Introdução
A mobilidade transfronteiriça e a complexidade dos regimes fiscais e políticos nas regiões fronteiriças da América do Sul criam uma realidade jurídica e social ainda pouco analisada. O fenômeno da binacionalidade de circunstância — quando um indivíduo possui direitos e deveres em dois países distintos, sem necessariamente acumular múltiplas nacionalidades — expõe tensões entre residência, tributação e representação política.
Esse artigo busca discutir como a binacionalidade de uma ou duas circunstâncias impõe pluralidade de domicílio prática e, simultaneamente, evidencia potenciais violações de princípios constitucionais, como o da representação proporcional à tributação — frequentemente resumido pelo lema histórico: no taxation without representation.
1. Binacionalidade de Circunstância: definição e implicações
A binacionalidade de circunstância não depende da posse de múltiplos passaportes, mas sim de condições jurídicas e territoriais específicas de fronteira, que conferem direitos e deveres em mais de uma jurisdição.
Exemplo prático: um indivíduo com residência em Foz do Iguaçu (Brasil) e posse de RUC paraguaio (Paraguai) se torna binacional de circunstância Brasil–Paraguai, podendo circular livremente, manter propriedades, importar mercadorias com benefícios fiscais e acessar regimes de fronteira específicos.
Essa posição exige acompanhamento constante das políticas e decisões das capitais, como Brasília e Assunção, porque mudanças legislativas, tributárias ou comerciais afetam diretamente os interesses pessoais e patrimoniais do indivíduo.
2. Binacionalidade de duas circunstâncias e pluralidade de domicílio
Quando se acumula mais de uma circunstância de fronteira — por exemplo, Brasil–Paraguai e Brasil–Colômbia — a complexidade aumenta significativamente.
O indivíduo passa a ser impactado por múltiplos regimes legais e fiscais, cada um com suas regras de circulação, tributação e comércio. Para gerir esses interesses de forma eficaz, torna-se necessária a pluralidade de domicílio prática: a capacidade de manter vínculos jurídicos e residenciais em múltiplos territórios, de modo a proteger seus direitos e cumprir deveres legais.
Essa pluralidade é, no entanto, incompatível com certas normas nacionais, como a legislação eleitoral brasileira, que vedam múltiplos domicílios eleitorais. Tal restrição impede que o indivíduo seja representado proporcionalmente à complexidade de sua vida transfronteiriça.
3. Tributação e Representação: a violação do princípio de “no taxation without representation”
A tributação de indivíduos binacionais de circunstância ou de duas circunstâncias levanta questões constitucionais:
-
Impacto fiscal múltiplo: o contribuinte é tributado por diversos Estados ou jurisdições em função de suas atividades fronteiriças, importações e circulação de bens e serviços.
-
Ausência de representação proporcional: devido à vedação de múltiplos domicílios eleitorais, ele não possui representação política equivalente ao impacto fiscal que sofre.
Esse descompasso configura potencial violação do princípio histórico de no taxation without representation, segundo o qual quem contribui financeiramente para o Estado deve ter voz na definição das leis que regulam essa contribuição.
4. Implicações Sociais e Políticas
A situação descrita evidencia uma tensão estrutural entre:
-
A mobilidade transfronteiriça e os direitos decorrentes da binacionalidade de circunstância;
-
A necessidade de pluralidade de domicílio para gestão de interesses complexos;
-
A limitação da legislação nacional quanto à representação política e domicílio eleitoral;
-
A tributação sobre atividades e bens transfronteiriços.
Do ponto de vista social e político, indivíduos nessa posição tornam-se agentes transfronteiriços, cuja participação efetiva na vida democrática é limitada pela legislação vigente, criando uma zona cinzenta de cidadania e representação.
5. Conclusão
A binacionalidade de circunstância e a pluralidade de domicílio prática revelam lacunas legais significativas, que impactam diretamente os princípios de representação proporcional e justiça tributária.
O estudo desses fenômenos sugere a necessidade de:
-
Revisão legislativa para reconhecer pluralidade de domicílios em contextos fronteiriços;
-
Adaptação de regras eleitorais para permitir representação proporcional à complexidade da vida transfronteiriça;
-
Proteção constitucional contra tributação sem representação adequada, alinhando a legislação nacional com princípios históricos de justiça fiscal.
