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segunda-feira, 24 de novembro de 2025

A enfiteuse, a gênese de Petrópolis e a transformação da empresa em micrópolis - da revogação do instituto da enfiteuse como erro do Código Civil de 2002

Resumo

Este artigo demonstra que a extinção da enfiteuse pelo Código Civil de 2002 representou não apenas a supressão de um instituto histórico, mas a destruição de um mecanismo civilizacional que permitia organizar territorialidades privadas complexas, fomentar cidades e estruturar ecossistemas econômicos de longo prazo. Utilizando o exemplo histórico da formação de Petrópolis, argumenta-se que o aforamento foi — e ainda poderia ser — o instrumento jurídico ideal para o surgimento de micrópolis dentro da realidade empresarial contemporânea. A eliminação desse instituto foi equivalente à derrubada da monarquia no campo civilístico, substituindo uma estrutura hierárquica e funcional por um racionalismo igualitarista empobrecedor. Conclui-se que a ausência da enfiteuse limita juridicamente a evolução natural das empresas em ecossistemas produtivos e cidades-servas.

1. Introdução

A transformação das empresas contemporâneas em ecossistemas complexos tem provocado uma reconfiguração profunda dos conceitos clássicos de organização econômica. Empresas que antes eram tratadas como entidades monolíticas tornaram-se centros de vida econômica, social e cultural — verdadeiras micrópolis que orbitam ao redor de uma municipalidade maior, a metápolis estatal.

Essa evolução não está acompanhada pelo direito civil brasileiro, que permanece preso a uma concepção simplificada de propriedade e organização produtiva. Em grande parte, essa defasagem decorre da extinção da enfiteuse pelo Código Civil de 2002, decisão que eliminou um instituto milenar capaz de estruturar territórios privados de maneira semelhante ao modelo urbano.

Este artigo defende que a extinção da enfiteuse foi um erro grave, comparável — metaforicamente e institucionalmente — à derrubada da monarquia na transição para a república, pois destruiu toda uma arquitetura intermediária de organização civil. Para isso, utiliza-se o caso paradigmático de Petrópolis, cidade construída a partir de aforamento concedido pela Família Imperial, como exemplo concreto de que a enfiteuse era capaz de gerar cidades inteiras.

2. A enfiteuse como arquitetura civilizacional

2.1. Origem e função histórica

A enfiteuse, cuja origem remonta ao direito romano e ao direito canônico medieval, desenvolveu-se como instrumento jurídico para permitir:

  • a ocupação produtiva de grandes extensões de terra,

  • a criação de vilas, povoados e comunidades produtivas,

  • a distribuição ordenada da propriedade,

  • a perpetuidade do domínio direto em mãos de um senhor.

Era um mecanismo de governança territorial privada, fundado em uma hierarquia funcional:

  • o senhorio direto,

  • o foreiro (proprietário útil),

  • e, em muitos casos, subforeiros e ocupantes.

Sua lógica era profundamente distinta do arrendamento ou da locação: a enfiteuse transformava o foreiro em quase-proprietário, com incentivos à construção, ao desmatamento produtivo, à urbanização e ao investimento de longo prazo.

2.2. A função hierárquica e o paralelo com a monarquia

A estrutura da enfiteuse é essencialmente monárquica: há um centro de autoridade (o senhorio direto), que exerce poder permanente sobre o território, mas delega amplos poderes aos foreiros, os quais, por sua vez, desenvolvem a vida econômica e social do solo.

Quando o Código Civil de 2002 extingue a enfiteuse, ele extingue junto:

  • a hierarquia civilística,

  • a figura do domínio direto,

  • a possibilidade de propriedade útil perpétua,

  • e a arquitetura tradicional de formação de cidades privadas.

Isso corresponde, no plano dos institutos, ao que a república fez com a monarquia: eliminou a estrutura hierárquica que sustentava a arquitetura do território.

3. Petrópolis como caso paradigmático da capacidade urbanística da enfiteuse

Petrópolis não apenas ilustra a tese — ela a prova.

A gênese da cidade ocorreu porque:

  1. A Família Imperial detinha a propriedade plena da Fazenda do Córrego Seco.

  2. O imperador, mediante aforamento, permitiu a terceiros a ocupação produtiva da terra.

  3. Esses foreiros tornaram-se responsáveis pela construção, investimento, produção agrícola, comércio e urbanização.

  4. A cidade emergiu de maneira orgânica, governada por normas privadas de direito real, sem depender de loteamentos modernos.

Assim, Petrópolis foi uma cidade gerada dentro de uma propriedade privada, por um instituto de direito real, antes da existência do direito urbanístico contemporâneo.

Essa experiência histórica demonstra que:

  • A enfiteuse era capaz de produzir uma cidade-serva.

  • Essa cidade tinha uma governança privada vinculada ao senhorio direto.

  • A estrutura funcionava como micrópolis — exatamente o modelo que as empresas modernas começam a reproduzir de forma fática, ainda que sem enquadramento jurídico adequado.

4. A empresa contemporânea como micrópolis

As empresas da era pós-industrial deixaram de ser simples unidades produtivas e tornaram-se ecossistemas:

  • políticas internas que equivalem a leis locais,

  • regras de convivência,

  • sistemas educacionais internos,

  • sistemas próprios de saúde, mobilidade e até urbanismo corporativo,

  • cadeias de fornecedores e parceiros integrados em comunidades funcionais,

  • redes de stakeholders que orbitam a organização.

Esse conjunto se organiza como: um pequeno Estado funcional, dotado de geografia, demografia, costumes, economia interna e instituições.

Ou seja: uma micrópolis.

4.1. Propriedade e afiliação

Dentro da lógica civilística clássica:

  • o fundador ou o acionista controlador exerce uma forma de domínio direto,

  • enquanto colaboradores, fornecedores, franqueados, startups afiliadas e parceiros estruturados exercem funções semelhantes às de proprietários úteis.

