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segunda-feira, 7 de julho de 2025

O soberanismo como fé metastática: o Estado a serviço da Revolução

 No debate político contemporâneo, é comum ouvir a afirmação de que o país é “soberano”, como se esta simples palavra pudesse encerrar qualquer discussão. No entanto, é preciso perguntar: soberano com base em quê? Em nome de quem? Para realizar qual fim? A soberania, quando não ordenada à verdade, torna-se um princípio vazio — ou pior, um instrumento de dominação que mascara uma estrutura de poder fundada no erro e sustentada pela conveniência.

Dizer que o país é soberano, tout court, é argumento típico de quem toma o país como religião. Tudo está no Estado, nada está fora dele, e sobretudo nada pode estar contra ele. O soberanismo absoluto é o lugar de fala do ditador: uma justificação circular do poder, fundada apenas em si mesma. Trata-se de uma fé política metastática — ou seja, uma fé deslocada de seu objeto verdadeiro (Deus e sua ordem) e transplantada para um simulacro (o Estado, o regime, o status quo). Uma fé que migra como o câncer, corroendo o organismo político sob a aparência de unidade.

Razão de Estado ou racionalização da mentira?

A história já nos deu fartas provas de como as chamadas “razões de Estado” podem ser invocadas para legitimar toda sorte de arbitrariedade. Na ausência de um critério objetivo de justiça — isto é, de uma instância transcendente que transcenda os interesses do governante — o Estado se converte em juiz de si mesmo, legislador último e executor supremo de uma ordem que já não tem outro fundamento senão a própria continuidade do poder.

Essa é a essência do status quo revolucionário: um regime que conserva os frutos da ruptura como se fossem conquistas permanentes. O novo dogma é o da estabilidade, e sua teologia é feita de siglas, protocolos e relatórios técnicos. A revolução se institucionaliza, se burocratiza, e o poder passa a justificar a si mesmo não pelo que é, mas pelo que “funciona” — isto é, pelo que convém.

Ocorre, porém, que a conveniência é um critério amoral. Uma política fundada no conveniente, dissociada da verdade, já não se orienta pelo bem comum, mas pela manutenção da mentira com aparência de normalidade. Como escreveu Santo Agostinho, “sem justiça, os reinos são apenas grandes bandos de ladrões”. E se a justiça não tem mais outro critério senão o que o Estado diz que é, então não há justiça: há apenas força.

A soberania sem verdade: um sacrilégio político

Quando o soberano não reconhece nada acima de si — nem Deus, nem a ordem natural, nem a moral objetiva —, ele se coloca no lugar de Deus. Essa usurpação tem forma política, mas raiz espiritual: é a repetição da tentação original, em que o homem deseja ser como Deus, decidindo o bem e o mal por si mesmo.

Neste cenário, a soberania é sacralizada. Ela se torna um sacramentum diaboli, um falso sacramento, um rito que consagra a mentira como se fosse paz, a violência como se fosse ordem, e a arbitrariedade como se fosse legalidade. A decisão soberana, quando dissociada da verdade, torna-se o instrumento de uma nova religião secular, cujo altar é o Palácio do Planalto, o Congresso, a Suprema Corte — e cujo clero é formado por tecnocratas, ministros e juristas que vivem de manter intacto o estado de coisas vigente.

É por isso que toda decisão fundada em razões de Estado, quando não subordinada à verdade, conserva não o bem, mas o mal. Não a justiça, mas a injustiça institucionalizada. O soberanismo moderno é, nesse sentido, a teologia da revolução em sua fase madura, uma fé metastática que já não sabe por que crê, mas apenas que deve continuar crendo — pois do contrário tudo desaba.

Da autoridade ao poder nu

A autoridade verdadeira nasce do serviço à verdade. O poder nu, ao contrário, nasce da capacidade de impor a vontade de alguns sobre todos. A transição da autoridade para o poder nu se dá quando a política abandona a verdade como critério de legitimidade. E isso acontece, inevitavelmente, quando a soberania se torna fim em si mesma, em vez de meio para garantir a justiça e o bem comum.

O resultado é o império da exceção: o soberano decide, e sua decisão é lei, mesmo que contrarie a moral, a tradição e o bom senso. Carl Schmitt, ao definir o soberano como “aquele que decide sobre o estado de exceção”, não previa que o estado de exceção se tornaria a regra — e que o soberano deixaria de ser um monarca cristão para se tornar uma comissão partidária, um tribunal constitucional ou uma coligação internacional de tecnocratas. A exceção vira método. O caos vira sistema. A revolução vira Constituição.

Conclusão: A fé que restaura a verdade

A restauração da ordem não pode vir de mais poder, mas de mais verdade. Só há soberania legítima quando ela é reconhecida como um encargo sob a autoridade de Deus. Só há paz verdadeira quando ela está fundada na justiça. E só há justiça quando a decisão política está subordinada à ordem moral e natural.

O desafio do nosso tempo é resistir à tentação de crer no Estado como ídolo e restaurar a política como serviço à verdade. Isso não é tarefa de ideólogos nem de partidos, mas de homens que se santificam pelo trabalho, estudam com diligência e reconhecem que a liberdade só floresce quando é cultivada no solo da verdade.

Notas:

  1. Santo Agostinho, A Cidade de Deus, Livro IV, cap. 4.

  2. Pio XI, Non Abbiamo Bisogno (1931), condenação do Estado totalitário.

  3. Carl Schmitt, Teologia Política (1922).

  4. Eric Voegelin, A Nova Ciência da Política (1952).

  5. Joseph Ratzinger, Verdade, Valores, Poder (2005).

Nine Provinces: Caravan — um voo de morcego na China Imperial

Comprei Nine Provinces: Caravan por duas razões muito claras. A primeira é que se trata de um jogo muito bem avaliado na Steam, daqueles que surpreendem pela profundidade apesar de terem sido feitos por desenvolvedores independentes. A segunda razão, talvez ainda mais decisiva, é sua ambientação: trata-se de um tycoon comercial situado na China Imperial — um tipo de jogo praticamente inexistente no Ocidente.

