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quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Personalidade em The Sims 4 e na vida real: traços, experiências e adaptação

O The Sims 4 é um jogo de simulação que se destaca por permitir ao jogador criar e controlar personagens virtuais — os Sims — cujas personalidades são definidas por traços pré-estabelecidos. Traços como “criativo”, “ambicioso” ou “amigável” funcionam como parâmetros de especialização, determinando comportamentos, interações sociais e escolhas de vida dentro do jogo. Cada Sim possui uma identidade relativamente previsível, moldada tanto pelas escolhas do jogador quanto pelas regras internas da simulação.

No mundo real, a formação da personalidade é mais complexa e dinâmica. Ao contrário dos Sims, os seres humanos não nascem com traços fixos e isolados; sua personalidade se desenvolve através da interação contínua com o meio social e com as circunstâncias históricas, culturais e individuais. Experiências de vida, desafios, relações interpessoais e contextos sociais moldam quem cada pessoa se torna, criando uma identidade que é, por essência, adaptativa.

Comparação entre traços de Sims e personalidades humanas

Podemos observar algumas correspondências aproximadas entre os traços do The Sims 4 e aspectos da vida real, lembrando que na realidade cada traço é muito mais fluido e influenciado por experiências:

  • Criativo (The Sims 4) → na vida real, a criatividade pode ser estimulada por experiências culturais, desafios profissionais ou acadêmicos. Um indivíduo pode desenvolver ou perder essa habilidade conforme seu ambiente favoreça ou restrinja a expressão criativa.

  • Ambicioso → enquanto em um Sim isso é quase automático, no ser humano ambição se constrói por meio de metas, incentivos sociais e oportunidades percebidas. Alguém pode ser ambicioso em uma área da vida e mais moderado em outra.

  • Amigável → nos Sims, esse traço garante interações sociais positivas automáticas. Na vida real, a sociabilidade depende de habilidades interpessoais, empatia e aprendizado social contínuo. Uma pessoa naturalmente tímida pode se tornar cordial e empática em função de contextos e práticas.

  • Nervoso → no jogo, um Sim nervoso reage consistentemente com ansiedade ou frustração. Para humanos, a propensão à ansiedade é influenciada tanto por fatores genéticos quanto por experiências de vida, aprendizagem emocional e suporte social, tornando-se muitas vezes modulável.

  • Gourmet / Apaixonado por comida → enquanto no jogo é um traço fixo, na realidade, interesses e hábitos alimentares são moldados por cultura, educação e circunstâncias econômicas, podendo mudar ao longo do tempo.

Traços vs. Experiência: a diferença central

A comparação evidencia a diferença fundamental entre simulação e realidade:

  1. No jogo: traços fixos → comportamento previsível → controle pelo jogador.

  2. Na vida real: personalidade adaptativa → comportamento dinâmico → resultado de experiências e contexto social.

Enquanto os Sims funcionam com “rótulos funcionais” que determinam suas respostas, os seres humanos estão em constante processo de aprendizado e adaptação, onde cada desafio, relacionamento ou evento histórico influencia a formação do caráter.

Conclusão

Jogos como o The Sims 4 oferecem um modelo simplificado e acessível da diversidade comportamental, mas não capturam a complexidade da vida humana, em que personalidade é mais do que um conjunto de traços: é um fenômeno em evolução, construído pela interação contínua entre indivíduo e mundo. Compreender a personalidade real requer atenção às experiências vividas, às oportunidades, aos desafios e à capacidade de adaptação, reconhecendo que a essência humana é dinâmica, multifacetada e resiliente.

Futebol, Memória Afetiva e Geopolítica Cultural: da "pátria de chuteiras" à nacionidade

O futebol brasileiro não é apenas espetáculo esportivo; é uma infraestrutura simbólica capaz de gerar soft power, circulação econômica, memória afetiva e pontes culturais entre países. Ao analisar sua projeção internacional, podemos integrar conceitos de geopolítica, geoeconomia cultural, geografia sentimental e fronteira espiritual, mostrando como o esporte conecta múltiplas pátrias sob uma mesma identidade espiritual: um lar em Cristo, por Cristo e para Cristo.

1. Futebol como soft power e geoeconomia cultural

Joseph Nye define soft power como a capacidade de influenciar outros países através da cultura, valores e diplomacia simbólica, sem recorrer à coerção militar ou econômica. O futebol brasileiro cumpre exatamente essa função: Pelé, Zico, Ronaldo, Rivaldo, Ronaldinho e Kaká tornaram-se embaixadores informais do Brasil, exportando não apenas talento, mas também identidade cultural.

