um ente querido, ela deixa de ser apenas um ser vegetal para tornar-se um símbolo vivo de memória. Seus frutos, flores ou perfumes passam a carregar consigo não apenas nutrientes do solo, mas também a lembrança de uma vida que amamos e que permanece entre nós. No gesto de cuidar da planta, estamos também cuidando da memória, e ao usufruir de seus frutos, participamos de uma continuidade que ultrapassa a morte.

Essa dinâmica, porém, alcança uma dimensão ainda mais profunda quando ocorre a troca de sementes e mudas entre famílias diferentes. Nesse ato de doação, o que se transmite não é apenas um bem material, mas uma herança espiritual: cada família passa a cultivar, em sua própria casa, a memória de alguém que não conheceu em vida, mas que passa a ser honrado e cuidado como se fosse seu.

Dessa forma, cria-se uma rede de sucessão e solidariedade, em que a memória dos mortos não é confinada ao espaço privado, mas circula e se partilha em comunidade. Isso tem consequências culturais e espirituais de grande valor:

  • Cuidado redobrado: uma planta recebida de outra família não será tratada como qualquer outra, mas com uma reverência especial, porque nela repousa a lembrança de alguém amado por outrem.

  • Comunhão de memórias: a troca de sementes une famílias em vínculos de solidariedade espiritual, ampliando a comunhão dos santos para além do espaço do templo e penetrando o espaço cotidiano da vida.

  • Preparação para a morte: a prática educa para uma verdadeira ars moriendi (arte de bem morrer), não no sentido de resignação, mas de esperança: morrer não é desaparecer, mas continuar vivo no cuidado dos que permanecem.

  • Serviço nos méritos de Cristo: ao compartilhar não apenas frutos, mas memórias transfiguradas, os cristãos aprendem a servir uns aos outros inspirados nas virtudes de seus entes queridos, fazendo frutificar na terra o que já floresce no Céu.

Esse gesto dialoga com símbolos antigos. Entre povos indígenas, havia o entendimento de que os mortos transmitiam suas forças aos vivos pela assimilação ritualizada. No entanto, a fé cristã eleva esse mesmo instinto a uma profundidade maior: não se trata de uma absorção material, mas de uma comunhão espiritual, em que as virtudes dos que partiram são cultivadas como sementes que florescem na vida comunitária.

Assim, a simples troca de sementes e mudas se torna um ato de caridade e memória, onde o biológico se une ao espiritual e o cultural se abre ao eterno. O que Mendel viu na genética como transmissão de características encontra aqui seu sentido mais pleno: não apenas utilidade, mas herança de amor e solidariedade cristã.

No fim, cada planta cultivada com as cinzas de alguém é um testemunho da ressurreição: da morte brota a vida, da perda nasce a comunhão, e da memória surge a esperança.

Do mal menor à vida que permanece: memória, cinzas e continuidade

A morte de um ente querido é um momento de dor intensa, mas também de reflexão sobre como honrar a vida que se foi. No Rio de Janeiro, onde resido, essa responsabilidade se torna particularmente desafiadora. Muitos cemitérios da cidade têm se mostrado vulneráveis à ação pública, que, em vez de proteger, pode expor os mortos ao vilipêndio, afrontando a memória e a dignidade das famílias.

Diante dessa realidade, minha família optou pela cremação de meu pai no Jardim da Saudade, na Sulacap. As cinzas, longe de serem descartadas, foram utilizadas para nutrir as plantas do próprio cemitério. Essa decisão, embora conflituosa à luz do cristianismo tradicional — que veda a cremação —, representou um mal menor diante da possibilidade de violação da dignidade do corpo.

Mas a experiência sugere algo ainda mais profundo: a transformação da matéria em vida. Se eu tivesse um jardim, faria das cinzas de meus entes queridos adubo para plantas, quem sabe uma árvore frutífera. Do fruto dessa árvore, nutrido pelas cinzas, eu me alimentaria, como os povos indígenas fazem em certos rituais de assimilação simbólica. É um canibalismo indireto, mas de reverência e memória, não de violência. Cada fruto, cada folha, cada flor seria uma ponte viva entre passado e presente, entre morte e vida, uma extensão concreta do legado daqueles que amamos.

Essa prática nos ensina que a morte não precisa ser passiva, e a memória não precisa ser apenas sentimental. Ela pode ser ativa, tangível, nutrir a vida ao redor e prolongar, de forma simbólica, as qualidades e virtudes dos que partiram. Do mal inevitável da morte, pode emergir um bem — a continuidade da vida, a preservação da memória e a afirmação de que o amor verdadeiro transcende o corpo físico.