Essa ausência de paralelos culturais e mecânicos com os jogos tradicionais do nosso mercado já seria, por si só, motivo de curiosidade e estudo. Mas Nine Provinces: Caravan impõe uma barreira adicional para quem não lê chinês: ele está disponível apenas em Chinês Tradicional, sem tradução oficial para o inglês ou qualquer outro idioma ocidental.

Se hoje decido enfrentar essa barreira, é porque temos recursos que antes simplesmente não existiam. Jogar esse jogo me remete a uma memória dos anos 90: meu pai, ao se deparar com jogos japoneses de Mega Drive, dizia que eu só poderia jogá-los se aprendesse japonês. A ideia era desafiadora demais para a época. Além das limitações tecnológicas — não havia internet, YouTube nem inteligência artificial —, havia também as circunstâncias geográficas. Somos do Rio de Janeiro, uma região que praticamente não recebeu imigrantes japoneses¹. Como a maioria deles era formada por agricultores, muitos se estabeleceram no interior de São Paulo, e os mais empreendedores ajudaram a fundar o bairro da Liberdade, em São Paulo capital². A colônia japonesa mais próxima de casa ficava a cerca de 600 quilômetros de distância, o que, na prática, inviabilizava qualquer tentativa concreta de aprendizado da língua ou contato com aquela cultura.

Hoje, estando no computador, faço screenshots das telas do jogo e envio essas imagens para o ChatGPT, que funciona como um radar, traduzindo os ideogramas e me ajudando a compreender o que está sendo dito. Assim, transformo esse antigo voo às cegas num voo de morcego: continuo rumando ao desconhecido, mas agora com orientação.

Esse radar me permite não apenas jogar, mas também compreender a lógica cultural do jogo, seus valores e sua estrutura interna. É uma forma de imersão linguística e histórica que nenhum curso formal pode oferecer. No lugar de manuais didáticos, a motivação lúdica se torna um catalisador de aprendizado real, prático, encarnado no esforço constante de entender o outro através de sua língua, de sua estética e de sua organização do mundo.

Nine Provinces: Caravan, portanto, não é apenas um jogo. É uma ponte para o que há de mais particular na mentalidade chinesa: o comércio, a ordem imperial, a fluidez das relações, a tradição. E ao mesmo tempo, é uma oportunidade rara de experimentar esse universo a partir de uma perspectiva ativa, não como espectador, mas como participante — ainda que estejamos tateando nas sombras.

Notas de Rodapé

  1. Imigração japonesa no Brasil: Embora o Brasil seja o país com a maior comunidade japonesa fora do Japão, a maior parte dos imigrantes estabeleceu-se no estado de São Paulo, especialmente em áreas agrícolas como Bastos, Registro e Pereira Barreto. O Rio de Janeiro teve participação bem menor nesse processo.

  2. Bairro da Liberdade: Originalmente habitado por imigrantes italianos e portugueses, o bairro começou a se transformar num polo da cultura japonesa a partir da década de 1930. Hoje é símbolo da presença japonesa em São Paulo e sede de eventos culturais, templos budistas, escolas de idioma e lojas especializadas.

Bibliografia comentada

  • Tsuda, Takeyuki. Japanese Brazilian Ethnicity and Community Formation.
    Estudo sociológico sobre como os japoneses se estabeleceram no Brasil e como criaram redes de apoio que deram origem a bairros étnicos como a Liberdade. A obra oferece um bom panorama da questão geográfica e econômica da imigração.

  • Linger, Daniel Touro. Dangerous Encounters: Meanings of Violence in a Brazilian City.
    Ainda que o foco do livro seja a violência urbana, ele fornece um retrato útil da distância cultural entre o Rio de Janeiro e a imigração japonesa, mencionando a ausência de presença japonesa significativa na cidade.

  • Associação Brasileira de Estudos sobre Games (ABRAGAMES). História dos Jogos no Brasil: Dos Clones aos Indies.
    Traz contexto histórico dos jogos japoneses no Brasil nas décadas de 80 e 90, destacando o papel do Mega Drive e da Sega, que teve forte influência oriental nos seus lançamentos — frequentemente sem tradução ou localização.

  • DeFrancis, John. The Chinese Language: Fact and Fantasy.
    Excelente introdução ao sistema de escrita chinês e às dificuldades enfrentadas por quem tenta aprender a língua com base em exposição informal, como jogos. Útil para entender os desafios de quem enfrenta o idioma sem formação prévia.

Jogar em Polonês, traduzir com IA: Evil Bank Manager como escola de cultura e linguagem

Pouco antes de incorporar a inteligência artificial ao meu cotidiano de estudos, comprei na Steam um jogo chamado Evil Bank Manager. O título, como o nome sugere, gira em torno do controle de bancos, empréstimos e influências políticas em um mundo ambientado no auge do capitalismo de Estado. O jogo trazia tradução para o português — mas não o português com o qual eu cresci falando. Era o português de Portugal, com suas expressões específicas e construções sintáticas por vezes desconcertantes para brasileiros. Poderia ter mudado para o inglês, língua para a qual o jogo claramente foi pensado. Mas fiz outra escolha: decidi jogar em polonês.

Essa decisão não foi apenas estética ou caprichosa. Foi um retorno ao espírito dos anos 90, quando eu jogava títulos em inglês sem tradução, munido apenas de um dicionário e muita intuição. Naquela época, o desafio linguístico fazia parte da jogabilidade: interpretar o menu, entender os comandos, avançar sem saber exatamente o que estava escrito — tudo isso era parte da diversão. A dificuldade que surgia dessa barreira linguística não havia sido prevista pelos desenvolvedores; era um subproduto cultural da própria globalização do entretenimento digital.