A circulação de jogadores nos clubes europeus — Napoli, Udinese, Roma, Milan, Barcelona, Real Madrid, Ajax, PSV, Premier League — gera uma geoeconomia cultural: o Brasil exporta mão de obra qualificada e estilos de jogo que moldam a percepção global sobre sua cultura esportiva. Paralelamente, transmissões históricas e arquivos no YouTube permitem que brasileiros e europeus compartilhem memórias afetivas que ultrapassam o campo econômico, transformando o futebol em ativo simbólico de longo prazo.

2. A memória afetiva e a pátria de chuteiras

Plínio Salgado, em sua tese sobre a geografia sentimental, defende que o território é também espaço emocional, onde memórias e sentimentos conectam o indivíduo à pátria. O conceito de pátria de chuteiras exemplifica isso:

  • Brasileiros assistem a jogos do Calcio italiano, La Liga espanhola, Eredivisie holandesa ou Premier League inglesa e internalizam a memória de gols e craques brasileiros.

  • Essa memória cria um sentimento de dupla ou múltipla pátria, permitindo que se experimente mais de um território como lar afetivo e espiritual.

  • A emoção do futebol atua como vetor espiritual, aproximando diferentes culturas sob uma mesma identidade cristã: “um mesmo lar em Cristo, por Cristo e para Cristo”.

3. Superando fronteiras: Turner e o espaço cultural

Frederick Jackson Turner argumenta que a fronteira é tanto física quanto espiritual e cultural. Sua superação molda valores e identidades coletivas. Aplicando Turner ao futebol:

  • A presença de jogadores brasileiros na Europa cria uma fronteira simbólica entre Brasil e continente europeu.

  • A memória afetiva de gols, vitórias e narrações permite superar essa barreira, transformando territórios separados fisicamente em experiências compartilhadas.

  • O futebol funciona como ponte cultural e espiritual, integrando múltiplas pátrias sob uma mesma experiência de pertencimento e fé.

 4. Exemplos Concretos de Conexão Cultural

País Jogadores Brasileiros Clubes e Impacto Cultural
Itália Zico, Careca, Ronaldo, Kaká Udinese, Napoli, Roma, Milan — familiaridade com o italiano, conexão cultural e histórica com o futebol italiano
Espanha Romário, Rivaldo, Ronaldinho, Neymar Barcelona, Real Madrid — integração com o espanhol, vínculo afetivo com a cultura catalã e madrilenha
Holanda Romário, Ronaldo Ajax, PSV — contato com o holandês, associação do Brasil à inovação futebolística e cultural
Inglaterra Juninho Paulista, Gilberto Silva, Fernandinho, Alisson Premier League — familiaridade com inglês, projeção do Brasil no epicentro do capitalismo esportivo e midiático europeu

5. Conclusão: futebol como instrumento de nacionidade espiritual

O futebol brasileiro vai além do esporte:

  • Soft power: influencia culturas estrangeiras através de talento e estética.

  • Geoeconomia cultural: cria fluxos econômicos e simbólicos, transformando jogadores em ativos culturais.

  • Memória afetiva e geografia sentimental: conecta múltiplas pátrias, permitindo experienciar territórios como lar espiritual.

  • Superação de fronteiras: conecta Brasil e Europa de forma simbólica e espiritual, unindo culturas sob a experiência cristã compartilhada.

Neste sentido, o futebol é serviço e cumpre o propósito de Ourique de servir a Cristo em terras distantes. Se o brasileiro se santifica através do trabalho — e o primeiro trabalho realizado na terra de Santa Cruz foi a extração do pau-brasil —, o futebol pode ser entendido como uma dessas vertentes do labor santificador. Ao contrário dos ciclos econômicos que recaíam sobre coisas (pau-brasil, cana-de-açúcar, ouro, café), o ciclo do futebol recai sobre pessoas, a ponto de criar conexões e memórias que se estendem para além das fronteiras nacionais. Trata-se de bens que geram outros bens — não apenas materiais, mas espirituais e culturais — muito além do que Piero Sraffa concebeu em sua análise econômica.