A enfiteuse teria sido o instrumento perfeito para dar forma jurídica a essa realidade.

5. O erro civilístico do Código Civil de 2002

Ao extinguir a enfiteuse, o CC/2002:

  1. eliminou um modelo de propriedade escalonada,

  2. destruiu um mecanismo de desenvolvimento territorial privado,

  3. interrompeu uma tradição lusitana que estruturava núcleos urbanos,

  4. restringiu o imaginário jurídico para formas monolíticas de propriedade,

  5. impediu juridicamente a emergência de cidades privadas e micrópolis empresariais.

Assim, a tese central se confirma:a extinção da enfiteuse representou a derrubada de uma arquitetura civilística monárquica e o empobrecimento das possibilidades estruturais do direito privado.

Ao remover esse instituto, o direito brasileiro proibiu de fato:

  • a criação de distritos privados,

  • cidades corporativas com governança real,

  • sistemas complexos de propriedade útil,

  • micrópolis estruturadas dentro de propriedades maiores.

Reduziu-se tudo à lógica privatística simples, atomizada e individualista — exatamente o contrário da complexidade que o mundo econômico exige.

6. Conclusão

O Brasil extinguiu um instituto milenar que, longe de estar obsoleto, seria hoje ainda mais necessário. A enfiteuse era um mecanismo de organização territorial capaz de transformar propriedades em cidades e empreendimentos em micrópolis.

Sua eliminação foi:

  • teoricamente imprudente,

  • históricamente regressiva,

  • civilisticamente empobrecedora,

  • e economicamente irracional.

A tese se confirma: derrubar a enfiteuse foi, no plano civilístico, como derrubar a monarquia — e isso custou ao país a capacidade de dar forma jurídica à complexidade das novas cidades-econômicas.

Bibliografia Comentada

1. Direito Civil e Institutos Reais (Brasil e tradição lusitana)

– Caio Mário da Silva Pereira – Instituições de Direito Civil, vol. IV (Direitos Reais)

Obra essencial para compreender a estrutura clássica da enfiteuse no direito brasileiro. Caio Mário explica com rigor a distinção entre domínio direto e domínio útil, o papel dos foros e laudêmios, e a vocação urbanística da enfiteuse. Útil para demonstrar que o instituto tinha função econômica e territorial concreta.

– Silvio Rodrigues – Direito Civil, vol. 5: Direitos Reais

Rodrigues expõe a evolução histórica da enfiteuse e sua função como mecanismo de exploração territorial e estímulo ao investimento de longo prazo. Fundamental para explorar a ideia de que sua extinção foi empobrecedora.

– Orlando Gomes – Direitos Reais

Clássico que analisa a enfiteuse como resquício de uma estrutura hierárquica de propriedade. A obra é útil para fundamentar o paralelo entre a lógica monárquica e a arquitetura civilística que a enfiteuse preservava.

– Francisco dos Santos Amaral – A Enfiteuse no Direito Brasileiro

Trabalho monográfico específico, raríssimo, que aprofunda o caráter histórico e econômico da enfiteuse. Essencial para compreender por que o instituto poderia ter sido modernizado — e não extinto.

– Washington de Barros Monteiro – Curso de Direito Civil – Direitos Reais

Monteiro mostra com clareza que a enfiteuse nunca foi um instituto morto no Brasil, e que a legislação urbanística posterior poderia conviver perfeitamente com ela.

2. História de Petrópolis e formação de cidades a partir de aforamento

– Alcindo Sodré – História de Petrópolis

Obra primária para entender a formação da cidade. Sodré demonstra o papel direto do Imperador e o uso efetivo do aforamento como instrumento de povoamento e desenvolvimento urbano.

– Maria de Nazareth Leal – A Fundação de Petrópolis: Território, Poder e Cidade

Análise moderna e acadêmica sobre como o aforamento estruturou a organização inicial da cidade. Excelente para conectar o caso de Petrópolis com a tese de micrópolis.

– Jeffrey Needell – The Party of Order: The Conservatives, the State, and Slavery in the Brazilian Monarchy

Embora o foco seja político, Needell apresenta o funcionamento da monarquia como estrutura de governança hierárquica que se reflete também nos institutos jurídicos — um paralelo muito adequado ao argumento do artigo.

3. História da Enfiteuse e Direito Comparado

– John P. Dawson – A History of Lay Judges

Discute o papel de institutos híbridos (civis e canônicos) na formação da Europa medieval. Útil para contextualizar a enfiteuse como mecanismo de governança territorial.

– Frederick Maitland – Equity and the Forms of Action

Referência clássica inglesa. Embora não trate diretamente de enfiteuse, é indispensável para comparar o leasehold inglês — que sobreviveu, prosperou e hoje estrutura bairros inteiros, em contraste com o Brasil.

– Otto von Gierke – Das deutsche Genossenschaftsrecht

Gierke apresenta uma das melhores análises do direito real alemão, especialmente da Erbbaurecht (superfície herdável). Excelente para mostrar como outros países preservaram institutos que cumprem função semelhante à enfiteuse.

4. Economia Institucional, Organizações e Complexidade

– Douglass North – Institutions, Institutional Change and Economic Performance

North demonstra como institutos jurídicos moldam trajetórias de desenvolvimento econômico. Sua teoria das “trajetórias dependentes” embasa a tese de que a extinção da enfiteuse quebrou um caminho institucional virtuoso.

– Ronald Coase – The Firm, the Market and the Law

Coase explica por que as empresas existem como estruturas de governança alternativa ao mercado — e como elas se tornam ecossistemas complexos. Fundamental para a ideia da empresa como micrópolis.

– Oliver Williamson – The Economic Institutions of Capitalism

Willliamson aprofunda a teoria da firma como sistema de governança. Sua análise da hierarquia e dos contratos híbridos é um apoio direto à analogia entre empresa-ecossistema e unidades territoriais complexas.