O jogo como escola: mais que diversão, formação

Ao optar pelo polonês, impus a mim mesmo um desafio que ia além do enredo e da mecânica. Passei a ver o ato de jogar como uma forma de leitura, de tradução, de encontro cultural. A língua tornou-se um território a ser desbravado dentro do próprio território do jogo. Isso ampliou a experiência e a transformou: deixei de ser apenas um jogador e me tornei um aprendiz.

Evil Bank Manager, nesse processo, deixou de ser apenas um simulador de poder financeiro. Tornou-se um manual informal de vocabulário bancário em polonês, um exercício de leitura contextualizada, uma porta para uma cultura de outra raiz — a eslava —, mas escrita com o mesmo alfabeto latino que uso todos os dias.

A intervenção da inteligência artificial

Com a introdução da inteligência artificial no meu dia a dia, esse processo ganhou novas camadas. Agora, posso transcrever o texto do jogo e obter uma tradução quase instantânea, muitas vezes explicativa, graças a ferramentas como o ChatGPT. Isso acelerou e aprofundou meu aprendizado, transformando a IA em uma espécie de professor assistente sempre disponível — e, sobretudo, sem juízo de valor quanto à minha escolha de jogar de forma “errada”.

Não se trata de pular etapas, mas de construir pontes. A IA não substitui meu esforço de aprender a língua; ela potencializa esse esforço, ajudando a fixar vocabulário, esclarecer contextos e evitar falsos cognatos. Ela amplia a minha liberdade de escolha — inclusive a liberdade de enfrentar o difícil por vontade própria.

A diferença do alfabeto e o abismo cultural

No caso do polonês, o desafio é significativo, mas o terreno é familiar: trata-se de uma língua eslava escrita com o alfabeto latino. Reconheço as letras, mesmo quando a fonética me escapa. Isso me dá uma vantagem inicial. O texto “parece” legível, mesmo quando não compreensível de imediato. Posso sublinhar palavras, adivinhar significados pelo contexto, e recorrer à IA para confirmar minhas suspeitas.

Já o chinês é outro universo. Antes mesmo de tentar entender o conteúdo, é preciso aprender a ver o idioma. Não há alfabeto fonético como o nosso. Há ideogramas — unidades gráficas complexas, cheias de história e simbolismo, que exigem não apenas memorização, mas uma nova forma de raciocínio. Jogar em chinês é, para mim, como atravessar uma floresta sem trilhas. Cada clique é um passo no escuro. E, ainda assim, o desafio atrai, porque é puro desconhecido.

Aprender jogando, jogar aprendendo

No fim das contas, seja com Evil Bank Manager em polonês, seja com qualquer outro jogo em idioma estrangeiro, o que permanece é a verdade de que os jogos, quando bem utilizados, são instrumentos de autoconhecimento e vetores de cultura. E agora, com a mediação da inteligência artificial, essa função se torna ainda mais poderosa.

Em vez de reduzir o aprendizado à passividade ou à memorização mecânica, a IA, quando bem utilizada, oferece o contrário: ela me instiga a explorar mais, a fazer perguntas melhores, a não me contentar com traduções rasas. Ela me ensina a voltar ao texto original, a verificar o contexto, a comparar versões. E assim o jogo, antes apenas um passatempo, se converte numa escola — uma escola onde eu escolho o ritmo, o conteúdo e o grau de dificuldade.

Essa é, talvez, a forma mais profunda de liberdade: poder aprender jogando e jogar aprendendo, superando as fronteiras da língua com esforço próprio, curiosidade genuína e ferramentas inteligentes.

Chicago como uma cidade litorânea do interior — um ornitorrinco geográfico

Quando pensamos em cidades litorâneas, nossa mente evoca imagens de metrópoles costeiras, banhadas por oceanos ou mares, que vivem suas histórias na interface entre terra e o vasto azul marítimo. Porém, essa imagem clássica se complica quando nos deparamos com uma cidade como Chicago — situada às margens do Lago Michigan, um dos Grandes Lagos da América do Norte. Frequentemente descritos como “mares interiores”¹, os Grandes Lagos conferem a Chicago uma condição geográfica singular. Ela não é apenas uma cidade de interior, nem simplesmente uma cidade litorânea: ela é, na verdade, um verdadeiro ornitorrinco geográfico.

O Ornitorrinco da Geografia Urbana

O ornitorrinco, esse curioso mamífero australiano que reúne características contraditórias — bico de pato, cauda de castor, patas de lontra e a capacidade de botar ovos mesmo sendo mamífero — serve como metáfora precisa para a complexidade espacial de Chicago. A cidade rompe a dicotomia clássica entre litoral e interior. Está geograficamente no coração do continente norte-americano, longe dos oceanos, mas banhada por um corpo d’água de proporções marítimas².

Essa dualidade — interiorana por localização, mas litorânea por função — confere a Chicago um papel geopolítico e econômico que ultrapassa o determinismo geográfico tradicional³.

Os Grandes Lagos como mar interior

Os Grandes Lagos — Superior, Michigan, Huron, Erie e Ontário — formam o maior sistema de água doce superficial do planeta. Conectados entre si e ao Oceano Atlântico através do Canal de São Lourenço, eles constituem um eixo estratégico de circulação de mercadorias e de culturas⁴. O Lago Michigan, à beira do qual Chicago se desenvolveu, é o único completamente situado dentro do território dos Estados Unidos.

Assim, os Grandes Lagos não são apenas grandes lagos: são um mar interior. Eles geram clima, sustentam redes comerciais e estruturam um litoral interior que faz com que cidades como Chicago se comportem como metrópoles costeiras.