No Jardim da Saudade, essa transição torna-se visível: o corpo de meu pai, transformado em cinzas, nutre o espaço, perpetua-se nas plantas e mantém viva a lembrança de quem ele foi. O mal menor da cremação se converte, assim, em um bem maior: a dignidade, o respeito e a memória que continuam a existir de forma concreta, sensível e viva.

A res derelictae como bem público dominical municipal: teoria e prática no Direito Administrativo Brasileiro

 Resumo: 

O presente artigo analisa a classificação de bens imóveis urbanos abandonados como res derelictae, enquadrando-os na categoria de bens públicos dominicais municipais. A partir da doutrina e da jurisprudência, discute-se a função social desses bens, a vedação constitucional à usucapião e as implicações práticas dessa classificação no contexto brasileiro.

1. Introdução

No Direito Administrativo brasileiro, os bens públicos são classificados conforme sua destinação e uso. Entre essas categorias, destacam-se os bens dominicais, que pertencem ao Estado sem uma destinação pública específica. Este artigo explora a aplicação dessa classificação a bens imóveis urbanos abandonados, conhecidos como res derelictae, e analisa as implicações jurídicas e sociais dessa abordagem.

2. Bens Públicos Dominicais: Conceito e Classificação

O Código Civil de 1916 estabelecia três categorias de bens públicos: de uso comum do povo, de uso especial e dominicais. Essa classificação foi mantida pelo Código Civil de 2002, que, em seu artigo 99, §3º, define os bens dominicais como aqueles pertencentes ao Estado sem destinação específica, podendo ser utilizados ou alienados conforme o interesse público.

No contexto municipal urbano, bens imóveis abandonados podem ser classificados como res derelictae, ou seja, coisas abandonadas pelo proprietário, sem dono conhecido, suscetíveis de apropriação por quem delas tomar posse. Essa classificação implica que tais bens são considerados de propriedade do Estado, mas sem uma destinação pública específica, enquadrando-se na categoria de bens dominicais municipais.

3. Função social dos bens públicos dominicais

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso XXIII, estabelece que a propriedade atenderá à sua função social. Essa diretriz aplica-se também aos bens públicos dominicais, que devem ser utilizados de forma a promover o bem-estar coletivo e o interesse público.

No caso das res derelictae, a função social pode ser atendida por meio da ocupação e utilização desses bens para fins habitacionais, culturais ou comunitários, desde que observadas as normas legais e respeitados os direitos fundamentais.

4. Vedação à usucapião de bens públicos

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 183, §3º, e artigo 191, parágrafo único, veda expressamente a usucapião de bens públicos. Essa vedação visa proteger o patrimônio público e garantir que os bens públicos sejam utilizados conforme sua destinação e interesse coletivo.

No entanto, a doutrina e a jurisprudência divergem quanto à aplicação dessa vedação aos bens dominicais. Alguns juristas defendem que, por não estarem afetados a uma finalidade pública específica, os bens dominicais poderiam ser sujeitos à usucapião, desde que atendida a função social da propriedade.

5. Prática Administrativa e Desafetação de Bens Públicos

A administração pública, ao identificar bens públicos dominicais sem utilização específica, pode promover sua desafetação, ou seja, retirar a destinação pública anterior, permitindo sua alienação ou utilização para outros fins. No caso das res derelictae, a desafetação pode ser realizada por meio de edital público, visando à regularização fundiária e à promoção do interesse social.

Entretanto, a prática administrativa no Brasil enfrenta desafios relacionados à burocracia, corrupção e falta de transparência, o que pode comprometer a efetividade dessas ações e resultar em disputas fundiárias e injustiças sociais.

6. Jurisprudência Relevante

A jurisprudência brasileira tem se posicionado no sentido de que é possível o manejo de interditos possessórios em litígios entre particulares sobre bens públicos dominicais, desde que a ocupação atenda à função social da propriedade. O Superior Tribunal de Justiça tem reconhecido a possibilidade de posse sobre bens públicos dominicais quando a disputa ocorre entre particulares, considerando a função social da propriedade como critério para a solução dos conflitos possessórios.

7. Conclusão

A classificação de bens imóveis urbanos abandonados como res derelictae e sua inclusão na categoria de bens públicos dominicais municipais oferece uma abordagem teórica para a gestão e utilização desses bens, visando atender à função social da propriedade. Contudo, a efetividade dessa abordagem depende da atuação transparente e eficiente da administração pública, que deve garantir que a utilização desses bens promova o interesse coletivo e respeite os direitos fundamentais.

Referências Bibliográficas:

  • CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 27. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

  • DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Atlas, 2018.

  • GARCIA, José dos Santos. Direito Administrativo Brasileiro. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

  • MARTINS, Ives Gandra da Silva. Direito Administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2016.

