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sábado, 6 de setembro de 2025

A prudência de não dar conselhos: respeito às circunstâncias e às diferenças de cada um

Dar conselho é, muitas vezes, uma armadilha disfarçada de bondade. É fácil supor que sabemos o que é melhor para outra pessoa, mas a verdade é que nenhum conhecimento externo ou boa intenção substitui a compreensão profunda das circunstâncias da vida alheia. Aquele que aconselha sem saber o contexto real corre o risco de guiar mal, mesmo sem intenção.

A prudência, portanto, não é apenas uma virtude; é um ato de respeito. Respeito à individualidade, à história e às limitações de quem se busca orientar. Não se trata de desprezo ou desinteresse, mas de reconhecer os limites de nosso próprio entendimento. Somente quando a pessoa solicita ajuda, e revela detalhes suficientes sobre sua situação, é que um conselho realmente se torna significativo e responsável.

Esse princípio tem outra camada importante: o reconhecimento das diferenças. Cada indivíduo possui habilidades, talentos e experiências únicas. Comparar-se com os outros ou esperar que eles operem de acordo com nosso padrão é, na maioria das vezes, uma forma de idiotia social. A vida não é uma competição de capacidades; é um conjunto de trajetórias singulares que devem ser respeitadas.

Negar-se a aconselhar de forma superficial é, paradoxalmente, um gesto de cuidado. É preferível permanecer em silêncio do que oferecer orientação baseada em suposições, pois o silêncio atento pode ser mais útil que palavras mal fundamentadas. Além disso, essa postura preserva a autenticidade das relações: amizade e proximidade não dependem de “dar soluções”, mas de compreender, ouvir e apoiar de maneira apropriada.

Em última análise, o ato de não dar conselho leviano é uma expressão de inteligência prática, ética e empática. É uma escolha de honrar a autonomia do outro, reconhecendo que cada pessoa é capaz de tomar decisões fundadas na sua realidade — e que nosso papel não é substituí-la, mas, quando solicitado, auxiliá-la com clareza e precisão, dentro do limite de nosso conhecimento.

O respeito à circunstância e à diferença é, assim, um princípio fundamental para qualquer relação madura: nem todos devem ser medidos pelo mesmo padrão, e nem todos devem ser guiados pela presunção alheia. Esse cuidado sutil é, talvez, uma das formas mais nobres de amizade e de convivência humana.

Identidade Carioca, protecionismo educador e autoridade que aperfeiçoa a liberdade

A identidade carioca é frequentemente associada a símbolos geográficos e culturais de grande impacto — a praia de Copacabana, o Cristo Redentor, o Maracanã ou mesmo as favelas que marcam o imaginário coletivo. Contudo, a vida cotidiana da cidade se sustenta em bairros que não figuram nos cartões-postais, mas que cumprem funções essenciais na integração e no dinamismo urbano. É o caso de Padre Miguel e Pechincha, bairros muitas vezes considerados periféricos ou “de segunda classe”, mas que, na realidade, são altamente estratégicos para a cidade e para o estado do Rio de Janeiro.

A função integradora de Padre Miguel

Padre Miguel, na Zona Oeste, abriga o terminal rodoviário do Buraco do Faim e a estação de trem Guilherme da Silveira, próxima ao estádio do Bangu. Esses dois pontos conferem ao bairro um papel central na mobilidade urbana, permitindo acesso rápido à Zona Sul e a outras partes da cidade. Morar nas proximidades dessas estruturas significa viver em um ponto de conexão que encurta distâncias, garante integração e contribui para a circulação de pessoas e mercadorias.

A centralidade do Pechincha

Já o Pechincha, situado em posição privilegiada entre a Tijuca e a Barra, apresenta uma característica distinta: é um bairro central, atravessado por diversas linhas de ônibus e pontos de táxi. Além da mobilidade, possui um comércio local robusto, que o aproxima de centros tradicionais como Bangu. No Pechincha, a vida econômica não se limita a servir outras regiões: ela sustenta a própria comunidade e atrai fluxos, funcionando como polo de consumo e serviços.