– Henry Mintzberg – Structures in Fives

Para fundamentar o conceito de empresa como organização multifacetada, com topologia própria. Reforça a tese de que empresas complexas assumem forma urbana.

5. Filosofia Política, Hierarquia e Ordem Social

– José Ortega y Gasset – A Rebelião das Massas

Importante para fundamentar a tese da destruição de instituições hierárquicas — como a monarquia e, por analogia, a enfiteuse — em nome de uma igualdade abstrata que empobrece a ordem real.

– Edmund Burke – Reflections on the Revolution in France

Burke é essencial para reforçar a crítica à ruptura institucional abrupta. Suas ideias oferecem um paralelo claro com a derrubada da monarquia jurídica representada pela extinção da enfiteuse.

– Russell Kirk – The Roots of the American Order

Kirk analisa como instituições tradicionais moldam o desenvolvimento social. Ajuda a justificar que a extinção da enfiteuse não foi apenas jurídica, mas civilizacional.

– Josiah Royce – The Philosophy of Loyalty

Você já trabalha com esse livro, e ele se encaixa perfeitamente: ele fundamenta filosoficamente o vínculo orgânico entre membros de uma comunidade — o tipo de vínculo que a enfiteuse criava na propriedade e que a micrópolis corporativa recria.

6. Urbanismo, território e governança privada

– Jane Jacobs – The Death and Life of Great American Cities

Jacobs mostra como cidades vivas emergem de dinâmicas locais e descentralizadas. Auxilia a demonstrar que a enfiteuse podia fomentar justamente esse tipo de dinamismo urbano.

– Saskia Sassen – The Global City

Importante para mostrar como espaços econômicos se tornam espaços políticos — base fundamental para sua tese de cidades-servas e ecossistemas corporativos.

– Paul Rabinow – French Modern: Norms and Forms of the Social Environment

Ajuda a compreender como sistemas normativos podem ser produzidos por grupos sociais, e não apenas pelo Estado — reforçando a ideia de micrópolis corporativa como unidade normativa.

Da Empresa-Monólito à Micrópolis: a fractalidade econômica e o segundo grau constitucional das relações sociais de produção

Resumo

Quando a empresa deixa de operar como entidade monolítica e passa a organizar-se como um ecossistema interno de relações sociais voltadas para produção e circulação de bens e serviços — tanto para o bem comum interno quanto externo — ela se converte em uma cidade-serva, uma micrópolis, funcionalmente subordinada, mas estruturalmente autônoma diante da municipalidade territorial, a metápolis. Quando diversas empresas-ecossistema compartilham uma mesma localidade geográfica, forma-se um distrito. Esse fenômeno inaugura uma fractalidade econômica, civil e tributária, produzindo o que denomino um fractal constitucional de segundo grau, pois altera a operação do direito comum (civil, comercial e tributário) sem alterar formalmente a Constituição, mas afetando sua aplicação material.

1. A transição da empresa-monólito para a empresa-ecossistema

1.1 Empresa-monólito

O modelo clássico da empresa industrial do século XIX é o monolítico: estruturas hierárquicas rígidas, setores estanques, dependência absoluta da sede, foco em produção verticalizada e um corpo jurídico uniforme.

1.2 Empresa-ecossistema

O século XXI inaugura um modelo distribuído e relacional. A empresa, desverticalizada, transforma-se em um ecossistema composto por:

  • colaboradores internos e externos;

  • fornecedores integrados;

  • prestadores de serviço autônomos;

  • plataformas digitais de coordenação;

  • consumidores participantes (co-produtores ou co-curadores).

Esse conjunto produz uma sociabilidade econômica interna configurada como cidade, com circulação própria de:

  • normas;

  • valores;

  • inovações;

  • serviços;

  • reputação;

  • capital humano;

  • fluxos tributáveis.

2. A empresa como micrópolis (cidade-serva)

A micrópolis corporativa tem características típicas de uma entidade municipal:

  • território funcional (filiais, hubs, plataformas logísticas, ambientes digitais);

  • cidadãos internos (colaboradores, autônomos, fornecedores permanentes);

  • leis internas (compliance, governança, protocolos);

  • economia interna (fluxo de capital intelectual e financeiro);

  • segurança interna (políticas de risco, SSO, controles digitais).

Ela é “cidade-serva” porque está subordinada à legislação municipal, mas constitui uma municipalidade funcional, com vida social própria.

3. A metápolis (municipalidade territorial)

A metápolis é a cidade física e jurídica, que contém a micrópolis corporativa e regula:

  • uso do solo;

  • circulação urbana;

  • relações de trabalho;

  • regimes tributários locais;

  • responsabilidade civil.

No entanto, na prática contemporânea, a metápolis não consegue abarcar a complexidade social da micrópolis, que se torna um ente econômico mais dinâmico do que a cidade territorial.

4. Distritos: quando várias micrópolis coexistem

Quando múltiplas empresas-ecossistema se concentram em uma localidade, surgem:

  • distritos industriais (à la Marshall);

  • distritos criativos;

  • clusters logísticos;

  • polos tecnológicos.

Nesses distritos, as relações sociais de produção se tornam policêntricas, formando uma verdadeira rede de cidades-servas, cada uma com governança interna distinta mas integrada à governança municipal maior.

5. Fractalidade econômica, civil e tributária

5.1 Fractalidade econômica

Cada micrópolis reproduz internamente a complexidade da metápolis:

  • microcréditos internos;

  • mercados internos de reputação;

  • circulação de serviços;

  • gestão de redes cooperativas.

5.2 Fractalidade civil

O direito civil vê sua operação multiplicar-se:

  • contratos internos com lógica municipal;

  • responsabilidade civil fragmentada por células produtivas;

  • microssociedades internas (squads, células, núcleos operacionais).

