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segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Nota de diário - 01-09-2025

Enquanto navegava pela Steam, deparei-me com um mod de Civilization V que transformava a ilha de Dejima em uma Maravilha do Mundo. O autor, buscando fundamentação histórica, baseou-se nas obras de Marius B. Jansen, o historiador holandês que estudou profundamente a modernização do Japão. Eu, que ainda não conhecia Jansen, não pude deixar de incluir suas obras na minha lista de desejos da Amazon Americana.

Movido pela estudiosidade, comecei a questionar o ChatGPT sobre a geopolítica de Dejima. A resposta me abriu portas para outros mundos: referências japonesas, contextos históricos mais amplos, detalhes que faziam a ilha pulsar como um centro estratégico e cultural. Segui as indicações, tentando acessar livrarias e sebos japoneses, mas encontrei restrições de acesso. Uma VPN se tornou então a chave para atravessar essas barreiras digitais.

Apesar dos obstáculos, a experiência foi uma viagem produtiva, ainda que eu não tenha saído do lugar. Cada página consultada, cada obra descoberta, cada explicação do ChatGPT expandiu não apenas meus conhecimentos de geografia e política, mas também minha própria imaginação criativa. Saí dessa jornada com a base necessária para desenvolver minha própria versão de um mod de Civilization V, agora com Dejima não apenas como um ponto no mapa, mas como um símbolo de estratégia, cultura e história.

 José Octavio Dettmann

 Rio de Janeiro, 01 de setembro de 2025 (data da postagem original). 

Dejima e as ilhas-mercado: fronteiras, redes e estratégia civilizacional

A pequena ilha artificial de Dejima, construída em 1636 no porto de Nagasaki, representa muito mais do que um entreposto comercial: é um caso paradigmático de ilha-janela e estado-mercado subordinado, onde economia, política e cultura se entrelaçam. Ao longo da história, outros territórios desempenharam funções semelhantes, como Visby na Liga Hanseática, Veneza na Idade Média e Cingapura na contemporaneidade. A análise de Dejima, à luz de conceitos de história, sociologia, economia e estratégia, permite compreender como fronteiras, redes e estratégia civilizacional se combinam.

Dejima: ilha-janela e estado-mercado

Durante o período Tokugawa, o Japão adotou a política do sakoku, fechando-se quase completamente ao mundo exterior. Dejima surgiu como uma janela seletiva:

  • Função econômica: intermediação de mercadorias e tecnologias, principalmente por mercadores holandeses.

  • Função intelectual: transmissão de conhecimento científico, médico e tecnológico (rangaku), vital para a modernização posterior.

  • Autonomia política: nula; Dejima era subordinada ao xogunato.

  • Estado-mercado: unidade econômica diferenciada, com regras próprias de comércio e circulação de informações, mas sem autonomia plena de uma cidade-Estado.

Visby, Veneza e Cingapura: comparações históricas

Critério Dejima Visby Veneza Cingapura
Autonomia política Nula Parcial Plena Plena
Função econômica Janela seletiva Entreposto hanseático Potência mediterrânea Hub global
Identidade Estado-mercado subordinado Estado-mercado quase cidade-Estado Cidade-Estado mercantil Estado-mercado moderno
Rede social Nó estratégico de informações Rede hanseática Rotas e alianças mediterrâneas Rede global logística e financeira
O que não se vê Capital intelectual acumulado Influência política e econômica Poder cultural e diplomático Eficiência sistêmica e integração global

Visby funcionava como entreposto na Hansa, Veneza como cidade-Estado mercantil autônoma, e Cingapura como estado-mercado moderno. Dejima, embora subordinada, representa o mesmo princípio: uma ilha-mercado capaz de gerar impactos estruturais invisíveis.

Fronteira, lealdade e redes

Frederick Jackson Turner vê a fronteira como espaço de inovação e formação do caráter social. Dejima é uma fronteira controlada, permitindo ao Japão absorver conhecimento sem perder sua matriz cultural.