Aqui, a comparação é iluminadora:

  • Sraffa descreveu um sistema fechado, onde mercadorias são produzidas por meio de mercadorias, reduzindo o processo a coisas objetivas.

  • Bastiat ensinou a ver o que não se vê, os efeitos invisíveis que escapam à análise superficial.

  • Benkler, em The Wealth of Networks, mostrou como as redes descentralizadas criam riqueza em forma de bens comuns informacionais.

  • O futebol brasileiro leva tudo isso adiante: mostra como pessoas em rede geram bens intangíveis (memórias, vínculos, espiritualidade) que multiplicam outros bens, visíveis e invisíveis, materiais e imateriais.

A esse quadro podemos acrescentar duas chaves interpretativas decisivas:

  • O homem cordial, de Sérgio Buarque de Holanda, que define a sociabilidade brasileira pela afetividade e pela emoção, encontra no futebol sua expressão máxima — a cordialidade que cria pontes espontâneas entre povos e culturas.

  • O homem construtor de pontes, de Szondi, que vê no ser humano a vocação de superar abismos e criar conexões, reflete-se no papel do jogador brasileiro que, ao atravessar fronteiras, não apenas integra clubes, mas funda verdadeiras passagens simbólicas entre nações.

Assim, o futebol brasileiro revela-se como síntese dessas tradições: cordialidade, rede e transcendência. Ele é ponte afetiva, cultural e espiritual, cumprindo a missão de Ourique ao servir a Cristo em terras distantes e mostrando que a verdadeira riqueza — mais do que mercadorias — está nas redes de pessoas e memórias que permanecem.

Bibliografia Comentada

  • Nye, Joseph S. – Soft Power: The Means to Success in World Politics (2004).
    Fundamenta a ideia de que o poder cultural pode ser tão eficaz quanto o militar ou econômico, base conceitual para analisar o futebol como instrumento de influência internacional.

  • Giulianotti, Richard & Robertson, Roland – Globalization and Football (2009).
    Explora a globalização do futebol, circulação de jogadores e mídia esportiva, fornecendo base para compreender o aspecto de geoeconomia cultural.

  • Lever, Janet – Soccer Madness: Brazil’s Passion for the World’s Most Popular Sport (1983).
    Analisa o futebol brasileiro como fator de identidade nacional e vetor de projeção internacional, importante para entender a memória afetiva gerada pelos jogadores.

  • Poli, Raffaele; Ravenel, Loïc; Besson, Roger – Exporting Football Talent: The International Transfer Market (CIES Reports, 2016).
    Examina o mercado global de transferências e circulação de jogadores, evidenciando a dimensão econômica e estratégica da exportação de atletas brasileiros.

  • DaMatta, Roberto – Universo do Futebol: Esporte e Sociedade Brasileira (1982).
    Analisa o futebol no contexto social brasileiro, conectando práticas esportivas à cultura, identidade e projeção simbólica internacional.

  • Salgado, Plínio – Geografia Sentimental (1930–1940).
    Fundamenta a tese de que território é também espaço emocional, permitindo compreender a “pátria de chuteiras” como experiência afetiva e espiritual.

  • Turner, Frederick Jackson – The Frontier in American History (1920).
    Introduz a ideia de fronteira espiritual e cultural, que pode ser aplicada à experiência transnacional do futebol brasileiro na Europa.

  • Sraffa, Piero – A Produção de Mercadorias por Meio de Mercadorias (1960).
    Apresenta um modelo estrutural da economia, baseado na produção circular de mercadorias, que contrasta com a produção simbólica de bens humanos e afetivos no futebol.

  • Bastiat, Frédéric – O que se vê e o que não se vê (1850).
    Expõe a metodologia de observar os efeitos invisíveis e indiretos da economia, essencial para compreender os impactos não imediatos do futebol na cultura e na espiritualidade.

  • Benkler, Yochai – The Wealth of Networks: How Social Production Transforms Markets and Freedom (2006).
    Analisa como redes colaborativas descentralizadas produzem valor informacional, analogia útil para entender as redes afetivas e espirituais criadas pelo futebol.

  • Holanda, Sérgio Buarque de – Raízes do Brasil (1936).
    Desenvolve a tese do “homem cordial”, cuja afetividade se reflete no futebol brasileiro como forma de criar vínculos espontâneos entre culturas.

  • Szondi, Lipót – Schicksalsanalyse (1961).
    Estabelece a noção do homem como “construtor de pontes”, categoria que ilumina o papel do jogador brasileiro como mediador simbólico entre povos.