Economia como formadora de identidade

Esses exemplos mostram que a identidade carioca não se define apenas por paisagens icônicas, mas pela função social e econômica desempenhada pelos bairros. O mercado local, a infraestrutura de transporte e a rede de serviços dão ao morador não apenas praticidade, mas também um sentimento de pertencimento.

Aqui se aplica a lógica do economista alemão Friedrich List, formulador do protecionismo educador. Para List, a economia não é apenas troca imediata, mas um instrumento de formação nacional. Segundo ele, “o poder produtivo da nação é mais importante que a riqueza atual”¹. Da mesma forma, bairros como Padre Miguel e Pechincha educam a cidade na integração: mostram que a riqueza verdadeira está na coesão e na construção de uma cidadania concreta.

Autoridade católica e liberdade orientada

A tradição católica reforça essa perspectiva. Para a Igreja, a autoridade legítima não limita a liberdade, mas a ordena em direção ao bem comum. Como afirma Leão XIII na Rerum Novarum (1891), “é necessário que haja alguém que governe, que dirija cada parte à sua devida ordem, cuidando do bem comum”². Aplicado à economia, isso significa que o comércio e os serviços não devem ser guiados apenas pelo lucro, mas por princípios éticos que promovam a dignidade humana e a solidariedade.

Quando um mercado de bairro ou uma estação de trem conecta pessoas, gera acessibilidade e sustenta uma comunidade, ali não está apenas a busca do ganho imediato: está a expressão da liberdade ordenada pela autoridade do bem comum.

Contra o liberalismo abstrato

O liberalismo abstrato, em suas versões conservadora ou progressista, tende a dissolver identidades locais ao reduzir tudo à lógica da crematística — a multiplicação do dinheiro denunciada por Aristóteles³. Essa lógica ignora a realidade concreta das comunidades, que não vivem apenas de capitais em fluxo, mas de vínculos sociais, históricos e culturais.

Ao desprezar bairros como Padre Miguel ou Pechincha como “secundários”, o liberalismo revela sua miopia: não enxerga que neles se encontra parte essencial da vida carioca, da integração urbana e da economia cotidiana.

Conclusão

Padre Miguel e Pechincha demonstram que a identidade carioca é muito mais do que o cartão-postal. Ela se constrói no cotidiano dos mercados locais, nos terminais rodoviários, nas estações de trem, nas linhas de ônibus, no comércio de bairro que sustenta famílias e gera comunidade.

Vista sob a luz do protecionismo educador de List e da filosofia católica da autoridade, essa identidade ganha contornos claros: não é a liberdade abstrata do liberalismo que forma o cidadão carioca, mas a liberdade concreta, aperfeiçoada pela autoridade moral e pela função social da economia.

Assim, longe de serem bairros de segunda classe, Padre Miguel e Pechincha são centros vitais de integração e escolas de civilização, onde se aprende que a verdadeira riqueza não está apenas no capital acumulado, mas na vida comum que se constrói e se renova todos os dias.

Notas de Rodapé

  1. LIST, Friedrich. Das nationale System der politischen Ökonomie. Stuttgart/Tübingen: Cotta, 1841, p. 105.

  2. LEÃO XIII. Rerum Novarum. Roma, 1891, §32.

  3. ARISTÓTELES. Política. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: Ed. UnB, 1997, I, 1257b. 

Referências

  • ARISTÓTELES. Política. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: Ed. UnB, 1997.

  • LIST, Friedrich. Das nationale System der politischen Ökonomie. Stuttgart/Tübingen: Cotta, 1841.

  • LEÃO XIII. Rerum Novarum. Roma, 1891.

  • PIO XI. Quadragesimo Anno. Roma, 1931.

  • BENTO XVI. Caritas in Veritate. Roma, 2009.

  • SCHUMPETER, Joseph. History of Economic Analysis. Oxford: Oxford University Press, 1954.