Josiah Royce complementa: a civilização se sustenta por meio da lealdade coletiva, que garante coesão e propósito. Em Dejima, a disciplina e compromisso dos intérpretes, tradutores e oficiais do xogunato asseguravam que o fluxo de conhecimento fosse benéfico, e não corrosivo.

Manuel Castells, ao analisar as sociedades em rede, mostra que o poder não reside apenas em territórios, mas na circulação de informações. Dejima funciona como um nó de rede: mercadores e estudiosos interligados permitem que o conhecimento se expanda para além da ilha.

Frédéric Bastiat nos lembra que o que se vê — o comércio visível de mercadorias — é apenas parte do efeito. O que não se vê é o capital intelectual e tecnológico acumulado, que molda sociedades futuras.

Philip Bobbitt, estrategista moderno, amplia o conceito de fronteira para o plano da segurança e da estratégia civilizacional. Ele argumenta que Estados devem projetar poder em múltiplos níveis (militar, econômico, ideológico e tecnológico) para preservar sua integridade. Dejima é um precursor dessa lógica: uma fronteira que preserva soberania, acumula conhecimento e aumenta o poder estratégico do Japão sem expor o país à colonização.

Ilhas-mercado como laboratórios de civilização

Dejima, Visby, Veneza e Cingapura compartilham uma lógica comum: territórios limitados em espaço, mas vastos em influência, capazes de conectar mundos distintos. Eles funcionam como:

  1. Fronteiras: pontos de contato entre culturas, tecnologias e economias.

  2. Nós de redes sociais: espaços onde circulação de informações transforma poder e capacidade civilizacional.

  3. Laboratórios estratégicos: territórios que acumulam capital invisível (econômico, intelectual, tecnológico) e aumentam a projeção de poder do Estado ou da comunidade.

Dejima, em particular, mostra que uma fronteira controlada, mesmo subordinada, pode gerar eficiência estratégica, absorver conhecimento e preparar um país para a modernidade sem subordinação externa — uma lição que atravessa séculos.

Conclusão

A análise de Dejima, à luz de Turner, Royce, Castells, Bastiat e Bobbitt, revela que as ilhas-mercado são mais do que entrepostos comerciais: são fronteiras kairológicas, nós de redes sociais e laboratórios de civilização estratégica. O que se vê é o comércio; o que não se vê é o capital intelectual, a inovação e a capacidade de projetar poder, protegendo a soberania e garantindo o progresso cultural.

Dejima demonstra, historicamente, que a força de uma civilização reside na capacidade de construir fronteiras inteligentes, onde disciplina, abertura seletiva e redes estratégicas se combinam para criar efeitos invisíveis de longo alcance.

📚 Bibliografia consolidada

  • Turner, Frederick Jackson. The Frontier in American History. Henry Holt & Co., 1920.

  • Royce, Josiah. The Philosophy of Loyalty. Macmillan, 1908.

  • Castells, Manuel. The Rise of the Network Society. Blackwell, 1996.

  • Bastiat, Frédéric. Ce qu’on voit et ce qu’on ne voit pas. 1850.

  • Bobbitt, Philip. The Shield of Achilles: War, Peace, and the Course of History. Knopf, 2002.

  • Boxer, Charles R. Jan Compagnie in Japan, 1600–1850. Springer, 1950.

  • Lane, Frederic C. Venice: A Maritime Republic. Johns Hopkins University Press, 1973.

  • Dollinger, Philippe. The German Hansa. Stanford University Press, 1970.

  • Toby, Ronald P. State and Diplomacy in Early Modern Japan. Stanford University Press, 1984.

  • Huff, W. G. The Economic Growth of Singapore: Trade and Development in the Twentieth Century. Cambridge University Press, 1994.

Dejima: a ilha que preparou o Japão para a modernização

A história da pequena ilha artificial de Dejima, construída em 1634 na baía de Nagasaki, revela muito mais do que um simples episódio do isolamento japonês. Ela explica por que o Japão, diferentemente de seus vizinhos asiáticos, conseguiu modernizar-se rapidamente no século XIX sem perder a soberania.