Assim, a análise da binacionalidade de circunstância e da pluralidade de domicílio evidencia não apenas desafios jurídicos, mas também a urgência de repensar cidadania, mobilidade e representação política nas fronteiras sul-americanas.
📚 Bibliografia Comentada
Narratives and Imaginings of Citizenship in Latin America — (orgs. Cristina Rojas & Judy Metzler, 2014)
Comentário: Este livro coletivo discute como a cidadania na América Latina já foi pensada e reinventada ao longo do século XX e início do XXI — não apenas como um status legal, mas como um imaginário social, cultural e político. Oferece uma perspectiva histórica e sociológica de como diferentes comunidades, migrações e dinâmicas regionais transformam o conceito de cidadania.
Relevância para seu argumento: útil para fundamentar a ideia de que a “cidadania” não é algo fixo ou puramente estatal, mas um campo fluido — o que abre brechas para pensar em “binacionalidade de circunstância” e “pluralidade de domicílio” como formas legítimas de pertencimento. Routledge
Para além das fronteiras: cidadania transnacional — Elaine Dupas, Leonardo Chaves de Carvalho & Luciani Coimbra de Carvalho (2019)
Comentário: Artigo proveniente de dissertação de mestrado, publicado na revista Videre, que aborda o fenômeno da “cidadania transnacional”: pessoas cujos vínculos sociais, econômicos e culturais se estendem além das fronteiras nacionais, tornando obsoleta a dicotomia “nacional / estrangeiro”. Analisa deslocamentos humanos e a necessidade de reimaginar direitos e deveres em contextos transnacionais.
Relevância: fundamenta a legitimidade sociológica e jurídica da vida transfronteiriça — exatamente o tipo de situação que você descreve quando fala de binacionalidade de circunstância e pluralidade de domicílio. UFGD Journals
Borderlands/La Frontera: The New Mestiza — Gloria Anzaldúa (1987)
Comentário: Obra clássica sobre experiência de vida nas “fronteiras” (no caso, México–EUA), onde identidades culturais, linguísticas e existenciais se misturam. Trata da “mestiza” (ou fronteiriça) como um ser híbrido — nem de um lado nem de outro, mas formando uma nova consciência de pertença múltipla.
Relevância: fornece um arcabouço existencial e identitário para pensar a fronteira não apenas como limite geográfico, mas como território de síntese cultural e espiritual — correspondendo à sua ideia de “lar em Cristo, por Cristo e para Cristo” que une múltiplos países sob uma mesma vocação. Wikipedia+1
New Frontiers in Latin American Borderlands — (org. Leslie Cecil)
Comentário: Antologia que analisa como, na América Latina, as fronteiras continuam sendo reconfiguradas — não apenas geograficamente, mas por meio de arte, gênero, políticas sociais, migrações e transformações culturais.
Relevância: ajuda a compreender que a dinâmica de fronteira não é algo estático: as fronteiras são vivas, mutantes, e possibilitam a emergência de novas formas de identidade, cidadania e domicílio — o terreno teórico ideal para defender pluralidade domiciliar e binacionalidade funcional. Cambridge Scholars
Consolidação dos estados nacionais Sul‑americanos a partir das fronteiras e da integração regional — Miguel Dhenin (2023)
Comentário: Estudo histórico‑geopolítico da consolidação dos Estados sul‑americanos, com foco no papel das fronteiras e na tensão entre centros (capitais) e periferias (fronteiras). Analisa como as fronteiras foram — e ainda são — espaços marginais, ambíguos, de negociação e resistência.
Relevância: embasa historicamente a ideia de que as fronteiras mantêm dinâmicas próprias — muitas vezes distintas ou até opostas aos centros — reforçando a necessidade de repensar domicílio, representação e tributação para quem vive e atua nesses espaços. teoriaepesquisa.ufscar.br
The Border Reader — (eds. Gilberto Rosas & Mireya Loza, edição 2023)
Comentário: Coletânea representativa dos estudos contemporâneos sobre fronteiras (no caso, focada em EUA–México), tratando fronteira como “região de produção de conhecimento, identidade e poder”, e não apenas como linha de demarcação. Explora migração, cidadania, ilegalidade, direitos e resistências.
Relevância: ainda que fora do contexto sul‑americano direto, traz conceitos teóricos e metodológicos que servem de paradigma para entender a fronteira como espaço de pluralidade e ambivalência — o que casa bem com a sua proposta de vida transfronteiriça e binacional por circunstância. Duke University Press