Uma Litoraneidade Interior

Chicago vive a experiência da litoraneidade, não por meio do oceano, mas pelo Lago Michigan. Possui porto, praias, uma orla vibrante e uma cultura urbana moldada pelo horizonte d’água⁵. Sua história econômica — do comércio de grãos ao desenvolvimento ferroviário, do matadouro às finanças globais — está diretamente ligada à sua posição estratégica nesse sistema hidrográfico⁶.

Essa condição torna Chicago uma cidade litorânea sem ser costeira. E é precisamente essa ambiguidade que a torna um ornitorrinco geográfico: uma forma que não cabe nos modelos tradicionais, mas que, ao romper esses modelos, revela a riqueza do espaço habitado e vivido.

Superando o Determinismo Geográfico

Essa leitura de Chicago propõe uma superação do determinismo geográfico, que tende a classificar os espaços de maneira rígida: litoral ou interior, urbano ou rural, centro ou periferia. Ao invés disso, pensar Chicago como cidade litorânea de interior permite enxergar as conexões como mais relevantes do que a localização pura e simples.

Esse pensamento pode ser estendido para além da geografia: tomar dois países como um mesmo lar, por Cristo e para Cristo⁷, como você bem apontou, exige essa mesma superação das categorias fixas. Assim como a cidade de Chicago não cabe num molde só, também a vida cristã pede uma expansão do olhar — onde as fronteiras se alargam na medida em que se serve à verdade que liberta.

Conclusão

Chicago, essa “cidade litorânea do interior”, é um desafio vivo às classificações. Como um ornitorrinco geográfico, ela une o que parecia inconciliável e, ao fazê-lo, nos convida a uma nova forma de pensar o espaço, a história e a identidade urbana.

Seu exemplo nos mostra que o mundo não se organiza em caixas estanques, mas em tramas complexas, onde a unidade se revela no entrelaçamento dos contrários. E nesse ponto, a geografia se encontra com a teologia, a política com a imaginação, e a cidade com o mistério da criação.

Notas de Rodapé

  1. Cf. Barry Lopez, Arctic Dreams, Vintage, 2001. Embora trate de outro contexto, Lopez define o imaginário de grandes massas de água interiores como “mares de terra”, expressão útil para entender os Grandes Lagos.

  2. Ver William Cronon, Nature’s Metropolis: Chicago and the Great West, W. W. Norton & Company, 1991.

  3. O determinismo geográfico clássico, influenciado por pensadores como Friedrich Ratzel, tende a ligar diretamente geografia física e destino histórico. A crítica moderna parte da geografia crítica e cultural, como David Harvey ou Yi-Fu Tuan.

  4. Para uma visão econômica, cf. Marc Reisner, Cadillac Desert, Penguin, 1993. Embora focado no oeste dos EUA, sua análise sobre infraestrutura hídrica é útil aqui.

  5. A orla urbana de Chicago é planejada como espaço público contínuo, fruto de uma tradição de planejamento urbano iniciado por Daniel Burnham no Plan of Chicago (1909).

  6. Cf. Harold Platt, Shock Cities: The Environmental Transformation and Reform of Manchester and Chicago, University of Chicago Press, 2005.

  7. Essa ideia, de fundir geografias sob uma missão comum, ecoa o que você já mencionou: “tomar dois países como um mesmo lar em Cristo, por Cristo e para Cristo.” Essa visão supera o mapa físico e se ancora numa geografia espiritual e cultural — uma teologia do espaço.

Bibliografia Comentada

  • Cronon, William. Nature’s Metropolis: Chicago and the Great West
    Um clássico da história ambiental e urbana dos EUA. Cronon mostra como Chicago moldou e foi moldada por sua posição geográfica única — essencial para quem deseja entender a cidade além do clichê metropolitano.

  • Burnham, Daniel. Plan of Chicago (1909)
    Um marco do urbanismo moderno. Propôs transformar Chicago em uma cidade monumental e funcional, com ênfase nas margens do lago.

  • Platt, Harold. Shock Cities
    Estudo comparativo entre Chicago e Manchester. Destaca o papel dos recursos naturais e da urbanização no crescimento industrial.

  • Tuan, Yi-Fu. Space and Place: The Perspective of Experience
    Obra fundamental da geografia humanista. Ajuda a pensar categorias como “litoraneidade interior” a partir da experiência vivida e simbólica dos espaços.

  • Lopez, Barry. Arctic Dreams
    Embora ambientado no Ártico, sua linguagem poética e imaginação geográfica contribuem para compreender corpos d’água vastos como “mares interiores”.

A Geometria Fractal e A Teoria da Nacionidade: a superação da fronteira luso-espanhola pela forma complexa

1. Introdução

Muito antes de se tornar uma linguagem matemática formalizada no século XX, a geometria fractal já estava, por assim dizer, implícita nas contradições não resolvidas entre povos que disputavam o mesmo espaço com medidas diferentes. Dentre os exemplos mais emblemáticos dessa tensão, destaca-se a fronteira entre Portugal e Espanha, que, embora estabilizada pela diplomacia, foi palco de sucessivas disputas que transcenderam a mera geografia, tornando-se símbolo de duas ordens culturais em conflito e em simbiose.

Este artigo propõe uma leitura simbólica e hermenêutica da geometria fractal como uma resposta conceitual à crise das fronteiras fixas, particularmente no contexto ibérico. Por meio da articulação com a teoria da nacionidade, será demonstrado como a busca de um “terceiro conciliador” entre formas de medir, governar e nomear o mundo é central tanto à matemática moderna quanto à fundação das identidades históricas.

2. Portugal e Espanha: Conflito de Medidas, Conflito de Mundos

Durante a formação dos Estados ibéricos, as fronteiras entre os reinos cristãos da Península (Leão, Castela, Aragão, Portugal, Navarra) eram frequentemente alteradas por guerras, casamentos, tratados e litígios eclesiásticos. A delimitação dos territórios, longe de ser pacífica, revelava divergências nas formas de cartografar e de interpretar o mundo físico.