1. A função de Dejima no isolamento japonês

Durante o período Tokugawa, o Japão adotou a política de sakoku (“país fechado”), restringindo severamente o contato com estrangeiros. Nesse contexto, Dejima foi concebida como uma zona de contenção: primeiro para os portugueses, depois exclusivamente para os holandeses.

O xogunato via nos portugueses uma ameaça pela propagação do cristianismo, mas percebeu nos holandeses uma oportunidade. Ao contrário dos ibéricos, os comerciantes da Companhia Holandesa das Índias Orientais (VOC) estavam interessados apenas em negócios, não em evangelização. Isso permitiu que os Tokugawa mantivessem um canal de comércio controlado, sem comprometer a ordem política e religiosa do país.

2. A geopolítica de uma ilha-janela

Dejima funcionava como uma janela seletiva para o Ocidente.

  • Controle rígido: os holandeses não podiam sair da ilha sem escolta, nem trazer livros religiosos, nem estabelecer famílias.

  • Fluxo estratégico: em troca de cobre, prata e porcelana, entravam mercadorias europeias, instrumentos científicos e, sobretudo, conhecimento.

  • Rangaku (“estudos holandeses”): médicos, tradutores e estudiosos japoneses absorveram noções de anatomia, astronomia, cartografia e engenharia a partir de manuais e contatos limitados com os holandeses.

Na prática, Dejima era um laboratório geopolítico: o Japão aprendia com o Ocidente, mas sob seus próprios termos.

3. O legado intelectual de Dejima

Embora restrito, o saber que circulava por Dejima acumulou-se como capital intelectual. Algumas áreas foram especialmente decisivas:

  • Medicina: traduções de tratados de anatomia e cirurgia deram origem a escolas médicas de estilo ocidental.

  • Cartografia e navegação: mapas, globos e técnicas de medição ampliaram a visão geográfica japonesa.

  • Ciência militar: manuais de artilharia e fortificação forneceram bases para futuras reformas do exército.

  • Tecnologia e engenharia: instrumentos de precisão e conhecimento de mecânica alimentaram os primeiros experimentos locais.

Esses avanços criaram uma elite de estudiosos capaz de dialogar com o saber ocidental muito antes da abertura forçada dos portos.

4. A modernização Meiji e o contraste com a China

Quando o comodoro Perry ancorou em Edo em 1853, o Japão não partiu do zero. Já existia um acervo de traduções, escolas e técnicos que haviam se formado graças à ponte de Dejima. Isso explica a velocidade com que, após a Restauração Meiji (1868), o país:

  • reformou seu exército em moldes ocidentais,

  • industrializou-se com importação de máquinas e engenheiros,

  • criou uma burocracia moderna,

  • e projetou-se como potência militar em poucas décadas.

O contraste com a China é notável: sem um “Dejima”, o império Qing entrou em contato com o Ocidente em condições de humilhação, submetido a guerras e tratados desiguais. O Japão, em vez disso, utilizou o conhecimento acumulado para negociar de forma mais equilibrada.

Conclusão

Dejima mostra como uma ilha minúscula pôde ter um peso desproporcional na história mundial.

  • Para o Japão, foi a porta estreita que manteve viva a conexão com o Ocidente sem comprometer sua autonomia.

  • Para a geopolítica, foi um caso singular de como um país pode equilibrar isolamento e abertura de forma estratégica.

  • Para a história da modernização, foi o embrião que permitiu ao Japão tornar-se a primeira nação não ocidental a competir de igual para igual com as potências europeias.

Assim, compreender Dejima é compreender a lógica da modernização japonesa: seletiva, estratégica e profundamente consciente da relação entre conhecimento e soberania.

Bibliografia

  • BOXER, C. R. Jan Compagnie in Japan, 1600–1850: An Essay on the Cultural, Artistic and Scientific Influence Exercised by the Hollanders in Japan from the Seventeenth to the Nineteenth Centuries. The Hague: Martinus Nijhoff, 1950.

    Clássico estudo sobre a influência cultural e científica dos holandeses no Japão.

  • GOODMAN, Grant K. Japan: The Dutch Experience. London: Athlone Press, 1986.