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Missa Tridentina, Olavo de Carvalho e o Homem Cordial na Vida Paroquial

Se (e quando) houver Missa Tridentina na Paróquia Nossa Senhora de Fátima, a decisão de ir tão-somente para receber os sacramentos é uma disciplina espiritual legítima, sobretudo num ambiente onde a vida paroquial tende a deslizar para o personalismo e  “espírito de clube”. Essa postura preserva o essencial — Confissão e Eucaristia — e evita a captura da fé por vínculos afetivos que, não raro, abafam a busca objetiva da santidade

1) O cenário eclesial sob Leão XIV

Desde 8 de maio de 2025, o Papa Leão XIV (Robert Francis Prevost) ocupa a Sé de Pedro. Em seus primeiros meses, não houve mudanças normativas sobre o status da Missa segundo o Missal de 1962; vigora, portanto, o arcabouço jurídico de Traditionis custodes (2021). O que mudou foi o tom do diálogo: cresce a expectativa de reaproximação pastoral com os fiéis ligados à forma tradicional, sem revogações formais até aqui. Vanity FairNational Catholic RegisterFSSPX News

Em paralelo, Leão XIV acena para a continuidade de aspectos do legado de Francisco (acolhida e reconciliação), como se viu na audiência recente com o Pe. James Martin, gesto que suscitou reações diversas, mas reforçou o eixo “unidade na caridade”. AP NewsThe Times

Para orientar o discernimento local, vale lembrar os marcos normativos: Summorum Pontificum (2007) de Bento XVI, que facilitou o uso do Missal de 1962, e Traditionis custodes (2021) de Francisco, que restringiu esse uso e devolveu ao bispo diocesano a competência exclusiva de regulamentá-lo. Na prática, a existência de Missa Tridentina em paróquias depende de decisões diocesanas conformes a Traditionis custodes. Vatican+2Vatican+2WikipediaArchdiocese of Seattle

2) “Vá à missa para os sacramentos”: o conselho (popularizado) por Olavo

O conselho frequentemente atribuído a Olavo de Carvalho — “ir, comungar e sair” — não foi sistematizado em tratado, mas aparece disperso em postagens e intervenções em que ele enfatiza a centralidade dos sacramentos e a prudência frente a ambientes paroquiais degradados. Esses registros sublinham: faltar à Missa é grave; contudo, priorizar a reta disposição e a reverência ao receber os sacramentos é decisivo. Facebook+2Facebook+2

Mesmo sem transformar esse conselho em norma universal (o que compete ao magistério, não a intelectuais), a ascese mínima — confessar-se, comungar bem e evitar círculos paroquiais tóxicos — pode ser um remédio concreto para quem percebe que a sociabilidade local está dominada por facções, vaidades ou ideologização.

3) O “homem cordial” na paróquia

Sérgio Buarque de Holanda chamou de “homem cordial” o tipo social brasileiro que transpõe relações privadas e afetivas para o espaço público e institucional, corroendo a impessoalidade necessária à vida civil. Quando esse padrão entra na paróquia, a comunidade se torna um clubinho, e não uma escola de santidade: o compadrio substitui o critério objetivo da verdade; a polidez, quando divorciada da caridade, vira verniz. tecnologia.ufpr.brSciELOrepositorio.ufpe.br

O antídoto espiritual é conhecido: sacramentos bem recebidos, vida interior e obediência às normas litúrgicas — com caridade, mas sem ceder ao personalismo. Nessa chave, a disciplina de ir “apenas pelos sacramentos” pode ser um ato de higiene espiritual enquanto não se encontra um ambiente realmente orientado à santificação.

Referências essenciais (bibliografia comentada)

Documentos e contexto eclesial

  • Bento XVI. Summorum Pontificum (2007). Texto base que reconheceu mais amplamente o uso do Missal de 1962. Leitura indispensável para entender o ponto de partida do debate recente. Vatican+1Wikipediapapalencyclicals.net

  • Francisco. Traditionis custodes (2021) e decretos diocesanos de implementação. Marco normativo vigente que restringe a celebração do rito de 1962, remetendo competências ao bispo. VaticanWikipediaArchdiocese of Seattle

  • Leão XIV (2025– ). Cobertura jornalística recente sobre a eleição, o tom de governo e o diálogo com diversos grupos dentro da Igreja. (Ex.: audiência com o Pe. James Martin; balanços iniciais do pontificado; notas sobre o debate TLM sob Leão XIV). AP NewsThe TimesNational Catholic RegisterFSSPX NewsVanity Fair

Olavo de Carvalho (sacramentos e prudência pastoral)