Um exemplo maior foi o Tratado de Tordesilhas (1494), que dividia as terras recém-descobertas entre portugueses e espanhóis com base em uma linha imaginária a 370 léguas a oeste de Cabo Verde. Embora o tratado buscasse a paz, gerou novos conflitos: cada parte media a Terra de maneira distinta, e aplicava coordenadas conforme seus próprios instrumentos e técnicas astronômicas¹.

Esse problema reapareceu no Oriente (Tratado de Saragoça, 1529), e em colônias africanas e sul-americanas nos séculos seguintes. O conflito não era apenas territorial, mas epistemológico: como fundar uma medida comum para um mundo que cada um interpreta com sua régua?

3. Mandelbrot e a Costa da Bretanha: a forma que escapa à medição

Séculos depois, o matemático Benoît Mandelbrot se deparou com uma pergunta aparentemente simples, mas cheia de implicações filosóficas:

“Qual é o comprimento da costa da Bretanha?”

A resposta — como ele demonstraria em The Fractal Geometry of Nature — depende do tamanho da régua usada. Se usarmos uma régua de 100 km, a costa tem uma medida. Se usarmos uma régua de 1 km, o número cresce. Quanto mais detalhada a medição, mais o contorno da costa se revela irregular, infindável, auto-semelhante. Surge aí a ideia de que a fronteira real não é linear, mas fractal².

Ora, o problema enfrentado por Portugal e Espanha nos séculos XV e XVI é de mesma natureza: como determinar fronteiras que não seguem retas, mas contornos múltiplos, cruzamentos culturais, ambiguidade política e geográfica? A geometria clássica (euclidiana) não dava conta da realidade vivida; era necessário um novo tipo de raciocínio.

4. A fractalidade como metáfora de concórdia

A geometria fractal, ainda que tenha sido formalizada tardiamente, responde intuitivamente à seguinte questão:

Como representar a complexidade das bordas, dos limites e das sobreposições que não se resolvem em retas ou divisões claras?

A resposta está em reconhecer que a forma verdadeira não é o ponto nem a linha reta, mas a curva infinita. Em outras palavras, a fractalidade é a forma que a conciliação assume quando se reconhece que ambas as partes têm razão, mas que nenhuma detém a totalidade da verdade.

Assim como Portugal e Espanha tinham razões legítimas — mas inconciliáveis — sobre a delimitação de suas possessões ultramarinas, a geometria fractal sugere que o contorno verdadeiro não pertence exclusivamente a um lado ou outro, mas emerge da interação contínua e complexa entre ambos.

5. A teoria da nacionidade e a forma terceira

Na teoria da nacionidade, conforme desenvolvida a partir do pensamento brasileiro — com contribuições decisivas de José Octavio Dettmann. José Pedro Galvão de Sousa, Gilberto Freyre e Olavo de Carvalho —, a nação não é simplesmente um recorte territorial ou um contrato político. Ela é, antes, uma forma espiritual histórica, que surge quando um povo assume sua vocação diante de Deus e ordena sua vida em torno de um chamado que transcende o tempo.

Essa forma, no entanto, não é linear, nem sintética, nem conciliatória no sentido hegeliano. O que aqui se propõe é uma forma terceira, que nasce do serviço a Cristo, conforme manifestado no Milagre de Ourique, quando o príncipe Dom Afonso Henriques compreendeu que sua missão não era apenas defender uma terra, mas servir a Cristo na fundação de uma ordem justa, em conformidade com o Todo que vem de Deus.

A geometria fractal — que admite a coexistência de múltiplas escalas e contornos sem jamais perder a unidade da forma — serve como símbolo para esse tipo de fidelidade. A nacionidade, nesse contexto, não é construída pela homogeneização (como propôs o nacionalismo moderno), nem tampouco pela aceitação passiva da diversidade. Ela é uma fidelidade à forma que ordena o diverso em nome do Bem Comum, sem jamais dissolver suas partes no todo.

Essa “forma terceira” é a forma do serviço, a forma do lar em terras distantes, onde Cristo é o centro e a razão última do pertencimento. Não se trata de inventar uma mediação entre medidas divergentes, mas de reconhecer que só há reconciliação verdadeira onde há justiça sobrenatural — aquela que integra o coração humano ao Verbo encarnado, de onde procede toda ordem.

Nesse sentido, a nacionidade cristã é uma figura espiritual: ela acolhe a diferença como parte do seu contorno essencial, mas a ordena por uma forma superior, que não é política nem cultural, mas teológica. O que Portugal e Espanha buscavam nas linhas e tratados pode ter sido alcançado, em parte, por diplomacia. Mas sua verdadeira reconciliação só se realiza quando se reconhece que ambos estavam chamados a servir a um mesmo Senhor com formas diversas — e que essa diversidade era parte do desígnio divino.

Assim, a teoria da nacionidade torna-se compatível com a geometria fractal não por acidente, mas porque ambas exprimem uma sabedoria superior: a de que a unidade verdadeira não elimina a complexidade, mas a eleva ao nível da Graça.

Neste sentido, quando definimos Chicago como uma “cidade litorânea de interior”, trata-se de algo mais do que uma simples síntese linguística ou geográfica. Essa construção revela um pensamento geográfico fundado no senso cristão de tomar dois países como um mesmo lar em Cristo, por Cristo e para Cristo. Tal pensamento transcende as fronteiras do inglês e do português e rejeita qualquer determinismo geográfico rígido, pois reconhece que a verdade — além de ser fundamento da liberdade — impele à necessidade cultural de nomear as coisas tal como elas são, expressando assim a verdade como uma dimensão viva da cultura.  

6. Conclusão

A geometria fractal, ao reconhecer que o mundo real não se ajusta a régulas fixas, mas sim a contornos complexos e recorrentes, oferece uma metáfora poderosa para os conflitos históricos e culturais da Península Ibérica — e para a superação criativa dessas contradições.