O futebol brasileiro como ponte geocultural: entre a geopolítica e a geoeconomia

O futebol, mais do que um esporte, consolidou-se como um dos mais potentes vetores de projeção cultural do Brasil no mundo. Se na geopolítica tradicional as nações se afirmam por meio de poder militar, diplomático ou econômico, no campo simbólico o Brasil se inseriu no cenário internacional sobretudo através do talento de seus jogadores. Essa projeção cultural do futebol brasileiro possui desdobramentos tanto na geopolítica quanto na geoeconomia, pois atravessa fronteiras, mobiliza massas e cria vínculos afetivos entre povos.

1. Futebol como soft power Brasileiro

Joseph Nye cunhou o termo soft power para designar a capacidade de um país influenciar outros sem recorrer à coerção, mas através da atração cultural, da diplomacia e dos valores simbólicos. O futebol brasileiro, com sua estética, sua criatividade e seus craques — de Pelé a Ronaldo, de Zico a Kaká — tornou-se um dos maiores instrumentos de soft power do Brasil. Em países como Itália, Espanha, Holanda e Inglaterra, o futebol não só abriu portas para atletas brasileiros, mas construiu pontes culturais duradouras.

2. A geoeconomia da exportação de jogadores

Desde os anos 1980, a exportação de jogadores brasileiros se transformou em uma economia própria, com impacto direto na balança comercial do país. Os clubes europeus, cada vez mais ricos após a liberalização do mercado futebolístico e o advento da Lei Bosman (1995), passaram a recrutar massivamente talentos brasileiros. Essa circulação de jogadores cria uma “geoeconomia cultural” em que o Brasil exporta não apenas mão de obra qualificada, mas também símbolos e estilos de jogo que definem a identidade do futebol mundial.

3. O futebol como canal de integração linguística e cultural

A presença de brasileiros em campeonatos estrangeiros aproximou o público brasileiro de outras culturas. O acesso às transmissões esportivas italianas, espanholas ou holandesas não se limitava à observação da performance atlética, mas criava familiaridade com idiomas, expressões e modos de narrar o jogo. Assim, o futebol funcionou como um portal linguístico e emocional, permitindo que brasileiros adentrassem, quase de forma natural, no universo cultural de diferentes países.

4. Geopolítica da Memória Emocional

Há também uma dimensão geopolítica da memória. Quando um torcedor italiano lembra de Zico na Udinese, ou um espanhol recorda Romário e Ronaldinho no Barcelona, ou um holandês celebra Ronaldo no PSV, ele associa à sua própria história esportiva o talento vindo de fora. Essa memória coletiva torna-se uma espécie de arquivo cultural que transcende o futebol e fortalece a imagem positiva do Brasil.

5. O declínio relativo e a oportunidade da reinvenção

A partir do fim dos anos 2000, com a globalização do futebol e a concentração financeira em poucos clubes, a presença brasileira perdeu parte do brilho de outrora. Ainda assim, o patrimônio simbólico acumulado permite ao Brasil reposicionar-se. Ao investir em narrativas, arquivos digitais, transmissões históricas e diplomacia cultural ligada ao futebol, o país pode transformar essa herança esportiva em ativo estratégico de longo prazo, reconstituindo sua relevância geopolítica no campo cultural. 

Conclusão

O futebol brasileiro não foi apenas entretenimento, mas uma verdadeira infraestrutura de aproximação cultural entre povos. Ele gerou fluxos geoeconômicos significativos, sedimentou vínculos linguísticos e emocionais e consolidou uma imagem global positiva do Brasil. Em tempos em que a geopolítica se desdobra também no campo cultural, o legado do futebol brasileiro mostra-se como uma ponte estratégica, uma forma de “diplomacia popular” que nenhum outro setor nacional alcançou com igual profundidade.

Bibliografia Comentada

  • Nye, Joseph S.Soft Power: The Means to Success in World Politics (2004).
    Fundamenta a ideia de que o poder cultural pode ser tão eficaz quanto o militar ou econômico, base conceitual para analisar o futebol como instrumento de influência internacional.

  • Giulianotti, Richard & Robertson, RolandGlobalization and Football (2009).
    Explora como o futebol se tornou um fenômeno global, com circulação de jogadores e mídia esportiva, dando base para compreender o aspecto de geoeconomia cultural.