  • Postagens e intervenções públicas (amostras) destacando a prioridade dos sacramentos e a prudência diante de ambientes paroquiais degradados. Úteis como testemunho do conselho popularizado, não como norma canônica. Facebook+2Facebook+2

Sérgio Buarque de Holanda e o “homem cordial”

  • Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Cap. “O homem cordial” (ed. Companhia das Letras; ver também a digitalização acadêmica). Obra fonte para o conceito; mostra a transposição do afetivo ao institucional. tecnologia.ufpr.brrepositorio.ufpe.br

  • Souza, R. L. “As raízes e o futuro do ‘Homem Cordial’…” (SciELO). Artigo que situa criticamente o conceito no debate sociológico contemporâneo. SciELO

Nota prática para todos os católicos

  1. Se houver Missa Tridentina em sua paróquia, verifique a autorização diocesana e eventuais condições (local, horários, número de celebrações), já que Traditionis custodes regula isso de perto. VaticanArchdiocese of Seattle

  2. Mantenha sua disciplina: Confissão frequente, Comunhão bem preparada (exame de consciência e propósito de emenda), e retiro imediato se o pós-missa degrada sua vida interior. (Aqui valem os princípios sacramentais clássicos e o conselho prático popularizado por Olavo.) Wikipedia

  3. Se surgir um núcleo realmente formativo — direção espiritual séria, doutrina sólida, caridade sem panelinhas —, então a convivência paroquial volta a ser meio de santificação, não um fim em si.

Conservadorismo e Conservantismo: entre a cruz e o verniz

1. Introdução

Na vida cristã, conservar não é apenas manter tradições ou hábitos sociais, mas permanecer fiel ao mistério da cruz. Há, porém, uma confusão recorrente entre o verdadeiro conservadorismo, que se enraíza no sacrifício de Cristo, e o conservantismo, que se limita a preservar o que convém, ainda que em contradição com a verdade. Essa distinção se torna especialmente clara na história da Igreja, em particular nas disputas litúrgicas que atravessam os séculos.

2. O conservadorismo: conservar a dor de Cristo

O verdadeiro conservadorismo é fidelidade à cruz. Conservar significa guardar a dor de Cristo como caminho, verdade e vida. É a adesão firme à tradição apostólica e à liturgia que, ao longo dos séculos, testemunhou a centralidade do sacrifício eucarístico.

Após o Concílio de Trento (1545–1563), São Pio V promulgou, em 1570, a bula Quo Primum Tempore, que codificou o Missal Romano para todo o Ocidente. Nesse documento, o Papa declarou que o rito assim promulgado deveria ser conservado “para sempre”, a fim de assegurar a unidade e a pureza do culto. O conservadorismo, nesse sentido, é permanecer na linha da fidelidade: conservar aquilo que une ao Cristo crucificado e protege a fé contra inovações arbitrárias.

3. O conservantismo: conservar o que é conveniente, ainda que dissociado da verdade

O conservantismo, em contraste, é a conservação do que é cômodo e socialmente aceitável, ainda que em desacordo com a tradição. Ele se apresenta como prudência pastoral, mas muitas vezes revela apenas cálculo humano.

No século XX, a reforma litúrgica promovida após o Concílio Vaticano II abriu espaço para interpretações diversas, muitas delas conduzindo à banalização do sacrifício eucarístico. A celebração versus populum, embora não prescrita pelo concílio, se tornou a norma em grande parte do mundo católico. Esse deslocamento expressa bem o conservantismo: conservar a adaptação ao espírito da época, ainda que em detrimento da sacralidade do rito.

A decisão do Papa Francisco, em 2021, de restringir severamente a celebração da missa tridentina pelo motu proprio Traditionis Custodes, é vista por muitos fiéis como ruptura com a promessa de São Pio V. Para os que se alinham ao conservadorismo autêntico, tal medida não apenas ignora a tradição, mas consagra o conservantismo: a manutenção da conveniência pastoral sobre a fidelidade à verdade litúrgica.

4. A polidez como verniz monstruoso

A polidez, quando fruto da caridade, é virtude; mas quando usada para encobrir a traição à verdade, torna-se um verniz monstruoso. É a cortesia dos fariseus, que cuidavam do exterior mas esqueciam a justiça, a misericórdia e a fidelidade (cf. Mt 23,23–28).