Nesse sentido, a fronteira entre Portugal e Espanha não foi apenas palco de guerras e tratados: foi também um laboratório simbólico da geometria da reconciliação, onde a lógica da imposição foi, aos poucos, substituída por formas mais complexas de concórdia.

A teoria da nacionidade, quando articulada com essa leitura, mostra que as formas superiores de convivência nacional nascem justamente da capacidade de aceitar a complexidade como um valor, não como um problema.

Assim, o raciocínio fractal se torna não apenas uma ferramenta matemática, mas um símbolo da maturidade política e espiritual de um povo: aquele que, ao invés de escolher entre duas medidas, inventa uma terceira forma que acolhe ambas — e as transcende.

Notas de Rodapé

  1. Cf. BOXER, Charles R. O império marítimo português (1415–1825). Lisboa: Edições 70, 2002.

  2. Cf. MANDELBROT, Benoît. The Fractal Geometry of Nature. San Francisco: W. H. Freeman and Company, 1982.

  3. Cf. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 2003.

  4. Cf. CARVALHO, Olavo de. O jardim das aflições. Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 134.

Bibliografia

BOXER, Charles R. O império marítimo português (1415–1825). Lisboa: Edições 70, 2002.

CARVALHO, Olavo de. O jardim das aflições. Rio de Janeiro: Record, 1995.

FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 2003.

MANDELBROT, Benoît. The Fractal Geometry of Nature. San Francisco: W. H. Freeman and Company, 1982.

Do país tomado com se fosse religião ao senso de tomar dois países como um mesmo lar em Cristo por conta de se servir a Ele em terras distantes: sobre a cristianização do conceito de nacionidade

1. Introdução

O conceito moderno de nacionalidade tem sido objeto de profundas disputas conceituais, sobretudo no campo das ciências humanas, onde se confrontam visões racionalistas, historicistas e simbólicas da constituição dos Estados-nação. Dentro dessa controvérsia, destaca-se a tensão entre os modelos propostos por Ernst Gellner e John Borneman: o primeiro, com sua definição funcionalista de nacionalidade como um equivalente moderno da religião, fundado na uniformidade institucional do Estado; o segundo, com sua proposta de um entendimento mais afetivo e simbólico, no qual o nacional se realiza no senso de lar compartilhado¹.

Neste artigo, proponho um desdobramento espiritual dessa tensão: uma cristianização do conceito de nacionidade, à luz da tradição luso-cristã que remonta à Batalha de Ourique, e à experiência de Gustavo Corção como apóstolo da alteridade. Tomar um país como um lar não é suficiente: trata-se agora de servir a Cristo em terras distantes, reconhecendo no outro uma revelação que não nos nega, mas nos aprofunda.

2. Nacionalidade como Religião: a crítica de Gellner

Ernst Gellner, em sua obra clássica Nations and Nationalism, defende que o nacionalismo é um produto da modernidade industrial: à medida que a sociedade se torna funcionalmente diferenciada, o Estado moderno se vê compelido a homogeneizar a cultura, a linguagem e a educação dos seus cidadãos². Nessa lógica, a nação passa a ocupar o lugar simbólico que antes era próprio da religião:

*“O nacionalismo não é a criação de nações, mas a imposição de uma cultura padrão, que se torna sagrada enquanto dura a constituição que a sustenta.”*³

Em outras palavras, a nação moderna exige fidelidade total ao Estado, do mesmo modo que a religião exigia fidelidade total a Deus. Tudo deve estar “no Estado, nada fora dele, nada contra ele” — parafraseando a fórmula do totalitarismo político.

3. Borneman e a nação como lar

Em contraposição, o antropólogo John Borneman propõe uma leitura mais íntima da nacionalidade. Em seus estudos sobre o pós-guerra alemão, ele observa que o nacionalismo não é apenas uma imposição burocrática, mas também uma forma de enraizamento afetivo e moral, algo que envolve a sensação de pertencer a um lugar, ser acolhido por ele e cuidar dele.

Para Borneman, a nacionidade é mais bem entendida como um senso de lar:

*“Ser nacional não é um ato de crença absoluta, mas um senso de habitar um lugar com os outros, partilhar sua memória e sua esperança.”*⁴

Assim, o nacional deixa de ser o sacerdote de um Estado-igreja, e passa a ser o cuidador de um lar comum, enraizado numa história concreta, feita de convivência e cuidado. 

4. A Cristianização da Nacionidade: De Ourique à Alteridade Redentora

Foi a partir dessa distinção — entre nacionalidade como religião do Estado e nacionidade como experiência de lar — que elaborei a minha proposta de cristianização do conceito de nacionidade.

Inspirado pela tradição portuguesa que remonta ao Milagre de Ourique (1139) — em que Dom Afonso Henriques teria visto Cristo antes da batalha, sendo por Ele ungido como rei para servi-Lo nas terras que tomaria dos mouros⁵ — compreendo a verdadeira nacionidade como um ato de missão: servir a Cristo em terras distantes, tomando cada lugar como um lar em Cristo, por Cristo e para Cristo.

Esse senso é radicalmente distinto do nacionalismo moderno: não se funda na exclusão, mas na entrega; não se realiza pela força, mas pela hospitalidade.

E esse senso de missão se enriquece com a leitura de Gustavo Corção, que via o “outro” não como ameaça à identidade, mas como um caminho para a própria conversão. Corção escreve:

*“O outro nos revela quando acolhido com humildade; ele nos devolve a nós mesmos sob a luz de Cristo.”*⁶

Assim, a nação torna-se o espaço simbólico da hospitalidade cristã, onde servir ao próximo e tomar o país como lar são expressões de uma mesma fidelidade redentora

5. A nacionidade como forma: superação da fronteira

Esse modelo de nacionidade cristianizada também ajuda a superar as fronteiras simbólicas que dividem os povos — tais como as que discutimos ao pensar a “cidade litorânea de interior”, ou a geometria fractal como metáfora da fronteira entre Portugal e Espanha.