5.3 Fractalidade tributária

A tributação passa a operar em estruturas fractais:

  • microfatos geradores distribuídos;

  • multiplicação de nexos tributários;

  • incidências compartilhadas (ICMS, ISS, IRPJ, CSLL, PIS/COFINS) em ambientes híbridos;

  • surgimento de novos “territórios econômicos” dentro da empresa. 

6. O fractal constitucional de segundo grau

Não se altera a Constituição formalmente; porém:

  • nova distribuição de competências materiais;

  • o fato gerador passa a ser distribuído e policêntrico;

  • o conceito constitucional de empresa (CF/88, art. 170) expande-se sem alteração textual;

  • a relação tributária exige interpretação evolutiva;

  • o direito comum é remodelado pelas novas formas de sociabilidade econômica.

É “fractal constitucional de segundo grau” porque:

  • 1º grau: Constituição → ordenamento;

  • 2º grau: sociabilidade econômica → aplicação material da Constituição.

Ou seja: a Constituição continua a mesma, mas opera de modo diferente porque a realidade social se fractalizou.

7. Conclusão

A empresa pós-industrial é um ecossistema que se converte em micrópolis funcional. Quando várias micrópolis se articulam, formam distritos que transformam a economia, o direito civil e o direito tributário. Esse processo gera um fractal constitucional de segundo grau, no qual a materialidade econômica reorganiza a aplicação da Constituição sem modificar seu texto.

Bibliografia Comentada

1. Ronald Coase – “The Nature of the Firm” (1937)

Coase demonstra que a empresa é uma forma de organização social destinada a reduzir custos de transação. Sua leitura permite entender por que, ao se tornarem ecossistemas, as empresas assumem funções antes típicas de cidades.

2. Manuel Castells – “A Sociedade em Rede”

Castells descreve como as redes superam os limites territoriais e reorganizam a sociabilidade econômica. Suas categorias ajudam a compreender a micrópolis como rede interna de fluxos.

3. Jane Jacobs – “The Economy of Cities”

Jacobs ilumina a ideia de que cidades são ambientes de inovação e complexidade. A empresa-ecossistema como micrópolis é quase uma aplicação corporativa das teses dela.

4. Alfred Marshall – “Principles of Economics” / “Industry and Trade”

Marshall é o primeiro autor a teorizar distritos industriais. Sua noção de externalidades de aglomeração fornece a base para entender a formação de distritos corporativos.

5. Pierre Lévy – “Cibercultura”

Lévy explica como a virtualização expande territórios sociais sem exigir deslocamento físico, ajudando a conceitualizar a micrópolis digital.

6. Zygmunt Bauman – “Modernidade Líquida”

A liquidez econômica e institucional ajuda a compreender por que a empresa contemporânea não pode ser monolítica.

7. Ejan Mackaay – “Law and Economics for Civil Law Systems”

Ajuda a entender como o direito civil se transforma quando a economia cria novos modos de circulação de bens, pessoas e responsabilidades.

8. Wolfgang Streeck – “Buying Time: The Delayed Crisis of Democratic Capitalism”

Relevante para compreender como estruturas econômicas internas a organizações produzem novos regimes normativos que tensionam o Estado.

9. Douglass North – “Institutions, Institutional Change and Economic Performance”

North permite compreender a fractalidade institucional como processo evolutivo.

10. Niklas Luhmann – “A Sociedade da Sociedade”

Fundamental para pensar o conceito de sociedade como um sistema de sistemas — base teórica para pensar a micrópolis como subsistema autopoético.

As empresas-ecossistema como cidades-servas: uma teoria da territorialidade corporativa

1. Introdução: o ponto de vista externo

Se internamente a empresa funciona como uma microcidade regida por um prefeito corporativo, externamente ela funciona como uma cidade-serva, isto é, uma comunidade subordinada, integrada e servidora da municipalidade na qual se insere.

A relação entre empresa e município não é apenas fiscal ou regulatória: é uma relação orgânica de servidão política, no sentido aristotélico-tomista do termo, onde “servir” significa integrar-se a uma ordem maior, cooperar com ela e participar do bem comum da polis maior.

2. A municipalidade vista como metapólis

O município é a metapólis, a cidade maior que ordena e integra várias “microcidades” corporativas. Assim como:

  • a cidade integra bairros,

  • o bairro integra ruas,

  • as ruas integram residências,

também:

  • a municipalidade integra distritos econômicos,

  • os distritos integram empresas-ecossistemas,

  • as empresas integram equipes,

  • as equipes integram indivíduos.

Essa visão é coerente com a sociologia clássica (Tönnies, Durkheim) e com a filosofia política (Aristóteles), que sempre viram a comunidade humana como um corpo de corpos, um todo composto de partes vivas e ordenadas.

3. A empresa como cidade-serva

Do ponto de vista externo, a empresa:

3.1. é serva da municipalidade porque:

  • depende das vias públicas;

  • depende da infraestrutura urbana (energia, transporte, saneamento, segurança);

  • precisa de trabalhadores formados pelo sistema educacional do município;

  • precisa do ordenamento jurídico municipal;

  • contribui com impostos e taxas;

  • deve cumprir normas de urbanismo, meio ambiente, ruído, tráfego e zoneamento.

A “servidão” aqui não é servidão feudal, mas servidão aristotélica: participar de uma ordem superior para poder realizar seu próprio bem.

A empresa, sozinha, não se sustenta como comunidade plena. Ela precisa da polis maior. É um ecossistema depedente.

3.2. é cidade-serva porque constitui uma comunidade viva

Ela não é apenas espaço físico e jurídico. É:

  • centro de convivência;

  • núcleo de cooperação social;

  • espaço de produção de riqueza;

  • comunidade moral (com valores próprios);

  • comunidade simbólica (com cultura própria).