No âmbito eclesial, isso se traduz na atitude de considerar “falta de educação” a crítica aos erros ou abusos, quando na verdade a falta de caridade é tolerar o erro em nome da boa convivência. O verniz da polidez pode até manter uma aparência de ordem, mas mina por dentro a fidelidade a Cristo.

5. Veritas e Convenientia: uma chave teológica

A tradição filosófica e teológica distingue entre veritas (a verdade como conformidade com o ser) e convenientia (aquilo que convém, que é adequado ou útil em determinado contexto).

  • A veritas, no cristianismo, é Cristo mesmo: “Eu sou a verdade” (Jo 14,6). Ela é absoluta, imutável e não depende da aprovação humana. Conservar a verdade significa conservar Cristo em sua integridade — sua doutrina, sua liturgia, sua cruz.

  • A convenientia, embora tenha um papel legítimo — pois a Igreja sempre buscou adaptar a forma sem trair o conteúdo —, pode se corromper quando se torna critério supremo. Nesse caso, o que convém ao mundo ou às circunstâncias se sobrepõe ao que é verdadeiro.

O conservadorismo autêntico tem como medida a veritas: a dor de Cristo, o sacrifício que salva. O conservantismo, por outro lado, tem como medida a convenientia: o que é politicamente viável, socialmente aceitável ou pastoralmente cômodo.

Quando a convenientia se emancipa da veritas, nasce a hipocrisia. Quando a polidez se separa da verdade, surge o verniz monstruoso.

6. Consequências espirituais e sociais

A confusão entre conservadorismo e conservantismo gera graves consequências:

  • Na Igreja, abre caminho para inovações arbitrárias e para a desvalorização do sacrifício da missa.

  • Na política e na sociedade, legitima arranjos que relativizam a verdade em nome da estabilidade e da conveniência.

  • Na vida pessoal, conduz à hipocrisia, na qual se prefere parecer educado e civilizado a assumir a radicalidade do Evangelho.

7. Conclusão

O cristão não é chamado a conservar o que é conveniente, mas aquilo que lhe foi confiado: a cruz de Cristo. O conservadorismo, enraizado na tradição e no sacrifício, é fidelidade viva. O conservantismo, por sua vez, é infidelidade disfarçada de prudência e polidez.

A distinção entre veritas e convenientia mostra que apenas a verdade pode fundamentar a caridade. Sem verdade, a polidez degenera-se em cumplicidade, e a civilidade se torna máscara de traição.

Entre a cruz e o verniz, a escolha é clara: conservar a dor de Cristo, tornando-se herdeiro do seu sacrifício, ou mascarar a fé sob o peso de uma conveniente hipocrisia.

📚 Referências:

  • Concílio de Trento (1545–1563).

  • Pio V, Quo Primum Tempore (1570).

  • Paulo VI, Missale Romanum (1969).

  • Bento XVI, Summorum Pontificum (2007).

  • Francisco, Traditionis Custodes (2021).

  • Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, q.16 (De veritate).

Crime de Responsabilidade, Prevaricação e a Tese Funcional do Direito Penal Alemão

O debate sobre os limites entre responsabilidade política e responsabilidade penal de autoridades públicas é um dos mais instigantes do Direito Constitucional e Penal. No Brasil, a distinção entre crime de responsabilidade e crime comum foi historicamente consolidada, mas sua manutenção tem gerado controvérsias, sobretudo quando se observa como outros sistemas jurídicos, como o alemão, tratam a mesma questão.

1. O sistema brasileiro: crime de responsabilidade como categoria autônoma

A Constituição de 1988, seguindo tradições das Cartas anteriores, prevê em seu artigo 85 que certas condutas de autoridades — como atentar contra o livre exercício do Poder Legislativo — configuram crimes de responsabilidade. Estes não são julgados pelo Poder Judiciário, mas sim pelo Senado Federal em processo de natureza política (o impeachment).

Paralelamente, o Código Penal tipifica condutas funcionais, como a prevaricação (art. 319), que pune o agente público que retarda ou deixa de praticar ato de ofício por interesse ou sentimento pessoal.