  • Lever, JanetSoccer Madness: Brazil’s Passion for the World’s Most Popular Sport (1983).
    Analisa o futebol brasileiro como fator de identidade nacional e vetor de projeção internacional, importante para entender a memória afetiva e cultural gerada pelos jogadores.

  • Poli, Raffaele; Ravenel, Loïc; Besson, RogerExporting Football Talent: The International Transfer Market (CIES Reports, 2016).
    Examina o mercado global de transferências e a circulação de jogadores, fornecendo dados para compreender a dimensão econômica e estratégica da exportação de atletas brasileiros.

  • DaMatta, RobertoUniverso do Futebol: Esporte e Sociedade Brasileira (1982).
    Analisa o futebol no contexto social brasileiro, conectando práticas esportivas à cultura, à identidade e à projeção simbólica internacional.

  • Helal, Ronaldo & Soares, Antônio JorgeFutebol e cultura: coletânea de estudos (2002).
    Conjunto de ensaios sobre o impacto cultural do futebol, relevante para embasar a discussão sobre geopolítica e geoeconomia cultural.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

A imprensa como assessoria social na democracia plebiscitária

Em uma democracia plebiscitária, em que o povo exerce a soberania de forma direta e informada, a imprensa assume um papel central que vai muito além da simples transmissão de fatos. Ela se transforma, efetivamente, em uma assessoria social, oferecendo ao cidadão os instrumentos necessários para compreender, avaliar e decidir sobre os rumos da sociedade.

O conceito de assessoria social atribuído à imprensa parte do princípio de que a participação popular exige informação precisa, contextualizada e transparente. Diferentemente de uma democracia representativa puramente formal, em que os eleitores delegam poder a representantes, a democracia plebiscitária pressupõe que o povo seja o agente ativo de decisões políticas. Nesse cenário, a imprensa não apenas relata eventos, mas interpreta, compara alternativas, aponta consequências e alerta sobre riscos ou inconsistências nas ações governamentais.

A condição essencial para que essa função seja cumprida é o compromisso com a verdade. Uma imprensa livre, mas pautada em interesses particulares ou na manipulação de dados, deixa de ser assessora e passa a ser uma ferramenta de distorção, desviando a soberania popular. Por isso, a ética jornalística, fundamentada na transparência e no rigor factual, torna-se imperativa: apenas uma imprensa fiel à realidade pode permitir que o povo exerça sua autoridade com discernimento.

Historicamente, sociedades em que a imprensa atuou como mediadora responsável e independente mostraram maior resiliência institucional. A circulação de informações confiáveis permite a educação cívica, a fiscalização do poder e a correção de rumos quando necessário, consolidando a função social do jornalismo. Ao mesmo tempo, ela estabelece um canal de diálogo entre Estado e sociedade, tornando visíveis demandas, insatisfações e necessidades, que, de outra forma, poderiam permanecer ignoradas.

Do ponto de vista teórico, autores como Jürgen Habermas (1989) destacam o papel do espaço público na consolidação da democracia, enfatizando que uma esfera pública informada é fundamental para a deliberação racional entre cidadãos. Já Noam Chomsky e Edward Herman (1988), em Manufacturing Consent, alertam para os riscos de uma mídia concentrada e manipulada, que pode transformar a imprensa em instrumento de poder econômico e político, desviando-a de seu papel social. Por sua vez, Seymour Martin Lipset (1960) mostra que a educação política e a informação de qualidade são essenciais para a estabilidade democrática, reforçando a ideia de que a imprensa bem feita é um pilar da soberania popular.

Portanto, a imprensa, quando bem exercida, cumpre um papel quase institucional de assessoria à cidadania. Ela transforma o ato de informar em uma ferramenta de empoderamento coletivo, reforçando a democracia ao permitir que cada cidadão participe de maneira fundamentada. A liberdade de imprensa, nesse contexto, não é um privilégio da mídia, mas um direito público essencial, um instrumento que assegura que a soberania popular não se limite a formalidades, mas se concretize em decisões conscientes e eficazes.

Em última análise, a imprensa livre e veraz é a ponte entre o cidadão e o exercício pleno de sua soberania. Ao prestar serviços de informação de qualidade, ela garante que a democracia plebiscitária não seja apenas um ideal abstrato, mas uma realidade viva, fundamentada no conhecimento, na transparência e na verdade.