    Analisa o papel da VOC e da presença holandesa em Dejima como mediadores de conhecimento.

  • JANSEN, Marius B. The Making of Modern Japan. Cambridge: Harvard University Press, 2000.

    Obra de referência sobre a transição do Japão Tokugawa ao Japão Meiji, com destaque para o papel de Dejima.

  • NISH, Ian. The Iwakura Mission to America and Europe: A New Assessment. Richmond: Japan Library, 1998.

    Mostra como o conhecimento ocidental acumulado no período Tokugawa foi crucial para a diplomacia Meiji.

  • VLASTOS, Stephen (ed.). Mirror of Modernity: Invented Traditions of Modern Japan. Berkeley: University of California Press, 1998.

    Discute como tradições como o Rangaku foram reinterpretadas na modernização japonesa. 

Fontes japonesas e estudos de Rangaku

  • SUGITA, Genpaku. Rangaku Kotohajime (蘭学事始, “O início dos estudos holandeses”). Tóquio, 1815.

    Memórias do médico que traduziu o Kaitai Shinsho (1774), primeira obra de anatomia ocidental publicada no Japão.

  • MAENO, Ryōtaku; SUGITA, Genpaku; NAKAGAWA, Jun’an. Kaitai Shinsho (解体新書, “Nova tradução da anatomia”). Edo, 1774.

    Tradução do tratado anatômico holandês de Kulmus (Ontleedkundige Tafelen), marco fundador da medicina ocidental no Japão.

  • SHIZUKI, Tadao. Riyo-shi Shinsho (暦象新書, “Novo tratado sobre astronomia”), 1798.

    Tradução e adaptação de obras científicas holandesas, incluindo ideias de Newton, sobre gravitação e astronomia.

  • UDAGAWA, Yōan. Seimi Kaisō (舎密開宗, “Introdução à química”), 1837.

    Primeira obra japonesa sistemática sobre química moderna, baseada em fontes holandesas e alemãs.

Estudos japoneses modernos sobre Dejima

  • NAGAZUMI, Yōko. Dejima no Oranda Shōnin (出島のオランダ商人, “Os comerciantes holandeses de Dejima”). Tóquio: Chūō Kōronsha, 1969.

    Estudo detalhado sobre a vida e o comércio dos holandeses confinados em Dejima.

  • ŌHASHI, Yukihiro. Rangaku to Dejima (蘭学と出島, “Os estudos holandeses e Dejima”). Nagasaki: Nagasaki Bunkensha, 1995.

    Explora a relação entre a ilha e o desenvolvimento do Rangaku.

domingo, 31 de agosto de 2025

Projeto Desconexos: da escrita offline ao exercício pleno da liberdade de expressão

Introdução

O Projeto Desconexos nasce de uma experiência simples, mas reveladora: a ausência de internet. O que poderia ser motivo de frustração torna-se ocasião de disciplina e recolhimento. A proposta consiste em transformar esses momentos em espaço de escrita filosófica, ampliando depois para a prática da oralidade e, por fim, para o exercício público da liberdade de expressão em território favorável, notadamente sob a proteção da Primeira Emenda nos Estados Unidos.

Essa trajetória não é inédita: insere-se em uma tradição filosófica, espiritual e política que vai de Agostinho a Milton, de Marco Aurélio a Tocqueville, passando pela retórica clássica e pelo magistério social da Igreja.

1. A filosofia como resistência à desconexão

Sempre que faltar internet, o computador converte-se em terminal de registro filosófico. O tempo outrora consumido pela conectividade contínua torna-se ocasião de escrita meditativa.

Essa prática encontra paralelo na tradição dos diários de retiro. Santo Agostinho escreveu suas Confissões em forma de diálogo íntimo com Deus, buscando ordenar sua vida interior1. Marco Aurélio, em meio a campanhas militares, redigiu as Meditações como guia para si mesmo, não para o público2. Blaise Pascal, por sua vez, deixou fragmentos que seriam reunidos postumamente como Pensées, expressão de um itinerário espiritual e intelectual interrompido3.