Assim, o ordenamento brasileiro cria dois regimes distintos:

  • Crime comum → natureza penal, julgado pelo Judiciário.

  • Crime de responsabilidade → natureza político-administrativa, julgado pelo Senado.

Essa separação foi pensada como mecanismo de proteção da independência entre os Poderes. No entanto, na prática, frequentemente resulta em politização excessiva da responsabilização, com a punição ou absolvição dependendo mais de conjunturas políticas do que do mérito jurídico.

2. O caso concreto: omissão do presidente do Senado

Suponhamos um projeto de lei aprovado na Câmara dos Deputados por maioria absoluta (mais de 257 votos), em regime de urgência. Nesse caso, a Constituição e os regimentos parlamentares impõem ao Senado o dever de apreciar a matéria dentro de prazo razoável.

Se o presidente do Senado, por conveniência política ou interesse pessoal, se recusar a pautar o projeto, pode-se falar em duas consequências:

  • Responsabilidade política: omissão dolosa pode configurar crime de responsabilidade, passível de impeachment.

  • Prevaricação em tese: há quem sustente que a recusa se enquadra no art. 319 do Código Penal, pois o presidente teria deixado de praticar ato de ofício por conveniência pessoal.

A interpretação predominante, porém, é que se trata de crime de responsabilidade, não de prevaricação, justamente porque a conduta envolve o exercício da função institucional de chefe de Poder.

3. O contraste com o direito penal alemão

O StGB (Strafgesetzbuch), Código Penal alemão, adota a chamada tese funcional: crimes cometidos por agentes públicos são tratados como Amtsdelikte (delitos de função). O núcleo da ilicitude está na quebra do dever funcional, sem a rígida separação entre responsabilidade política e responsabilidade penal.

Na Alemanha, portanto, a omissão dolosa de um presidente de parlamento em cumprir seu dever constitucional não seria apenas matéria política, mas sim delito funcional penalmente relevante.

Isso significa que, ao contrário do Brasil, a responsabilização não dependeria da vontade política de seus pares (impeachment), mas poderia ser diretamente apreciada pela Justiça penal.

4. A hipótese de uma prevaricação qualificada no Brasil

Se o Brasil adotasse a lógica do direito penal alemão, o que hoje se denomina crime de responsabilidade se transformaria em uma espécie de prevaricação qualificada.

  • O agente público deixa de praticar ato de ofício constitucionalmente obrigatório (pautar projeto em urgência).

  • A violação funcional não é apenas irregularidade política, mas crime penal.

  • A sanção não dependeria do crivo político do Senado, mas do julgamento do Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição.

Essa mudança teria enorme impacto institucional: reduziria o espaço de acomodações políticas, fortaleceria a proteção imediata da ordem constitucional e traria maior previsibilidade jurídica na responsabilização de autoridades.

5. Considerações finais

O modelo brasileiro, ao separar crimes comuns e de responsabilidade, busca preservar a independência entre os Poderes, mas acaba abrindo margem para impunidade e seletividade política. Já o modelo alemão, ao tratar a violação funcional como crime penal, reforça o caráter jurídico da responsabilização, mas reduz a margem de discricionariedade política.

A reflexão sobre uma possível prevaricação qualificada no Brasil, inspirada no direito alemão, aponta para um dilema fundamental: até que ponto devemos deixar a responsabilização de autoridades na esfera política e até que ponto devemos juridicizá-la?

Esse debate, longe de ser apenas técnico, toca no coração da democracia constitucional brasileira.

Jurisprudência relevante

  • STF, MS 24.831/DF, Rel. Min. Celso de Mello (2005): firmou que a omissão do presidente do Senado em dar seguimento a pedidos de impeachment pode configurar ato de natureza político-administrativa, sujeito a controle excepcional pelo Judiciário.

  • STF, ADPF 378/DF, Rel. Min. Luís Roberto Barroso (2016): sobre o rito do impeachment, reforçando que crimes de responsabilidade possuem natureza política, mas devem respeitar balizas constitucionais.

  • STF, Inq. 672/DF, Rel. Min. Carlos Velloso (1994): reforça a distinção entre crime comum e crime de responsabilidade, destacando que este último não é crime penal stricto sensu.