Bibliografia

  • CHOMSKY, Noam; HERMAN, Edward S. Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media. New York: Pantheon Books, 1988.

  • HABERMAS, Jürgen. The Structural Transformation of the Public Sphere. Cambridge: MIT Press, 1989.

  • LIPSET, Seymour Martin. Political Man: The Social Bases of Politics. New York: Doubleday, 1960.

  • McQUAIL, Denis. McQuail’s Mass Communication Theory. London: Sage, 2010.

  • SCHUDSON, Michael. The Sociology of News. New York: W.W. Norton, 2003.

O futebol como ponte geopolítica e geoeconômica cultural

O futebol é, talvez, o mais poderoso vetor cultural do Brasil no mundo contemporâneo. Desde o século XX, a exportação de jogadores brasileiros para os grandes centros europeus ultrapassou a dimensão esportiva e se converteu em um fenômeno de geopolítica cultural, pois ampliou a presença simbólica do Brasil em espaços estratégicos da Europa, e em um fenômeno de geoeconomia cultural, ao gerar fluxos econômicos e simbólicos que consolidaram o futebol como mercadoria global.

1. O jogador brasileiro como embaixador cultural

Na ausência de uma política cultural organizada pelo Estado brasileiro, foram os craques que assumiram a função de verdadeiros embaixadores informais do país. Pelé nos anos 1960, Zico e Falcão nos anos 1980, Ronaldo, Rivaldo, Ronaldinho e Kaká nos anos 1990–2000 foram não apenas atletas, mas símbolos nacionais transnacionais, transmitidos ao vivo pelas televisões da Europa e agora eternizados no YouTube.

Cada jogador projetava no gramado europeu uma imagem do Brasil: talento natural, improviso criativo, alegria no jogo. Essa estética do futebol brasileiro funcionou como soft power, tornando o país admirado e reconhecido globalmente sem a necessidade de aparato diplomático direto.

2. O futebol como geopolítica cultural

O movimento dos craques brasileiros para a Europa configurou uma cartografia cultural que coincide com os centros do poder mundial.

  • Na Itália, os brasileiros integraram o auge da Serie A (anos 1980–2000), conectando o público brasileiro ao imaginário renascentista e à política italiana contemporânea.

  • Na Espanha, com o Barcelona de Romário, Rivaldo, Ronaldinho e depois Neymar, o Brasil se projetou dentro de uma narrativa de vanguarda cultural e modernidade catalã.

  • Na Holanda, os brasileiros no Ajax e PSV criaram vínculos com um país pequeno em território, mas gigante em comércio internacional, história colonial e inovação.

  • Na Inglaterra, com a Premier League, o talento brasileiro se inseriu no epicentro do capitalismo financeiro e do globalismo esportivo.

Assim, o futebol serviu como uma forma de inserção cultural indireta do Brasil em polos estratégicos da Europa.

3. A geoeconomia cultural do futebol

O futebol brasileiro tornou-se também um ativo da geoeconomia cultural. Cada transferência de jogador gerava não apenas receita imediata, mas um capital simbólico para o Brasil. As imagens exportadas pela televisão, e hoje reproduzidas livremente no YouTube, criam memórias emocionais de gerações inteiras de europeus e brasileiros.

Essa memória emocional se converte em um valor econômico de longo prazo: brasileiros consomem as línguas e culturas da Itália, Espanha, Holanda e Inglaterra através do futebol, e, em contrapartida, esses países mantêm o Brasil como fornecedor de talentos, sustentando uma relação assimétrica, mas duradoura.

4. O futebol como ponte de idiomas e culturas

Na prática, o futebol permitiu que milhões de brasileiros tivessem contato com o italiano, o espanhol, o holandês e o inglês por meio das transmissões esportivas. O YouTube reforçou essa ponte ao reabrir o arquivo histórico, permitindo que memórias individuais se transformassem em instrumentos de aprendizado cultural e linguístico.

Dessa forma, o futebol criou um campo de circulação simbólica que não depende de governos, mas da memória coletiva construída pela paixão esportiva. O brasileiro que aprende italiano ouvindo as narrações do Calcio dos anos 1990 está, sem perceber, participando de uma rede de geoeconomia cultural, na qual o consumo do esporte gera circulação de capital simbólico, linguístico e identitário.