  • PEREIRA, Maria Chaves Lobo; AZEVEDO, Thiago Augusto Galeão de. "A impossibilidade de usucapião em bem público como obstáculo jurídico para garantia da dignidade de sujeitos marginalizados". Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação, v. 10, n. 1, jan. 2024.

Memória, Virtude e Justiça: notas sobre a lei e a sociedade sustentadas nos méritos de Cristo

Em uma sociedade onde todos são historiadores e biógrafos uns dos outros, a justiça se funda na memória coletiva. Cada indivíduo, cada ato relevante à vida social e jurídica, é registrado e preservado. O juiz, diante desses registros, não precisa de longas investigações: basta a verificação do testemundo. Quando se trata de um servidor público, sua autoridade decorre da fé pública, exceto se houver indícios de contaminação ideológica ou herética, capazes de distorcer a verdade e gerar falsidade documental. Nesse ambiente, as vítimas não são esquecidas; a consciência coletiva mantém vivos os fatos, tornando a prescrição quase inexistente, pois os crimes permanecem presentes na memória social (Ricoeur, 2000).

Mais do que registros formais, é possível imaginar uma sociedade em que a virtude exemplar se torna o alicerce da justiça. O homem mais virtuoso, aquele que imita sistematicamente Cristo, é documentado em seus atos e comportamentos, tornando-se modelo público para a comunidade. Seus feitos não são apenas inspiração moral: eles se convertem em referência jurídica, orientando o comportamento dos demais e criando um ciclo virtuoso de instrução ética (Hursthouse, 1999; Royce, 1908). A justiça, nesse cenário, não se reduz a regras abstratas; ela se realiza na prática diária da virtude, nos méritos de Cristo (Leão XIII, 1891).

Dentro desse contexto, a prescrição deixa de ser um mecanismo técnico neutro e revela seu caráter injusto. Historicamente, ela tem servido para proteger os poderosos e perpetuar a impunidade, esquecendo o dano causado às vítimas. Como observou Bolsonaro, “pela ignorância, o povo pereceu” — a prescrição atua de maneira similar, permitindo que crimes se apaguem na ausência de memória ou de vigilância ética (Bobbio, 1992; Gros, 2013). Por contraste, uma sociedade virtuosa transforma a lembrança documentada e a prática moral em antídotos contra a impunidade, tornando impossível que crimes graves fiquem sem responsabilização (Ricoeur, 2000).

A lei, nesse modelo, cumpre aquilo que Bastiat defendeu: ela se torna mecanismo coletivo de legítima defesa, protegendo os indivíduos sem se tornar instrumento de espoliação (Bastiat, 1850). O problema da perversão da lei se resolve quando se resolve o problema do esquecimento coletivo: crimes e injustiças só persistem na impunidade quando fatos relevantes se perdem na memória social ou não são devidamente registrados. Assim, a memória coletiva garante que a lei seja aplicada com justiça, verdade e coerência.

Quando registros e memória se combinam com a prática virtuosa, a sociedade se torna autossustentável juridicamente e moralmente. A verdadeira justiça não é apenas aplicação de normas, mas restauração da ordem virtuosa em Cristo, em que a memória das vítimas é preservada, os atos virtuosos guiam o comportamento social e a prescrição deixa de ser um instrumento de injustiça (Turner, 1920; Hursthouse, 1999).

Bibliografia

  • Bastiat, Frédéric. A Lei. Paris: Guillaumin, 1850.

  • Bobbio, Norberto. Lei, Moralidade e Poder. Brasília: Editora Universidade, 1992.

  • Gros, Frédéric. Sobre a Verdade e a Justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

  • Hursthouse, Rosalind. Virtue Ethics. Oxford: Oxford University Press, 1999.

  • Leão XIII. Rerum Novarum. Vaticano, 1891.

  • Ricoeur, Paul. Memória e Esquecimento. Paris: Éditions du Seuil, 2000.

  • Royce, Josiah. A Filosofia da Lealdade. Boston: Houghton Mifflin, 1908.

  • Turner, Frederick Jackson. The Frontier in American History. New York: Henry Holt, 1920.

Afinidade de valores e concórdia social: uma aplicação da Rerum Novarum

A encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII, permanece um guia vivo para a compreensão da justiça social e das relações humanas no âmbito econômico e profissional. Mais do que meras prescrições legais ou econômicas, ela nos ensina que a concórdia entre classes não se constrói apenas por imposições externas, mas pela afinidade moral e ética entre aqueles que convivem e colaboram.