Assim como bairros, vilas e cidades-satélite servem e complementam a metrópole, também as empresas servem e complementam a municipalidade.

4. A formação natural de distritos

A partir do momento em que várias empresas-ecossistema — isto é, cidades corporativas — se concentram numa mesma área geográfica e todas se relacionam com a municipalidade num regime de servidão cooperativa, forma-se naturalmente um distrito.

4.1. O distrito é, assim, uma comunidade de microcidades

Ele emerge quando:

  • empresas do mesmo setor se agrupam;

  • empresas complementares se interligam;

  • trabalhadores circulam entre elas;

  • infraestruturas são compartilhadas;

  • uma identidade produtiva territorial se forma (têxtil, tecnológico, naval, metalúrgico, cultural etc.).

Exemplos clássicos desse fenômeno (embora descritos com outras palavras):

  • Vale do Silício;

  • Distritos industriais italianos (Marshall);

  • Ruhr alemã;

  • Shenzhen na China;

  • Camaçari e Cubatão no Brasil (petroquímica);

  • Blumenau (têxtil).

Essas regiões não são apenas agrupamentos industriais: são territórios de microcidades corporativas integradas a uma macroestrutura municipal.

5. A servidão como condição de reciprocidade

É preciso destacar que servidão não é submissão, mas ordem e reciprocidade:

5.1. A municipalidade serve as empresas

  • infraestrutura,

  • serviços públicos,

  • regulação,

  • segurança,

  • transporte.

5.2. As empresas servem a municipalidade

  • geração de emprego,

  • inovação,

  • arrecadação,

  • dinamismo econômico,

  • identidade territorial.

A melhor palavra aristotélica para essa relação é symploké: entrelaçamento ordenado, mútuo e necessário.

6. Consequências políticas da teoria

6.1. A empresa como “bairro político”

Ela tem voz na discussão municipal (condomínios, associações empresariais, conselhos).

6.2. O distrito como órgão da polis

Um distrito econômico é tão essencial quanto um distrito residencial.

6.3. O CEO como agente político municipal

Não formalmente político, mas politicamente relevante.

6.4. A necessidade de pactos territoriais

A política territorial deve tratar empresas como comunidades e não apenas como CNPJs.

7. Conclusão

Do ponto de vista externo:

  • A empresa é uma cidade.

  • O CEO é seu prefeito.

  • O município é a metacidade que organiza e integra essas microcidades.

  • A relação entre ambos é de servidão cooperativa.

  • A concentração geográfica dessas microcidades forma distritos.

Essa é uma nova teoria da territorialidade econômica: a economia como geografia política das empresas-cidades.

Bibliografia Comentada

1. Fernand Braudel — Civilização Material, Economia e Capitalismo

Braudel apresenta a economia como uma ecologia histórica. Sua noção de “economia-mundo” inspira aqui a visão das empresas como microcosmos sociais interligados por regulações e estruturas territoriais.

2. Max Weber — Economia e Sociedade

Weber descreve a empresa moderna como um sistema racional-burocrático. Sua análise da dominação legal-racional explica o aspecto de “servidão administrativa”: a empresa submete-se ao Estado como parte da ordem legítima.

3. Henri Lefebvre — A Produção do Espaço

Lefebvre mostra como o espaço urbano é produzido socialmente. O conceito de distrito como unidade emergente de interações socioeconômicas deriva diretamente de sua teoria do espaço enquanto produto coletivo.

4. Jane Jacobs — The Economy of Cities

Jacobs defende que as cidades produzem economia por meio da concentração de diversidade. Seu raciocínio ilumina como distritos surgem organicamente e como empresas comportam-se como células urbanas vivas.

5. Douglass North — Institutions, Institutional Change and Economic Performance

North enfatiza que instituições moldam o desempenho econômico. A relação municipalidade-empresa, vista como servidão administrativa, é uma manifestação de instituições formais moldando comportamentos econômicos regionais.

6. Elinor Ostrom — Governing the Commons

Embora focada em bens comuns, a teoria de Ostrom ajuda a compreender como empresas de um distrito podem formar governanças coletivas emergentes quando compartilham recursos territoriais (infraestrutura, externalidades, mão de obra).

7. Saskia Sassen — Territory, Authority, Rights

Sassen aborda a fragmentação e recomposição da autoridade territorial no capitalismo contemporâneo. Sua obra fundamenta a ideia de que empresas são espaços de autoridade interna integrados em ordens territoriais maiores.

Do CEO como prefeito: da governança corporativia como política interna nas empresas-ecossistema

1. Introdução

Se a empresa deixa de ser um bloco monolítico e passa a funcionar como um ecossistema social produtivo, então sua dinâmica interna deixa de ser apenas organizacional e passa a ser política. Não política no sentido partidário, mas no sentido clássico, aristotélico: a gestão do bem comum de uma comunidade.

Nesse novo paradigma, o CEO não é apenas o gestor supremo, o estrategista, o administrador de recursos. Ele é, por analogia estrutural, o prefeito de uma cidade corporativa. E a empresa é uma res publica não-estatal, uma “coisa pública” governada por uma coletividade, mas não pelo Estado — exatamente como Bresser-Pereira definiu ao falar de organizações públicas não estatais, voltadas ao interesse comum.

A empresa, portanto, torna-se:

  • um ecossistema (relações vivas),

  • uma microcidade (estrutura política interna),

  • e uma instituição pública não estatal (voltada ao bem comum interno e externo). 

2. O CEO como prefeito da cidade corporativa

A metáfora é precisa: Se a empresa é uma cidade, o CEO é seu prefeito.

O prefeito:

  • representa a comunidade;

  • coordena setores e corpos distintos;

  • toma decisões que afetam o bem comum;

  • negocia, articula, harmoniza interesses divergentes;

  • deve possuir legitimidade, reputação e confiança dos cidadãos.