Conclusão

O futebol brasileiro é mais que um espetáculo: é um instrumento geopolítico de inserção cultural e um ativo geoeconômico de longo prazo. Pela exportação de jogadores e pela difusão das transmissões esportivas, o Brasil projetou sua identidade para além de suas fronteiras, conectando gerações às línguas, culturas e imaginários europeus.

Assim, o futebol se confirma como uma das mais eficazes formas de soft power brasileiro, uma ponte que liga gramados a culturas, gols a línguas, e que transforma memória esportiva em patrimônio cultural transnacional.

Bibliografia

  • Nye, Joseph S. Soft Power: The Means to Success in World Politics. PublicAffairs, 2004.

  • Giulianotti, Richard; Robertson, Roland. Globalization and Football. SAGE Publications, 2009.

  • Lever, Janet; Puig, Núria. Soccer as Symbol: The World Cup and the Politics of Identity. International Review for the Sociology of Sport, 1983.

  • Helal, Ronaldo; Soares, Antônio Jorge. Futebol e cultura: coletânea de estudos. Rio de Janeiro: Mauad, 2002.

  • DaMatta, Roberto. Universo do Futebol: Esporte e Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982.

  • Poli, Raffaele; Ravenel, Loïc; Besson, Roger. Exporting Football Talent: The International Transfer Market. CIES Football Observatory Reports, 2016.

  • Lever, Janet. Soccer Madness: Brazil's Passion for the World’s Most Popular Sport. Waveland Press, 1983.

Robin Hood e São Dimas: Justiça, Moral e Heroísmo

A tradição cristã e a literatura medieval nos oferecem figuras que desafiam a lei e ao mesmo tempo se tornam símbolos de justiça. Dois exemplos notáveis são São Dimas, o “bom ladrão” crucificado ao lado de Jesus, e Robin Hood, lendário fora da lei da Inglaterra medieval. Embora separados por contexto histórico e motivação, ambos representam a tensão entre legalidade e justiça, oferecendo uma reflexão sobre moralidade, heroísmo e redenção.

São Dimas: Redenção e Justiça Espiritual

São Dimas é conhecido como o ladrão arrependido que, crucificado ao lado de Cristo, reconheceu a divindade e justiça do Senhor. Segundo o Evangelho de São Lucas (23:39-43), ele repreendeu o outro ladrão, demonstrando fé e arrependimento, e recebeu a promessa do Paraíso.

A figura de São Dimas simboliza a justiça espiritual e a redenção individual. Seu crime não é celebrado; o que importa é sua transformação moral. Ele nos lembra que a justiça verdadeira não se reduz à lei humana, mas se enraíza na ética, na fé e na possibilidade de reconciliação com o divino.

Robin Hood: Justiça Social e Heroísmo Popular

Robin Hood, por outro lado, surge da Inglaterra medieval como um herói popular que “roubava dos ricos para dar aos pobres”. Diferente de São Dimas, sua motivação não é espiritual, mas social: corrigir desigualdades impostas pela nobreza e pelo governo, desafiando leis injustas em nome de uma moral percebida pelo povo.

Robin Hood encarna a justiça social e o heroísmo coletivo. Ele se torna símbolo de resistência e solidariedade, lembrando que, em certas circunstâncias, a lei pode entrar em conflito com a moralidade e o bem comum. Sua ação é admirada não por arrependimento, mas pelo efeito positivo sobre a comunidade.

Semelhanças e Diferenças

Embora distintos, há pontos de contato entre Robin Hood e São Dimas:

Aspecto São Dimas Robin Hood
Lei Ladrão à margem da lei, mas arrependido Fora da lei, mas combate injustiças sociais
Motivação Arrependimento e fé Justiça social e redistribuição
Justiça Espiritual, transcendental Social, terrena
Reconhecimento Promessa de salvação Apoio popular e admiração
Impacto Individual e moral Coletivo e social

O paralelo entre ambos pode ser visto na forma como a justiça não coincide necessariamente com a lei formal. São Dimas representa a justiça eterna que transcende a legislação humana, enquanto Robin Hood ilustra a justiça terrena, que desafia a legislação para equilibrar desigualdades.

Conclusão

Podemos dizer que Robin Hood é uma versão medieval e social de São Dimas, no sentido de que ambos questionam a lei em nome de um princípio superior de justiça. No entanto, a diferença fundamental é que São Dimas busca redenção pessoal e salvação espiritual, enquanto Robin Hood busca transformação social e reconhecimento popular. Ambos nos convidam a refletir sobre o sentido profundo da justiça: nem sempre a lei protege o bem, e nem sempre o crime é moralmente condenável quando motivado pelo bem maior.