Essa afinidade manifesta-se de forma prática quando um empresário declara abertamente os princípios que guiam sua atividade — por exemplo, ao afirmar que não contrata comunistas. Tal declaração não é apenas política ou ideológica: é uma expressão de valores que definem seu conceito de justiça, trabalho e responsabilidade social.

Quando um profissional identifica-se com esses valores e se apresenta para servir esse empresário, estabelece-se uma relação que transcende a mera troca econômica. Surge uma comunidade de princípios, uma consonância ética que fortalece a confiança e cria um espaço propício à cooperação verdadeira. A experiência mostra que relações baseadas em afinidade de valores tendem a ser mais duradouras, produtivas e harmoniosas, refletindo a visão da Rerum Novarum de que a justiça social se realiza na prática da responsabilidade mútua, e não apenas na observância de regras externas.

Podemos identificar três dimensões centrais dessa harmonia:

  1. Confiança mútua – Quando princípios éticos coincidem, decisões difíceis tornam-se menos conflituosas, e a segurança no relacionamento profissional aumenta. O empregado confia na integridade do empregador; o empregador confia no discernimento e na lealdade do empregado.

  2. Concordância política e social – Afinidades profundas criam um terreno comum que elimina tensões ideológicas. Não é a uniformidade imposta, mas a afinidade escolhida, consciente e voluntária, que consolida a paz social.

  3. Comunidade ética e concórdia – A convergência de valores transforma a relação profissional em um pequeno microcosmo da sociedade justa, onde a cooperação reflete o respeito à dignidade humana e ao bem comum.

Esta perspectiva revela que a amizade e a colaboração profissional podem e devem ser expressões de uma ordem moral maior. Escolher com quem trabalhar não é apenas uma questão estratégica; é um ato de discernimento ético, que promove a estabilidade social e o florescimento de relações humanas autênticas. Ao reconhecer e servir aqueles que compartilham seus valores, o indivíduo participa de uma rede de integridade e solidariedade, realizando na prática os ensinamentos da Rerum Novarum.

Em última análise, a afinidade de valores demonstra que a justiça social não depende apenas de leis, regulamentações ou impostos, mas do compromisso consciente de cada pessoa em agir segundo princípios claros e coerentes. Nesse sentido, servir a alguém que compartilha sua visão de mundo é, simultaneamente, ato de lealdade, estratégia prudente e exercício de virtude, reforçando a ideia de que a harmonia social começa na escolha consciente dos parceiros com quem se constrói a vida em comum.

O referencial humano e a dualidade do pertencimento: entre dois países e a luz de Cristo

Em física, o conceito de referencial nos ensina que a observação de um fenômeno depende do ponto de vista adotado. Um objeto em movimento, por exemplo, pode parecer estático ou em deslocamento dependendo do observador. De maneira análoga, na experiência humana e espiritual, a percepção do mundo e de si mesmo também depende do referencial que adotamos.

Quando um indivíduo busca tomar dois ou mais países como um mesmo lar em Cristo, por Cristo e para Cristo, ele se encontra em uma experiência de deslocamento constante, tanto geográfico quanto espiritual. Em certos momentos, ele se percebe como ave, movendo-se livremente entre culturas e tradições, voando sobre fronteiras físicas e mentais. Em outros, sente-se como árvore, enraizado em princípios, costumes e memórias, absorvendo a vida do solo cultural que o sustenta. Essa dualidade é semelhante à da luz, que se manifesta ora como onda, ora como partícula: não há contradição, mas sim complementaridade e dependência do referencial.

O homem, ao assumir múltiplos lares, aprende a navegar entre esses referenciais. Sua visão do mundo se expande, sua espiritualidade se enraíza em múltiplos solos e seu senso de liberdade cresce. Ele compreende que pertencer a um país não é apenas residir nele, mas incorporá-lo à vida de fé, reconhecendo Cristo como centro de sua experiência em qualquer lugar.

A experiência de “tomar dois países como um só lar em Cristo” exige, portanto, sensibilidade para reconhecer os momentos de voo e de enraizamento, assim como na física reconhecemos que a luz é simultaneamente onda e partícula. É a capacidade de mudar de referencial sem perder a essência, de integrar múltiplas perspectivas sem perder a unidade espiritual.

Assim, a dualidade antropológica que emerge dessa experiência não é conflito, mas expressão de plenitude. O homem que se aventura em múltiplos lares em Cristo aprende, à semelhança da luz, a revelar-se de formas diferentes, adaptando-se ao referencial sem jamais abandonar sua natureza fundamental. Entre o voo da ave e a solidez da árvore, entre a liberdade e o enraizamento, reside a verdadeira arte de viver em plenitude, por Cristo e para Cristo, em qualquer solo que se escolha chamar de lar.