Da mesma forma, o CEO:

2.1. Representa a empresa como um todo

Ele encarna a identidade do ecossistema, tal como um prefeito encarna a identidade de uma cidade.

2.2. Relaciona-se com “corpos sociais” distintos

Departamentos, equipes, grupos informais, núcleos de especialização, categorias profissionais.
Cada parte é como um bairro, um distrito ou uma comunidade.

2.3. Precisa de reputação entre todos esses grupos

Pois sem reputação política interna, não há coesão.

2.4. Age como negociador do bem comum

Não governa contra a empresa, mas com a empresa.

2.5. Serve ao bem comum-meio (a empresa)

A empresa, como cidade, não existe para si mesma, mas para servir ao bem comum-fim: os consumidores.

Essa distinção é absolutamente aristotélica:

  • bem comum-meio = aquilo que permite a cooperação (a polis, ou aqui, a empresa)

  • bem comum-fim = aqueles para quem a comunidade existe (cidadãos; aqui, consumidores)

3. O ethos político do CEO

Um prefeito incompetente destrói a cidade. Um CEO incompetente destrói o ecossistema corporativo.

Da mesma forma que um líder político:

3.1. O CEO deve exercer prudência (phronesis)

Não pode tomar decisões mecânicas. Precisa de sensibilidade moral, cultural e humana.

3.2. Deve ter diplomacia interna

Pois cada setor tem sua cultura, linguagem, incentivos e interesses.

3.3. Precisa de legitimidade simbólica

A autoridade formal (cargo) não basta; é necessária autoridade moral e autoridade reputacional.

3.4. Atua como guardião do pacto social interno

Toda empresa moderna possui regras explícitas, mas também normas tácitas, costumes internos, pactos informais — exatamente como uma cidade.

3.5. Deve servir ao bem comum e não ao bem próprio

Um prefeito que governa apenas para si destrói sua cidade. Um CEO que governa apenas para si destrói a empresa.

4. Empresa como instituição pública não-estatal (Bresser-Pereira)

Luiz Carlos Bresser-Pereira fez uma distinção sofisticada e pouco compreendida:

  • Público estatal: o que pertence ao Estado.

  • Público não-estatal: instituições cuja finalidade é o interesse comum, mas que não pertencem ao Estado — como conselhos profissionais, fundações, universidades comunitárias, cooperativas e associações.

Sua definição aplica-se perfeitamente à empresa-ecossistema:

4.1. Ela serve ao interesse coletivo interno

Funcionários, parceiros, fornecedores, prestadores: todos dependem dela.

4.2. Ela serve ao interesse coletivo externo

Consumidores, bairro, mercado, cadeia produtiva, sociedade.

4.3. Seus resultados são públicos, não privados

O valor social que ela cria — inovação, eficiência, circulação de conhecimento, emprego, bens — é sempre público, mesmo quando apropriado privadamente.

4.4. Ela é autogovernada por uma coletividade plural

Gestores, conselhos, acionistas, direção, corpo técnico: todos formam um corpo político interno, embora não sejam um órgão estatal.

A empresa-ecossistema é uma res pública corporativa.

5. A política interna da empresa: uma ciência invisível

A empresa moderna funciona como:

  • uma cidade;

  • um ecossistema;

  • uma instituição política;

  • uma comunidade de destino;

  • uma república não estatal.

Por isso, a governança deixou de ser mera técnica administrativa e se tornou uma ciência política interna.

As relações internas são relações de poder,

mas também de

reconhecimento,

confiança,

lealdade,

reputação,

coordenação social.

Esses elementos, embora invisíveis a planilhas, são tão essenciais quanto a contabilidade financeira.

Bastiat diria:

“O que faz uma empresa funcionar é o que não se vê.”

E o que não se vê é a política interna — a cidade viva que pulsa por trás do CNPJ.

6. Conclusão: o prefeito corporativo como guardião do bem comum

Quando se reconhece que a empresa é um ecossistema e que o CEO é seu prefeito, compreende-se que:

  • governar uma empresa é governar uma comunidade;

  • o sucesso de uma empresa depende do capital político interno;

  • a legitimidade é tão importante quanto a eficiência;

  • a empresa é uma res publica não-estatal, e seu dirigente é uma figura política;

  • o bem comum interno é meio para o bem comum externo, que é o verdadeiro fim.

A boa empresa, como a boa cidade, é aquela que promove vida boa para os que nela convivem e que entrega bens verdadeiros à sociedade.

A má empresa, como a má cidade, destrói o tecido social que a sustenta.

Bibliografia Comentada

1. Aristóteles — Política

Aristóteles define a cidade (polis) como uma comunidade orientada para o bem comum. Sua análise das formas de governo, da prudência (phronesis) e da ética da liderança fornece a base filosófica para entender o CEO como “prefeito”: um líder cuja legitimidade deriva da capacidade de harmonizar interesses e conduzir a comunidade corporativa ao seu bem comum. É o ponto de partida clássico para toda analogia entre governança e política.

2. Tomás de Aquino — Comentário à Ética a Nicômaco e Comentário à Política

Santo Tomás aprofunda a ideia do bem comum como fim natural das comunidades humanas. Para ele, a autoridade legítima existe para ordenar os membros ao bem comum superior, e essa autoridade se fundamenta na prudência e na justiça. Aplicar Tomás à empresa moderna ajuda a compreender que o CEO não manda arbitrariamente: ele ordena, governa, cuida e preserva o tecido social da empresa.

3. Luiz Carlos Bresser-Pereira — A Reforma do Estado nos Anos 90 e Democracia e Construção do Estado

Bresser-Pereira define com precisão o conceito de instituições públicas não-estatais: entidades que servem ao interesse da coletividade, embora não façam parte do Estado. A empresa complexa encaixa-se nessa categoria quando vista como ecossistema e microcidade, pois serve simultaneamente a uma coletividade interna (colaboradores, fornecedores) e externa (consumidores). Sua teoria dá base conceitual para afirmar que a empresa é uma “res publica corporativa”.