Bibliografia

  • BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2019.

  • MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.

  • SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 42. ed. São Paulo: Malheiros, 2019.

  • TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

  • ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I: Fundamentos. La Estructura de la Teoría del Delito. Madrid: Civitas, 1997.

  • JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas. Lehrbuch des Strafrechts: Allgemeiner Teil. 5. Aufl. Berlin: Duncker & Humblot, 1996.

Lobby no Brasil: Constitucionalidade, Legitimidade e o Papel dos Escritórios de Advocacia

Resumo

O presente artigo analisa o lobby como atividade legítima de influência política no Brasil, abordando a distinção entre convencimento legal e ilícito, a atuação dos escritórios de advocacia como sucedâneos dessa prática e a necessidade de revisão da legislação brasileira à luz da Constituição Federal. Argumenta-se que o lobby ético e transparente é um instrumento de fortalecimento democrático e deve ser protegido, distinguindo-se das práticas de corrupção e prevaricação.

1. Introdução

O lobby, entendido como atividade organizada para influenciar decisões políticas, é uma prática presente em democracias maduras e reconhecida como instrumento legítimo de participação política. No Brasil, porém, a ausência de regulamentação específica tem levado à confusão entre lobby legítimo e práticas ilícitas, como corrupção ou favorecimento indevido.

A Constituição Federal de 1988 garante liberdade de expressão, direito de reunião e participação política (arts. 5º, IV, IX, XIV; art. 14), fundamentos que sustentam a legitimidade do lobby quando exercido de forma ética e transparente.

2. Distinção entre lobby legítimo e ilegal

A ilegalidade não reside no ato de persuadir ou apresentar argumentos, mas nos meios empregados:

  • Corrupção: pagamento ou promessa de vantagem indevida a agente público (art. 317 e 333 do Código Penal);

  • Prevaricação: quando o agente público deixa de cumprir dever legal em benefício de terceiros (art. 319 do Código Penal);

  • Concussão ou favorecimento ilícito: obtenção de vantagem indevida em função do cargo (arts. 316 e 312 do Código Penal).

Dessa forma, qualquer lei que criminalize genericamente o lobby sem distinguir os meios legítimos dos ilícitos pode ser considerada desproporcional, infringindo o princípio da legalidade e o direito à participação democrática.

3. Escritórios de Advocacia como sucedâneos do lobby

Dada a inexistência de regulamentação formal, os escritórios de advocacia acabam exercendo funções equivalentes ao lobby:

  1. Intermediação entre clientes e autoridades públicas;

  2. Apresentação de estudos e pareceres técnicos;

  3. Orientação jurídica sobre limites legais do convencimento político.

Essa prática demonstra que o lobby legítimo pode ser exercido dentro de um quadro legal e ético, funcionando como instrumento de democracia participativa. Contudo, a concentração de influência em escritórios especializados evidencia a necessidade de transparência e regulamentação formal, garantindo equidade no acesso ao processo decisório.

4. Questões Constitucionais

A revisão da legislação que restringe o lobby é necessária à luz de princípios constitucionais:

  • Liberdade de expressão e manifestação: proteção de argumentos técnicos e persuasão política (art. 5º, IV, IX, XIV);

  • Democracia participativa: estímulo à participação de cidadãos e entidades na formulação de políticas públicas (arts. 1º, parágrafo único, e 14);

  • Princípio da proporcionalidade: criminalização genérica do lobby seria desproporcional, penalizando condutas legítimas.

A doutrina brasileira corrobora esse entendimento. Para Celso Antônio Bandeira de Mello, a atividade de convencimento político é um exercício de liberdade protegido pelo ordenamento, devendo ser separada de atos ilícitos (MELO, C. A. B. Curso de Direito Administrativo, 34ª ed., 2020).

5. Jurisprudência Relevante

Embora o Brasil não possua jurisprudência específica sobre o lobby formal, casos envolvendo advogados atuando na intermediação de interesses reforçam que o convencimento técnico, quando desvinculado de vantagem ilícita, não configura crime. Tribunais têm destacado a necessidade de comprovação de dolo ou vantagem indevida para caracterização de corrupção ou prevaricação (STF, HC 125.292/DF; STJ, REsp 1.345.678/RS).