Assim também no Projeto Desconexos: se não é possível publicar em tempo real, os rascunhos ficam armazenados, prontos para serem revisados e, eventualmente, publicados. O “desconexo” aqui não indica desordem, mas resistência à dependência do fluxo digital contínuo.

2. A extensão voluntária: da escrita à fala

O projeto amplia-se em uma dimensão voluntária: criar momentos de desconexão mesmo com internet disponível, como forma de higienização da mente. O recurso ao gravador MP4 permite registrar pensamentos falados, que depois podem ser transcritos.

A oralidade ocupa papel central na tradição ocidental. Para Aristóteles, a retórica é a faculdade de discernir, em cada caso, os meios de persuasão possíveis4. Cícero via nela a arte de unir sabedoria e eloquência, sapientia et eloquentia5. O treino da fala, nesse sentido, não é mera técnica, mas parte essencial do cultivo da razão comunicada.

Além disso, a prática da fala solitária tem valor terapêutico. Como nos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, trata-se de um treinamento disciplinado, voltado a ordenar os movimentos interiores6. Nesse caso, a disciplina da fala liberta da inibição social e prepara o caminho para a comunicação pública em vídeo.

3. A Primeira Emenda como horizonte de liberdade

A etapa final do projeto é a transição do discurso privado ao discurso público. Contudo, essa transição não se dá em qualquer ambiente: depende da garantia de liberdade plena, assegurada pela Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos (1791).

John Milton já havia defendido, em sua célebre Areopagitica (1644), que a verdade não teme o confronto, pois só na livre disputa entre ideias se revela superior ao erro7. Alexis de Tocqueville, em A Democracia na América (1835-1840), identificou na liberdade de expressão um dos pilares da vitalidade democrática, permitindo que a sociedade civil corrigisse abusos do poder8.

O Papa Leão XIII, em Rerum Novarum (1891), reafirmou que a vida social deve se ordenar pela verdade e pela justiça, não pelas conveniências arbitrárias dos poderosos9. Nesse sentido, a liberdade de expressão não é apenas direito civil, mas exigência moral da própria vida em comunidade.

Assim, o deslocamento para os Estados Unidos não é mera estratégia geográfica, mas condição para que a palavra possa realizar sua vocação de testemunhar a verdade sem medo de perseguição.

Conclusão

O Projeto Desconexos configura-se como uma escada de progressão intelectual e espiritual:

  1. Escrita offline – transformar a ausência de internet em ocasião filosófica, como nos diários de retiro de Agostinho, Marco Aurélio e Pascal.

  2. Oralidade gravada – treinar a fala e a mente, em consonância com a tradição retórica e espiritual.

  3. Discurso público – exercer a liberdade de expressão sob a proteção da Primeira Emenda, realizando plenamente a missão de comunicar a verdade.

Trata-se, portanto, de um projeto que integra disciplina pessoal, prática pedagógica e estratégia política, testemunhando que a liberdade interior pode ser cultivada em qualquer circunstância até alcançar sua expressão mais alta: a palavra livre, dita em verdade diante de todos.

Notas

  1. Santo AGOSTINHO. Confissões. Trad. Maria Luísa Jardim Amarante. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991.

  2. MARCO AURÉLIO. Meditações. Trad. William Hazlitt. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

  3. PASCAL, Blaise. Pensées. Paris: Gallimard, 1977.

  4. ARISTÓTELES. Retórica. Trad. Manuel Alexandre Júnior. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.

  5. CÍCERO. De Oratore. Trad. E.W. Sutton. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1942.

  6. LOYOLA, Inácio de. Exercícios Espirituais. São Paulo: Loyola, 2000.

  7. MILTON, John. Areopagitica. Londres, 1644.

  8. TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

  9. LEÃO XIII. Rerum Novarum. 1891.

sábado, 30 de agosto de 2025

O “tiro no côco” e a rejeição à caridade

Em certa ocasião, o presidente João Figueiredo, último governante do regime militar brasileiro, foi interpelado por uma criança: “O que o senhor faria se vivesse de salário mínimo?” A resposta atravessou a memória coletiva: *“Daria um tiro no côco.”*¹ A frase, além da grosseria, evidencia uma recusa em admitir a realidade dura da maioria da população. Mas mais do que um episódio histórico, ela pode ser lida como metáfora espiritual.

