1. Introdução
Na vida cristã, conservar não é apenas manter tradições ou hábitos sociais, mas permanecer fiel ao mistério da cruz. Há, porém, uma confusão recorrente entre o verdadeiro conservadorismo, que se enraíza no sacrifício de Cristo, e o conservantismo, que se limita a preservar o que convém, ainda que em contradição com a verdade. Essa distinção se torna especialmente clara na história da Igreja, em particular nas disputas litúrgicas que atravessam os séculos.
2. O conservadorismo: conservar a dor de Cristo
O verdadeiro conservadorismo é fidelidade à cruz. Conservar significa guardar a dor de Cristo como caminho, verdade e vida. É a adesão firme à tradição apostólica e à liturgia que, ao longo dos séculos, testemunhou a centralidade do sacrifício eucarístico.
Após o Concílio de Trento (1545–1563), São Pio V promulgou, em 1570, a bula Quo Primum Tempore, que codificou o Missal Romano para todo o Ocidente. Nesse documento, o Papa declarou que o rito assim promulgado deveria ser conservado “para sempre”, a fim de assegurar a unidade e a pureza do culto. O conservadorismo, nesse sentido, é permanecer na linha da fidelidade: conservar aquilo que une ao Cristo crucificado e protege a fé contra inovações arbitrárias.
3. O conservantismo: conservar o que é conveniente, ainda que dissociado da verdade
O conservantismo, em contraste, é a conservação do que é cômodo e socialmente aceitável, ainda que em desacordo com a tradição. Ele se apresenta como prudência pastoral, mas muitas vezes revela apenas cálculo humano.
No século XX, a reforma litúrgica promovida após o Concílio Vaticano II abriu espaço para interpretações diversas, muitas delas conduzindo à banalização do sacrifício eucarístico. A celebração versus populum, embora não prescrita pelo concílio, se tornou a norma em grande parte do mundo católico. Esse deslocamento expressa bem o conservantismo: conservar a adaptação ao espírito da época, ainda que em detrimento da sacralidade do rito.
A decisão do Papa Francisco, em 2021, de restringir severamente a celebração da missa tridentina pelo motu proprio Traditionis Custodes, é vista por muitos fiéis como ruptura com a promessa de São Pio V. Para os que se alinham ao conservadorismo autêntico, tal medida não apenas ignora a tradição, mas consagra o conservantismo: a manutenção da conveniência pastoral sobre a fidelidade à verdade litúrgica.
4. A polidez como verniz monstruoso
A polidez, quando fruto da caridade, é virtude; mas quando usada para encobrir a traição à verdade, torna-se um verniz monstruoso. É a cortesia dos fariseus, que cuidavam do exterior mas esqueciam a justiça, a misericórdia e a fidelidade (cf. Mt 23,23–28).
No âmbito eclesial, isso se traduz na atitude de considerar “falta de educação” a crítica aos erros ou abusos, quando na verdade a falta de caridade é tolerar o erro em nome da boa convivência. O verniz da polidez pode até manter uma aparência de ordem, mas mina por dentro a fidelidade a Cristo.
5. Veritas e Convenientia: uma chave teológica
A tradição filosófica e teológica distingue entre veritas (a verdade como conformidade com o ser) e convenientia (aquilo que convém, que é adequado ou útil em determinado contexto).
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A veritas, no cristianismo, é Cristo mesmo: “Eu sou a verdade” (Jo 14,6). Ela é absoluta, imutável e não depende da aprovação humana. Conservar a verdade significa conservar Cristo em sua integridade — sua doutrina, sua liturgia, sua cruz.
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A convenientia, embora tenha um papel legítimo — pois a Igreja sempre buscou adaptar a forma sem trair o conteúdo —, pode se corromper quando se torna critério supremo. Nesse caso, o que convém ao mundo ou às circunstâncias se sobrepõe ao que é verdadeiro.
O conservadorismo autêntico tem como medida a veritas: a dor de Cristo, o sacrifício que salva. O conservantismo, por outro lado, tem como medida a convenientia: o que é politicamente viável, socialmente aceitável ou pastoralmente cômodo.
Quando a convenientia se emancipa da veritas, nasce a hipocrisia. Quando a polidez se separa da verdade, surge o verniz monstruoso.
6. Consequências espirituais e sociais
A confusão entre conservadorismo e conservantismo gera graves consequências:
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Na Igreja, abre caminho para inovações arbitrárias e para a desvalorização do sacrifício da missa.
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Na política e na sociedade, legitima arranjos que relativizam a verdade em nome da estabilidade e da conveniência.
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Na vida pessoal, conduz à hipocrisia, na qual se prefere parecer educado e civilizado a assumir a radicalidade do Evangelho.
7. Conclusão
O cristão não é chamado a conservar o que é conveniente, mas aquilo que lhe foi confiado: a cruz de Cristo. O conservadorismo, enraizado na tradição e no sacrifício, é fidelidade viva. O conservantismo, por sua vez, é infidelidade disfarçada de prudência e polidez.
A distinção entre veritas e convenientia mostra que apenas a verdade pode fundamentar a caridade. Sem verdade, a polidez degenera-se em cumplicidade, e a civilidade se torna máscara de traição.
Entre a cruz e o verniz, a escolha é clara: conservar a dor de Cristo, tornando-se herdeiro do seu sacrifício, ou mascarar a fé sob o peso de uma conveniente hipocrisia.
📚 Referências:
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Concílio de Trento (1545–1563).
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Pio V, Quo Primum Tempore (1570).
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Paulo VI, Missale Romanum (1969).
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Bento XVI, Summorum Pontificum (2007).
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Francisco, Traditionis Custodes (2021).
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Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, q.16 (De veritate).