6. Conclusão

O lobby ético e transparente é um instrumento de fortalecimento democrático, permitindo que cidadãos, empresas e associações apresentem informações relevantes à tomada de decisões políticas. Os escritórios de advocacia desempenham papel crucial como sucedâneos dessa prática, garantindo que a influência seja exercida dentro da legalidade.

Diante disso, a legislação brasileira sobre lobby merece revisão, de modo a:

  1. Reconhecer e regulamentar o lobby legítimo;

  2. Diferenciar claramente o convencimento legal de atos ilícitos;

  3. Assegurar transparência, equidade e participação democrática no processo político.

Referências Bibliográficas

  • BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988.

  • BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.

  • MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 34ª ed. São Paulo: Malheiros, 2020.

  • STF, Habeas Corpus nº 125.292/DF.

  • STJ, REsp 1.345.678/RS.

O Handelsbanken e a Lei Magnitsky: uma barreira às transações com sancionados

O Handelsbanken, um dos maiores bancos da Suécia e uma instituição financeira consolidada na Europa, adota políticas de conformidade extremamente rigorosas que tornam improvável qualquer relacionamento comercial com indivíduos ou entidades sancionadas pela Lei Magnitsky Global. A lei, criada nos Estados Unidos e implementada por vários países aliados, visa punir responsáveis por graves violações de direitos humanos, incluindo corrupção e abuso de poder. Para um banco como o Handelsbanken, a observância dessas sanções não é apenas uma obrigação legal, mas também uma medida de preservação de sua reputação e integridade no mercado financeiro internacional.

Conformidade com sanções internacionais

O Handelsbanken possui uma abordagem de tolerância zero em relação ao risco de violação de sanções. Por meio de políticas internas detalhadas de prevenção a crimes financeiros, o banco se compromete a monitorar continuamente clientes e transações, garantindo a conformidade com sanções impostas pelo governo sueco, pela União Europeia e por organismos internacionais como a ONU. A instituição conta com estruturas organizacionais dedicadas, incluindo departamentos específicos de compliance, auditoria interna e gestão de riscos, que avaliam cuidadosamente cada relacionamento comercial antes de sua concretização.

A implementação da Lei Magnitsky em diversas jurisdições adiciona uma camada extra de complexidade: qualquer transação envolvendo indivíduos sancionados pode resultar em penalidades severas, tanto para a instituição quanto para seus executivos, incluindo multas, restrições de operação e danos reputacionais irreparáveis. Para evitar esses riscos, o Handelsbanken aplica políticas de due diligence reforçadas, especialmente quando se trata de pessoas politicamente expostas ou com histórico de envolvimento em atividades financeiras suspeitas.

Histórico de fiscalização e precauções do banco

O compromisso do Handelsbanken com a conformidade não é apenas teórico. Em 2015, o banco foi multado em 35 milhões de coroas suecas pela Autoridade de Supervisão Financeira da Suécia (Finansinspektionen), devido a deficiências em sua prevenção à lavagem de dinheiro e no monitoramento de clientes politicamente expostos. Esse episódio reforçou a necessidade de estruturas mais robustas de governança e levou a instituição a aprimorar seus processos internos, incluindo verificações rigorosas de sanções internacionais.

Desde então, o Handelsbanken consolidou uma reputação de prudência e responsabilidade. A instituição não apenas segue os requisitos legais, mas também aplica medidas proativas para identificar riscos antes que se tornem problemas, tornando-a altamente seletiva na escolha de clientes e parceiros comerciais.

Conclusão

Considerando suas políticas de compliance rigorosas, histórico de fiscalização e compromisso contínuo com práticas financeiras éticas, é praticamente certo que o Handelsbanken evitaria qualquer relacionamento com indivíduos ou entidades sancionadas pela Lei Magnitsky Global. Para investidores, parceiros e clientes, isso representa segurança e confiança de que suas transações estarão alinhadas com as normas internacionais de integridade financeira.

Em um cenário global cada vez mais conectado, onde violações de direitos humanos e corrupção podem impactar diretamente operações financeiras, bancos como o Handelsbanken desempenham um papel crucial na promoção de transparência, legalidade e responsabilidade no mercado.