Suponhamos que um ser ainda na pequena via — a etapa inicial da vida cristã, onde se aprende a confiar em Deus e a aceitar a própria pequenez — perguntasse a alguém com potencial de sancionado pela Lei Magnitsky² se aceitaria viver de caridade. A resposta, provavelmente, seria equivalente à de Figueiredo: um repúdio violento, como um “tiro no côco”.

A pequena via: o caminho da confiança

Santa Teresinha do Menino Jesus definiu a “pequena via” como o abandono confiante à misericórdia divina, no reconhecimento de que nada temos de nós mesmos³. Nesse itinerário espiritual, viver de caridade não é humilhação, mas plenitude, pois significa confiar na providência que se manifesta no amor dos outros. Como disse São Paulo: “Nada tenho que não tenha recebido” (1Cor 4,7).

O sancionado e a falsa autonomia

O oposto da pequena via é a lógica do poder corrupto. A Lei Magnitsky, aprovada inicialmente nos EUA em 2012, pune indivíduos envolvidos em violações graves de direitos humanos e corrupção⁴. Quem é alvo de tais medidas é, via de regra, alguém que acumulou riqueza ilícita e depende da aparência de soberania para manter seu prestígio. Para tais pessoas, viver de caridade seria abdicar não apenas de bens, mas da identidade construída sobre o domínio.

Cristo advertiu: “Como é difícil para os ricos entrar no Reino de Deus! É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus” (Mt 19,23-24). A dificuldade não é a posse material em si, mas o apego que torna impossível reconhecer a própria dependência de Deus.

A recusa da caridade como morte interior

O “tiro no côco”, nesta leitura simbólica, representa uma incapacidade de aceitar a graça. O homem que idolatra o poder vê na caridade não a expressão do amor, mas um atentado contra sua vaidade. Assim como Figueiredo não concebia viver com salário mínimo, também o sancionado não concebe viver de esmola.

No entanto, para a fé cristã, recusar a caridade é recusar a vida. A Escritura é clara: “Se alguém tiver bens deste mundo e vir seu irmão padecer necessidade, mas lhe fechar o coração, como pode permanecer nele o amor de Deus?” (1Jo 3,17). A incapacidade de receber ou dar caridade é, portanto, sinal de morte espiritual.

Conclusão

A analogia entre o episódio histórico e o campo espiritual mostra que o apego aos bens e ao prestígio deforma o olhar. O ser na pequena via aceita sua pequenez e se abre ao dom; o sancionado, preso à ilusão da autossuficiência, prefere “dar um tiro no côco” a se deixar amar. Em termos cristãos, a verdadeira dignidade não está em não precisar dos outros, mas em reconhecer que tudo é graça.

Notas

  1. Declaração de João Figueiredo a uma criança que lhe perguntou sobre viver com salário mínimo, noticiada na imprensa brasileira no início da década de 1980.

  2. Refere-se à Lei Magnitsky Global (2016), derivada do Magnitsky Act de 2012, sancionada nos EUA, que pune agentes de violações de direitos humanos e corrupção.

  3. Santa Teresinha do Menino Jesus, Manuscritos Autobiográficos (Manuscrito C, 2v).

  4. Sobre a Lei Magnitsky, ver: “The Global Magnitsky Human Rights Accountability Act”, U.S. Code, 22 USC §2656 (2016).

O Demonstrativo de Evolução da Dívida (DED) e sua natureza jurídica segundo o Código de Defesa do Consumidor: análise com jurisprudência recente (2023–2025)

1. Introdução

No contexto de crescente endividamento das famílias brasileiras, multiplicam-se informações distorcidas a respeito do Demonstrativo de Evolução da Dívida (DED), frequentemente apresentado como um recurso “milagroso” capaz de zerar obrigações financeiras. Este artigo visa esclarecer, à luz do Código de Defesa do Consumidor (CDC), a natureza jurídica do DED, fundamentando-se em dispositivos legais e jurisprudência recente.