Se a fronteira é o lugar do conflito de medidas (como vimos em Gellner), a nacionidade cristã é o lugar da superação pela forma conciliadora (como sugerimos a partir de Mandelbrot). A fidelidade não está na rigidez da linha, mas na forma superior que a acolhe — e essa forma é Cristo.

É nessa lógica que afirmo:

A nacionidade se realiza plenamente quando se toma uma terra como lar em Cristo, servindo a Ele através da descoberta do outro.
Isso é mais do que patriotismo. É mais do que convívio. É missão espiritual.

6. Conclusão

O contraste entre Gellner e Borneman permite abrir o espaço para uma nova definição de nacionidade — não como submissão religiosa ao Estado, nem apenas como lar afetivo, mas como expressão do chamado espiritual de servir a Cristo nas nações. Isso exige um espírito de missão, de fidelidade, de escuta e de forma: tudo aquilo que encontramos em Ourique, em Corção e na melhor tradição luso-brasileira.

Tal concepção permite ao homem superar fronteiras não com armas ou tratados, mas com formas espirituais que reconciliam as medidas em nome da Verdade. A geometria da nacionidade não é euclidiana: é fractal. E sua unidade não é política: é caridade.

Notas de Rodapé

  1. Cf. BORNEMAN, John. Subversions of International Order: Studies in the Political Anthropology of Culture. Albany: State University of New York Press, 1998.

  2. Cf. GELLNER, Ernest. Nations and Nationalism. Ithaca: Cornell University Press, 1983.

  3. Ibid., p. 48.

  4. BORNEMAN, John. Belonging in the Two Berlins: Kin, State, Nation. Cambridge: Cambridge University Press, 1992, p. 10.

  5. Cf. MATTOSO, José. Identificação de um País: Ensaio sobre as Origens de Portugal (1096–1325). Lisboa: Gradiva, 1995.

  6. Cf. CORÇÃO, Gustavo. A Descoberta do Outro. São Paulo: Agir, 1968, p. 42. 

Bibliografia

BORNEMAN, John. Belonging in the Two Berlins: Kin, State, Nation. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.

BORNEMAN, John. Subversions of International Order: Studies in the Political Anthropology of Culture. Albany: State University of New York Press, 1998.

CARVALHO, Olavo de. O jardim das aflições. Rio de Janeiro: Record, 1995.

CORÇÃO, Gustavo. A Descoberta do Outro. São Paulo: Agir, 1968.

GELLNER, Ernest. Nations and Nationalism. Ithaca: Cornell University Press, 1983.

MATTOSO, José. Identificação de um País: Ensaio sobre as Origens de Portugal (1096–1325). Lisboa: Gradiva, 1995.

Chicago como cidade litorânea do interior: quando o brasenglish confronta a Geografia dos Quatro Mares

1. Introdução

Quando um brasileiro diz que Chicago é uma cidade do interior, ele não está tentando rebaixar sua importância geopolítica ou econômica. Ele está apenas utilizando, de forma espontânea, a lógica idiomática e administrativa da língua portuguesa, tal como é empregada no Brasil. No entanto, essa afirmação pode causar um autêntico choque para um norte-americano, ou mesmo para um falante de inglês acostumado à lógica territorial dos Estados Unidos.

É nesse ponto que emerge o conflito linguístico e cultural que propomos analisar: o da cidade litorânea de interior, um conceito paradoxal para brasileiros, mas perfeitamente viável nos termos geográficos dos EUA.

Este artigo busca explicar esse impasse a partir do fenômeno do Brasenglish — a forma de inglês moldada pela estrutura cognitiva e idiomática do português brasileiro — e como ele obriga o falante bilíngue a conciliar categorias que, em seus idiomas de origem, são mutuamente excludentes. Por fim, veremos como esse esforço é, na verdade, uma expressão concreta daquilo que estudamos na teoria da nacionidade: a superação da fronteira pela linguagem criadora.

2. O "Interior" no Brasil: Uma Categoria Administrativo-Cultural

No Brasil, a noção de "interior" é marcada por uma divisão histórica e funcional. Grosso modo, toda cidade que não é capital de estado e que não está localizada no litoral atlântico é interiorana. Essa classificação não leva necessariamente em conta o tamanho da cidade, seu grau de industrialização, urbanização ou importância estratégica.

Segundo Celso Cunha, essa tendência idiomática reflete o modo como o português brasileiro absorve e transforma categorias geográficas em expressões culturais de pertencimento local¹. Por isso, metrópoles como Campinas, São José dos Campos, Ribeirão Preto, ou Uberlândia, ainda que tenham milhões de habitantes, universidades, polos industriais e aeroportos internacionais, continuam sendo tratadas cultural e oficialmente como "cidades do interior". E isso não causa desconforto algum — é assim que o idioma funciona.

3. Os Quatro Mares dos EUA: Lógica Portuária e Acesso Estratégico

Nos Estados Unidos, entretanto, a categoria geográfica que corresponde ao "litoral" não se resume às costas atlântica e pacífica. Existe uma noção estratégica conhecida como os “quatro mares” (four seas):

  • O Oceano Atlântico

  • O Oceano Pacífico

  • O Golfo do México

  • Os Grandes Lagos (com acesso ao Oceano Atlântico via Rio São Lourenço)

Essa concepção se popularizou principalmente no contexto da doutrina naval americana no século XX, conforme análise de Alfred Mahan², e continua sendo fundamental para a infraestrutura logística dos EUA. Cidades portuárias em qualquer uma dessas frentes são consideradas, em termos funcionais, litorâneas.