Bibliografia

  1. Bíblia Sagrada, Edição Pastoral, CNBB, 2006. (Lucas 23, 39-43)

  2. Holt, J. C. Robin Hood. London: Thames & Hudson, 1982.

  3. Dobson, R. B., & Taylor, J. Rymes of Robin Hood. Sutton Publishing, 1997.

  4. Brown, Peter. The Body and Society: Men, Women and Sexual Renunciation in Early Christianity. Columbia University Press, 1988.

  5. Knight, Stephen. Robin Hood: A Complete Study of the English Outlaw. Blackwell, 1994.

  6. Crossan, John Dominic. Jesus: A Revolutionary Biography. HarperOne, 1994.

A origem do imposto de renda na Inglaterra: da exceção de guerra à permanência fiscal

O imposto de renda, tal como conhecemos hoje, tem suas raízes na Inglaterra do final do século XVIII. Sua gênese revela um instrumento fiscal inicialmente extraordinário, criado em meio a crises econômicas e militares, que acabaria se consolidando como fonte regular de receita do Estado.

1. Contexto Histórico

No final do século XVIII, a Inglaterra enfrentava a necessidade urgente de financiar suas guerras contra a França revolucionária. O governo britânico precisava de recursos extraordinários, uma vez que os impostos tradicionais sobre consumo, comércio e propriedades não eram suficientes para sustentar os custos militares crescentes.

Foi nesse cenário que, em 1798, o então Primeiro-Ministro William Pitt, o Jovem, instituiu o Income Tax Act, criando o primeiro imposto de renda moderno. Esse imposto incidia sobre rendimentos individuais acima de determinados limiares, com alíquotas progressivas, atingindo principalmente a elite e as classes médias abastadas. A intenção era clara: tratar-se de um tributo extraordinário, temporário, voltado exclusivamente a financiar a guerra contra a França.

2. Natureza Temporária do Tributo

O imposto de renda nasceu, portanto, como medida emergencial. Pitt estabeleceu que ele seria revogado assim que a situação financeira se normalizasse. Ao longo do século XIX, o tributo foi suspenso diversas vezes, sempre que cessavam as crises ou guerras, confirmando sua natureza de exceção e não de regra.

3. Da Emergência à Permanência

Apesar de ser inicialmente extraordinário, o imposto de renda revelou-se eficaz como instrumento de arrecadação direta. A necessidade constante de financiar o Estado, somada à complexidade crescente da economia, evidenciou que depender apenas de tributos indiretos sobre consumo e comércio era insuficiente.

Em 1842, sob o governo de Sir Robert Peel, o imposto de renda foi restabelecido com caráter permanente. Peel reconheceu que, além de financiar emergências, o tributo poderia sustentar investimentos públicos e serviços essenciais, tornando-se pilar da política fiscal do Estado moderno. A regulamentação passou a exigir declaração formal de rendimentos e estabeleceu limites de isenção, consolidando a prática moderna de tributação sobre renda.

4. Paralelo Contemporâneo: CPMF no Brasil

A história do imposto de renda na Inglaterra tem paralelo com a criação de tributos temporários no Brasil, como a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira). Assim como o imposto de Pitt, a CPMF foi criada como um tributo extraordinário, voltado a financiar gastos específicos — no caso, o sistema de saúde e o equilíbrio fiscal. Entretanto, a experiência histórica mostra que tributos temporários podem ganhar vida própria e se tornar parte da estrutura fiscal regular, caso a necessidade do Estado se mantenha.

5. Legado e Conclusão

A trajetória do imposto de renda britânico evidencia que medidas extraordinárias, criadas para enfrentar crises temporárias, podem se tornar instrumentos permanentes de arrecadação pública. Sua eficácia transformou um tributo emergencial em pilar da política fiscal moderna, influenciando sistemas tributários em todo o mundo. A lição é clara: tributos provisórios, quando bem-sucedidos, têm grande potencial de se tornar permanentes, moldando a economia e a sociedade de forma duradoura.

Bibliografia Sugerida

  • Brewer, John. The Sinews of Power: War, Money, and the English State, 1688-1783. London: Unwin Hyman, 1989.

  • Daunton, Martin. Trusting Leviathan: The Politics of Taxation in Britain, 1799-1914. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.

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