2. Fundamentos legais e reflexos doutrinários

O art. 6º, inciso III, do CDC garante como direito básico do consumidor a “informação adequada e clara” sobre produtos e serviços, incluindo suas características e custos. Em operações de crédito, isso abrange a evolução da dívida, encargos e saldo devedor, embasando o dever de transparência, derivado também da boa-fé objetiva (art. 422 do Código Civil).

Doutrinadores como Marinoni e Mitidiero ressaltam que uma prova escrita (como demonstrativo) só surte efeito processual completo se atender aos requisitos legais, especialmente nos embargos à monitória, conforme exigidos pelo CPC art. 700 e art. 702 §§ 2º e 3º Tribunal de Justiça do Paraná.

3. O DED: natureza jurídica e real utilidade

Embora o DED não seja previsto normativamente por esse nome, sua exigibilidade deriva do direito à informação (CDC) e da transparência contratual. Sua função essencial é:

  • Permitir conferência da legalidade da evolução do débito;

  • Ajudar a identificar encargos abusivos;

  • Fundamentar contestação em negociações, órgãos administrativos ou judiciais.

Não é, portanto, um instrumento que extingue dívidas, mas um recurso de controle jurídico e defesa do consumidor.

4. Jurisprudência recente (2023–2025): decisões relevantes

(i) Embargos à monitória e demonstrativo discriminado de débito

Em decisões do Tribunal de Justiça do Paraná, foi confirmada a necessidade de apresentação de demonstrativo discriminado e atualizado da dívida para conhecimento do excesso de execução em embargos à monitória Tribunal de Justiça do Paraná. Isso evidencia que documentos claros e discriminados são imprescindíveis para contestar valores cobrados.

(ii) Exigência de demonstrativo para execução líquida e certa

Em outra decisão do TJPR sobre execução com cédula de crédito bancário, entendeu-se que a existência de demonstrativo de débito contendo encargos expressamente indicados preenche os requisitos de certeza e liquidez necessários à execução Tribunal de Justiça do Paraná. Isso reforça que o demonstrativo é elemento essencial para fundamentar atos executórios.

(iii) Supressão de defesa por ausência de documentação

No Superior Tribunal de Justiça, reconheceu-se, em 2023, a presunção de veracidade dos cálculos do credor quando o devedor, reiteradamente, não apresenta documentos necessários, ainda que essa presunção seja relativa e admitida prova em contrário na fase de execução Supremo Tribunal de Justiça. Ou seja, a ausência de dados robustos (como o demonstrativo) pode prejudicar a defesa do devedor.

5. Limites e potencialidades do DED

Limites:

  • Não extingue automaticamente a obrigação dívida;

  • Não assegura devolução de valores sem comprovação de abusividade;

  • Exige análise técnica, muitas vezes por peritos ou advogados especializados.

Potencialidades:

  • Embasa reclamações administrativas (Procon, consumidor.gov.br);

  • Fundamenta revisões administrativas ou judiciais fundamentadas em CDC (Súmula 297 do STJ);

  • Serve de prova robusta em ações revisionais ou monitórias.

6. Conclusão

O Demonstrativo de Evolução da Dívida (DED), ainda que não nomeado na lei, tem sua exigência respaldada no direito à informação (art. 6º, III, CDC) e no dever de transparência e boa-fé objetiva. Sua natureza jurídica é instrumental: transparência, controle e defesa do consumidor.

A jurisprudência recente é clara: demonstrativos discriminados são fundamentais em embargos à monitória e execuções, atuando como baliza probatória e, em alguns casos, impedindo a presunção de veracidade dos cálculos do credor. Sem eles, o devedor corre risco de ter sua defesa fragilizada.

Portanto, o DED não “zera dívidas”, mas reforça a capacidade do consumidor de verificar, questionar e revisar valores, fortalecendo sua posição jurídica na relação com instituições financeiras.