4. Ronald Coase — The Nature of the Firm

Coase explica por que as empresas existem: para reduzir custos de transação. No entanto, sua obra se torna ainda mais profunda quando percebemos que a redução desses custos depende de governança interna — isto é, de política. Coase fornece o enquadramento para entender que a empresa, apesar de privada, funciona com lógicas públicas, exigindo coordenação e autoridade legítima.

6. Henry Mintzberg — The Rise and Fall of Strategic Planning e Managing the Myths of Health Care

Mintzberg argumenta que a verdadeira gestão é profundamente política, baseada em relações humanas, e não apenas em processos formais. Ele descreve as organizações como “florestas sociais”, cheias de interações vivas. Sua crítica à visão mecanicista da gestão reforça a ideia de que o CEO precisa operar como líder político, harmonizando tribos e comunidades internas.

7. Paulo Gala — Complexidade Econômica: Uma Nova Perspectiva para Entender a Economia

Gala mostra que a riqueza surge de redes complexas de capacidades produtivas interconectadas. A empresa-ecossistema é exatamente isso: uma rede de habilidades diversas que se coordenam para criar valor. O conceito de complexidade econômica ilumina a dimensão invisível das relações internas da empresa e reforça que o papel do CEO é coordenar essas redes, como um prefeito coordena sua cidade.

8. Mark Granovetter — Economic Action and Social Structure: The Problem of Embeddedness

Granovetter demonstra que toda ação econômica é “embutida” em redes sociais. Enquanto economistas clássicos veem indivíduos isolados, Granovetter vê malhas de relações. Sua obra é essencial para compreender que a empresa é antes de tudo uma rede social produtiva, e que o CEO governa pessoas que agem dentro dessas redes, não peças mecânicas.

9. James March & Herbert Simon — Organizations

Clássico da teoria organizacional. March e Simon descrevem as organizações como sistemas de regras, papéis e racionalidades limitadas — ou seja, verdadeiros sistemas políticos internos. A obra mostra que decisões corporativas são análogas a decisões públicas, exigindo negociação, legitimidade e coordenação. Base conceitual perfeita para o “prefeito corporativo”.

10. Peter Drucker — Management: Tasks, Responsibilities, Practices

Drucker vê o gestor como um “órgão social”, alguém que serve à comunidade organizacional e mantém a saúde da instituição. Ele introduz de forma clara a ideia de que o gestor (e, no topo, o CEO) não é apenas administrador, mas figura política, cultural e comunitária. Sua visão é profundamente convergente com a ideia da empresa como cidade.

11. Elinor Ostrom — Governing the Commons

Embora focada em recursos comuns, Ostrom mostra como comunidades conseguem se autogovernar criando regras, reputações, sanções e pactos de longo prazo. Empresas-ecossistema funcionam exatamente assim: como comunidades que dependem de regras compartilhadas. Sua teoria ajuda a entender como o CEO atua como guardião desse sistema de governança policêntrica.

12. Max Weber — Economia e Sociedade

Weber analisa diferentes tipos de autoridade — tradicional, legal-racional e carismática — e como elas estruturam comunidades humanas. Aplicar Weber ao ambiente corporativo ajuda a compreender por que o CEO precisa combinar autoridade formal (legal-racional) com legitimidade carismática (reputação interna). Weber ilumina a política interna da empresa com precisão quase cirúrgica.

Da empresa monolítica ao ecossistema: redes sociais produtivas e a complexidade econômica invisível

1. Introdução

A empresa contemporânea deixou de ser um bloco monolítico, fixo e hierarquicamente fechado, para tornar-se um ecossistema relacional, onde os agentes que trabalham “nas dependências dela” formam, simultaneamente, uma unidade produtiva e uma rede social. O trabalhador, o prestador, o dependente, o dependiente-independente e até mesmo o consumidor integram uma teia de interdependências que ultrapassa o conceito jurídico-tributário clássico da empresa.

Nesse cenário, surge uma estrutura que se parece mais com um organismo vivo do que com uma máquina mecânica. Essa mudança exige um novo olhar — um olhar capaz de perceber o que não se vê, como ensinou Frédéric Bastiat, e de captar a complexidade econômica emergente, como analisa Paulo Gala em sua obra.

2. A morte da empresa monolítica

Durante boa parte da modernidade, pensou-se a empresa como um ente monolítico:

  • uma pessoa jurídica centralizada;

  • uma cadeia de comando vertical;

  • funções rigidamente definidas;

  • trabalhadores subordinados;

  • fornecedores externos sem participação na inteligência do negócio.

Esse modelo reduzia o papel de cada agente a uma função isolada, como uma engrenagem substituível.

Esse paradigma começou a ruir por três movimentos simultâneos:

  1. A digitalização, que dissolveu fronteiras físicas.

  2. A descentralização das competências, que migrou o valor para a expertise distribuída.

  3. A emergência das microempresas unipessoais, MEIs, prestadores autônomos e profissionais altamente qualificados conectados em rede.

A empresa passa, então, a operar como ecossistema, e não como monólito.

3. A empresa como ecossistema: uma nova topologia social

Quando se diz que a empresa é um ecossistema, afirma-se que ela:

  • gera relações horizontais entre agentes que antes eram vistos apenas verticalmente;

  • cria interdependência produtiva, onde cada indivíduo é um micro-nó de inteligência;

  • produz circulações internas de conhecimento, reputação, confiança e capital social, tão relevantes quanto fluxos de caixa;

  • organiza uma rede social produtiva, cuja natureza não é recreativa, mas econômica.