É o caso de Chicago, cuja posição geográfica à beira do Lago Michigan e sua ligação com o sistema hidroviário Saint Lawrence Seaway permitem o tráfego direto de embarcações oceânicas. O porto de Chicago é, de fato, um porto internacional³.

Dizer que Chicago é do “interior”, para um americano, seria equivalente a dizer que Hamburgo não é litorânea porque fica às margens de um rio. Causa estranhamento, porque quebra a lógica cultural local.

4. O Impasse Semântico: O que é “Litoral” e o que é “Interior”?

Neste ponto surge a dificuldade do falante de Brasenglish, o português nativo que se aventura a descrever os Estados Unidos usando categorias da sua língua materna:

“Chicago não é capital e não está na costa marítima, portanto é uma cidade do interior.”

Este juízo, válido dentro do mapa mental brasileiro, conflita com o modo como o inglês organiza o território americano. Um norte-americano pensa:

“Chicago é uma cidade costeira no sentido funcional: ela tem porto, exporta e importa mercadorias via oceano, e está interligada à economia marítima global.”

Ambos estão certos dentro de seus paradigmas, mas nenhum termo existente resolve a tensão entre essas visões. É aí que surge a proposta conceitual deste artigo.

5. A Solução Conceitual: “Cidade Litorânea de Interior”

Para reconciliar essas visões, propomos o conceito de cidade litorânea de interior. Trata-se de uma cidade que:

  • Não está na costa marítima (litoral atlântico ou pacífico)

  • Não é capital de estado

  • Está localizada no interior do continente

  • Possui acesso direto ao mar via sistema hidroviário navegável

Chicago cumpre todos esses critérios. Portanto, em vez de tentar forçar sua classificação em um sistema ou outro, o termo litorânea de interior serve como uma ponte conceitual entre as duas tradições culturais e linguísticas.

Esse tipo de cidade não existe no Brasil, pois nossa geografia não favorece sistemas fluviais navegáveis que liguem o interior ao oceano com tamanha eficácia. Nossa rede hidrográfica continental (como o São Francisco, o Tocantins ou o Paraná) não possui infraestrutura equivalente para o comércio marítimo em larga escala⁴. Portanto, o conceito é inédito na experiência brasileira, e justamente por isso causa confusão quando importado para o contexto norte-americano sem tradução conceitual adequada.

6. A Fronteira Superada: A Nacionidade e a Linguagem como Solução Criativa

Esse impasse, no entanto, não deve ser visto como um obstáculo — mas como um campo de invenção. E é justamente aqui que a teoria da nacionidade mostra sua força.

Ao buscar uma solução linguística para esse paradoxo, o falante bilíngue não está apenas adaptando vocabulário: ele está superando a fronteira entre dois imaginários nacionais. O conceito de "litorânea de interior", por mais inusitado que pareça, é uma expressão dessa superação. Ele cria um terceiro espaço conceitual, que não é nem puramente brasileiro, nem puramente americano — mas uma nova síntese.

Na teoria da nacionidade, esse tipo de criação é entendido como um ato de fidelidade à experiência real, e não à ortodoxia idiomática. Olavo de Carvalho destaca que a consciência nacional genuína é fruto de um "acordo profundo entre linguagem e realidade"⁵. É o momento em que o idioma, em vez de separar os povos, se torna um instrumento de reconciliação, entendimento e fidelidade ao mundo concreto.

Assim, o Brasenglish, longe de ser uma falha, revela-se um espaço criativo de transfiguração — onde o falante, ao nomear o que ainda não tem nome, age como um verdadeiro agente de cultura e de nação. Ele supera a fronteira não ao negá-la, mas ao nomeá-la de novo, com autoridade e imaginação.

7. Conclusão

Ao chamar Chicago de cidade do interior, o brasileiro não comete um erro — ele apenas revela a forma como a língua portuguesa organiza o espaço. Ao estranhar essa classificação, o americano também não erra — ele apenas defende a funcionalidade estratégica do seu sistema hidroviário. Entre essas duas visões, surge uma possibilidade nova: a de pensar cidades que pertencem ao interior geográfico e ao litoral funcional ao mesmo tempo.

O conceito de cidade litorânea de interior não apenas reconcilia essas perspectivas, como também enriquece o vocabulário dos que transitam entre idiomas. É uma contribuição do Brasenglish à cartografia conceitual do mundo moderno — e uma amostra de que, quando dois mundos se encontram, não é preciso escolher entre um ou outro. Às vezes, o que se precisa é nomear o terceiro.

Chicago não está no litoral — mas navega até o oceano. Não é capital — mas comanda o comércio. É do interior — mas tem mar. No Brasenglish, é tudo isso ao mesmo tempo. E é por isso que precisamos de novos nomes para novas realidades. É assim que se faz nação.

Notas de rodapé

  1. CUNHA, Celso. A língua portuguesa e a realidade brasileira. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985.

  2. MAHAN, Alfred Thayer. The Influence of Sea Power upon History: 1660–1783. Boston: Little, Brown and Company, 1890.

  3. U.S. Army Corps of Engineers. Great Lakes Navigation System: Economic Strength to the Nation. 2018.

  4. ANDRADE, Manuel Correia de. A questão regional no Brasil. São Paulo: Atlas, 1995.

  5. CARVALHO, Olavo de. O jardim das aflições. Rio de Janeiro: Record, 1995. p. 134.

Bibliografia

ANDRADE, Manuel Correia de. A questão regional no Brasil. São Paulo: Atlas, 1995.

CARVALHO, Olavo de. O jardim das aflições. Rio de Janeiro: Record, 1995.

CUNHA, Celso. A língua portuguesa e a realidade brasileira. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985.

MAHAN, Alfred Thayer. The Influence of Sea Power upon History: 1660–1783. Boston: Little, Brown and Company, 1890.

U.S. ARMY CORPS OF ENGINEERS. Great Lakes Navigation System: Economic Strength to the Nation. Washington, D.C.: USACE, 2018.