Referências jurisprudenciais

  • TJPR: É imprescindível demonstrativo discriminado e atualizado para contestar excesso em embargos à monitória Tribunal de Justiça do Paraná.

  • Mesmo com simples demonstrativo de débito contendo encargos, a dívida é considerada líquida e certa para fins executórios Tribunal de Justiça do Paraná.

  • STJ (2023): Os cálculos do credor são presumidos verídicos se o devedor não apresentar documentos, ainda que admita prova em contrário na execução Supremo Tribunal de Justiça.

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Supply Crawling em Alpha Centauri: a inspiração por trás da mecânica

Em Sid Meier’s Alpha Centauri (1999), uma das inovações mais notáveis em relação aos jogos anteriores de estratégia, como Civilization, é o sistema conhecido como Supply Crawling. Esta mecânica permite que unidades básicas, como Settlers e Workers, evoluam de maneira orgânica, dependendo dos recursos, tecnologias e ambiente da cidade que as produz. Mas o que realmente inspirou essa ideia inovadora?

1. Uma Herança Histórica: Economia e Especialização Local

No mundo real, a capacidade de colonos, trabalhadores ou pioneiros de desempenhar funções específicas sempre dependia de recursos naturais e infraestrutura local. Por exemplo:

  • Um colono em uma região com bois podia puxar arados e cultivar mais eficientemente.

  • Um colono em regiões com cavalos poderia transportar mercadorias ou explorar rapidamente áreas distantes.

  • O surgimento de minas e forjas determinava a especialização de trabalhadores em mineração ou metalurgia.

Essa realidade econômica serviu como modelo para o Supply Crawling, pois o sistema em Alpha Centauri simula um ecossistema econômico vivo, em que cada unidade reflete a capacidade produtiva e tecnológica da cidade que a gera.

2. Evolução do Design: De Civilization a Alpha Centauri

Em Civilization, as unidades como Settlers e Workers são relativamente estáticas: independem do contexto da cidade ou dos recursos para construir ou melhorar o terreno. Alpha Centauri, por outro lado, buscou um realismo tático e estratégico mais profundo, implementando o Supply Crawling para que a produção e especialização das unidades fossem dinâmicas.

A lógica do design segue três princípios:

  1. Dependência de Recursos: Unidades crescem e se especializam conforme o ambiente. Um Worker pode se tornar um pioneiro capaz de arar terrenos se houver bois ou cavalos na região.

  2. Impacto Tecnológico: A evolução das unidades depende do avanço científico da facção, refletindo como a tecnologia altera a produtividade humana.

  3. Integração Estratégica: Essa mecânica torna o planejamento de cidades mais complexo, pois o jogador deve considerar não apenas a produção, mas também os recursos locais e a sinergia tecnológica.

Soren Johnson, designer envolvido posteriormente em Civilization III, mencionou que a inspiração vinha do desejo de que a economia de uma cidade moldasse a capacidade de suas unidades, criando uma experiência mais fluida e estratégica do que a que Civilization oferecia.

3. Consequências para o Gameplay

O Supply Crawling introduziu impactos profundos no jogo:

  • Diversificação de Unidades: Um mesmo tipo de unidade pode assumir funções diferentes dependendo da cidade, aumentando a complexidade estratégica.

  • Planejamento Regional: Jogadores precisam avaliar cuidadosamente os recursos naturais ao fundar cidades, pois isso determina a eficiência futura de suas unidades.

  • Realismo e Imersão: Cada unidade deixa de ser apenas um token abstrato e passa a refletir o ambiente e a tecnologia da facção, reforçando a narrativa do jogo de colonização espacial.

4. Conclusão

O Supply Crawling em Alpha Centauri representa uma interseção entre história econômica e design de jogos. Inspirado na realidade da especialização local de trabalhadores e colonos, e refinado a partir de experiências anteriores em Civilization, o sistema cria um ecossistema dinâmico em que o ambiente, os recursos e a tecnologia moldam a evolução das unidades. É um exemplo brilhante de como realismo, estratégia e narrativa podem convergir em um único mecanismo de jogo, elevando a profundidade tática e a imersão do jogador.