No debate político contemporâneo, é comum ouvir a afirmação de que o país é “soberano”, como se esta simples palavra pudesse encerrar qualquer discussão. No entanto, é preciso perguntar: soberano com base em quê? Em nome de quem? Para realizar qual fim? A soberania, quando não ordenada à verdade, torna-se um princípio vazio — ou pior, um instrumento de dominação que mascara uma estrutura de poder fundada no erro e sustentada pela conveniência.
Dizer que o país é soberano, tout court, é argumento típico de quem toma o país como religião. Tudo está no Estado, nada está fora dele, e sobretudo nada pode estar contra ele. O soberanismo absoluto é o lugar de fala do ditador: uma justificação circular do poder, fundada apenas em si mesma. Trata-se de uma fé política metastática — ou seja, uma fé deslocada de seu objeto verdadeiro (Deus e sua ordem) e transplantada para um simulacro (o Estado, o regime, o status quo). Uma fé que migra como o câncer, corroendo o organismo político sob a aparência de unidade.
Razão de Estado ou racionalização da mentira?
A história já nos deu fartas provas de como as chamadas “razões de Estado” podem ser invocadas para legitimar toda sorte de arbitrariedade. Na ausência de um critério objetivo de justiça — isto é, de uma instância transcendente que transcenda os interesses do governante — o Estado se converte em juiz de si mesmo, legislador último e executor supremo de uma ordem que já não tem outro fundamento senão a própria continuidade do poder.
Essa é a essência do status quo revolucionário: um regime que conserva os frutos da ruptura como se fossem conquistas permanentes. O novo dogma é o da estabilidade, e sua teologia é feita de siglas, protocolos e relatórios técnicos. A revolução se institucionaliza, se burocratiza, e o poder passa a justificar a si mesmo não pelo que é, mas pelo que “funciona” — isto é, pelo que convém.
Ocorre, porém, que a conveniência é um critério amoral. Uma política fundada no conveniente, dissociada da verdade, já não se orienta pelo bem comum, mas pela manutenção da mentira com aparência de normalidade. Como escreveu Santo Agostinho, “sem justiça, os reinos são apenas grandes bandos de ladrões”. E se a justiça não tem mais outro critério senão o que o Estado diz que é, então não há justiça: há apenas força.
A soberania sem verdade: um sacrilégio político
Quando o soberano não reconhece nada acima de si — nem Deus, nem a ordem natural, nem a moral objetiva —, ele se coloca no lugar de Deus. Essa usurpação tem forma política, mas raiz espiritual: é a repetição da tentação original, em que o homem deseja ser como Deus, decidindo o bem e o mal por si mesmo.
Neste cenário, a soberania é sacralizada. Ela se torna um sacramentum diaboli, um falso sacramento, um rito que consagra a mentira como se fosse paz, a violência como se fosse ordem, e a arbitrariedade como se fosse legalidade. A decisão soberana, quando dissociada da verdade, torna-se o instrumento de uma nova religião secular, cujo altar é o Palácio do Planalto, o Congresso, a Suprema Corte — e cujo clero é formado por tecnocratas, ministros e juristas que vivem de manter intacto o estado de coisas vigente.
É por isso que toda decisão fundada em razões de Estado, quando não subordinada à verdade, conserva não o bem, mas o mal. Não a justiça, mas a injustiça institucionalizada. O soberanismo moderno é, nesse sentido, a teologia da revolução em sua fase madura, uma fé metastática que já não sabe por que crê, mas apenas que deve continuar crendo — pois do contrário tudo desaba.
Da autoridade ao poder nu
A autoridade verdadeira nasce do serviço à verdade. O poder nu, ao contrário, nasce da capacidade de impor a vontade de alguns sobre todos. A transição da autoridade para o poder nu se dá quando a política abandona a verdade como critério de legitimidade. E isso acontece, inevitavelmente, quando a soberania se torna fim em si mesma, em vez de meio para garantir a justiça e o bem comum.
O resultado é o império da exceção: o soberano decide, e sua decisão é lei, mesmo que contrarie a moral, a tradição e o bom senso. Carl Schmitt, ao definir o soberano como “aquele que decide sobre o estado de exceção”, não previa que o estado de exceção se tornaria a regra — e que o soberano deixaria de ser um monarca cristão para se tornar uma comissão partidária, um tribunal constitucional ou uma coligação internacional de tecnocratas. A exceção vira método. O caos vira sistema. A revolução vira Constituição.
Conclusão: A fé que restaura a verdade
A restauração da ordem não pode vir de mais poder, mas de mais verdade. Só há soberania legítima quando ela é reconhecida como um encargo sob a autoridade de Deus. Só há paz verdadeira quando ela está fundada na justiça. E só há justiça quando a decisão política está subordinada à ordem moral e natural.
O desafio do nosso tempo é resistir à tentação de crer no Estado como ídolo e restaurar a política como serviço à verdade. Isso não é tarefa de ideólogos nem de partidos, mas de homens que se santificam pelo trabalho, estudam com diligência e reconhecem que a liberdade só floresce quando é cultivada no solo da verdade.
Notas:
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Santo Agostinho, A Cidade de Deus, Livro IV, cap. 4.
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Pio XI, Non Abbiamo Bisogno (1931), condenação do Estado totalitário.
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Carl Schmitt, Teologia Política (1922).
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Eric Voegelin, A Nova Ciência da Política (1952).
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Joseph Ratzinger, Verdade, Valores, Poder (2005).