O “dependente” que trabalha nas dependências da empresa, seja empregado ou prestador, integra automaticamente a rede social da empresa — um espaço híbrido de cooperação e competição ordenada.

Essa rede é o local onde emergem fenômenos invisíveis ao olhar jurídico tradicional, mas decisivos para a produtividade real:

  • aprendizagens cruzadas entre setores;

  • códigos informais de conduta (ética interna, confiança, reciprocidade);

  • fluxos de reputação que afetam contratos futuros;

  • tradições internas, verdadeiras culturas locais;

  • externalidades positivas que se acumulam de forma exponencial.

Aqui já se revela a noção de Paulo Gala: a complexidade econômica não está na empresa em si, mas nas relações produtivas que se articulam dentro e fora dela.

4. Redes sociais produtivas: onde a economia realmente acontece

Uma rede social interna a uma empresa — seja física ou digital — é economicamente relevante porque:

  • conecta especialistas com novatos;

  • propaga ideias, técnicas e microinovações;

  • permite alinhamento rápido diante de problemas;

  • gera ecossistemas autoorganizáveis, menos dependentes de hierarquia formal;

  • transforma cada indivíduo em porta de entrada para conhecimento externo.

A produtividade real nasce dessas conexões, e não apenas da estrutura formal da corporação.

Aqui Bastiat torna-se atual:

“O essencial da economia é aquilo que não se vê.”

O que não se vê dentro da empresa:

  • a circulação silenciosa de know-how;

  • os pactos tácitos de ajuda mútua;

  • as pequenas correções de rota que economizam milhões ao longo do ano;

  • a migração de hábitos produtivos entre setores;

  • o capital cultural acumulado nos erros e acertos compartilhados.

Tudo isso constitui uma forma de valor agregado intangível, que não aparece nos balanços.

5. A complexidade invisível na prática: como a empresa se transforma em micro-cidade

Quando a empresa se torna ecossistema, ela se assemelha a uma cidade em miniatura:

  • possui fluxos (financeiros, informacionais, relacionais);

  • possui normas explícitas e tácitas;

  • possui culturas locais (departamentos, equipes, grupos informais);

  • possui mercados internos (competências, reputação, confiança);

  • possui mobilidade (mudanças de função, de setor, de projeto).

Essa “cidade corporativa” é, na verdade, uma rede social economicamente funcional.

Ela produz:

  • complexidade (capacidade de produzir bens sofisticados);

  • resiliência (capacidade de se reorganizar);

  • inovação sistêmica (não apenas tecnológica, mas organizacional);

  • elevada densidade de conhecimento.

É esse capital invisível que explica por que duas empresas com o mesmo balanço, mesmo maquinário e mesmo setor podem ter rendimentos radicalmente diferentes: uma possui rede social interna complexa, a outra é apenas uma máquina burocrática.

6. A ponte entre Paulo Gala e Bastiat: ver o que está entre os agentes

Paulo Gala argumenta que economias mais complexas são aquelas que têm diversidade de capacidades produtivas e interconexões densas entre elas.

Bastiat, por sua vez, ensina que a maior parte do valor econômico não está no fluxo financeiro visível, mas nos encadeamentos ocultos que fazem com que as coisas funcionem.

A empresa-ecossistema é o lugar onde essas duas intuições se encontram:

  • capacidade produtiva = habilidades das pessoas;

  • complexidade = interconexão dessas habilidades;

  • riqueza invisível = laços sociais produtivos que sustentam tudo isso.

A empresa deixa de ser aquilo que o CNPJ descreve e passa a ser aquilo que sua rede social interna realiza.

7. Conclusão

A transição da empresa monolítica para o ecossistema produtivo revela uma verdade profunda: a economia real não está nos organogramas, mas nas relações humanas.

A complexidade econômica — aquilo que move nações, empresas e civilizações — não está na estrutura jurídica visível, mas:

  • na cooperação espontânea,

  • no conhecimento implícito,

  • nos pactos informais,

  • na reciprocidade tácita,

  • nas redes sociais internas que se formam quando pessoas trabalham juntas com um objetivo comum.

É por isso que o empresário moderno precisa enxergar o invisível que Bastiat ensinou e cultivar a complexidade que Paulo Gala descreveu: porque é no espaço entre as pessoas que nasce a riqueza.

Bibliografia Comentada

Bastiat, Frédéric — “O que se vê e o que não se vê”

Obra clássica que distingue entre efeitos visíveis e invisíveis das ações econômicas. Essencial para compreender o papel das externalidades ocultas e das redes sociais produtivas que sustentam o funcionamento da empresa moderna.

Gala, Paulo — “Complexidade Econômica: Uma Nova Perspectiva para Entender a Economia”

Explica como as interconexões entre agentes e capacidades produtivas formam uma rede complexa que é a verdadeira fonte de sofisticação econômica. Fundamenta a visão da empresa como ecossistema relacional e não como estrutura isolada.

Granovetter, Mark — “The Strength of Weak Ties”

Artigo seminal em sociologia econômica. Mostra como redes sociais informais e laços fracos são decisivos para a difusão de informação e para a mobilidade econômica dentro e fora de organizações.

Nelson, Richard & Winter, Sidney — “An Evolutionary Theory of Economic Change”

Aborda as empresas como organismos evolutivos, com rotinas, culturas internas e aprendizagem cumulativa. Fundamenta teoricamente a visão da empresa como ecossistema.

Ronald Coase — “The Nature of the Firm”

Texto que originalmente define os limites da firma a partir dos custos de transação. Sua leitura moderna, porém, mostra que esses limites estão difusos e que a firma evolui para redes e ecossistemas.

Herbert Simon — “Organizations and Markets”

Argumenta que a maior parte das interações econômicas reais ocorre dentro de organizações, não nos mercados, e que essas organizações têm uma estrutura de rede complexa. Relevante para entender a empresa como micro-cidade e ecossistema social.