Pesquisar este blog

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Crítica de Leonardo Faccioni ao Conde


1) Permito-me a liberdade de republicar uma coletânea de comentários meus, mui despretensiosamente liberados logo após a exortação apostólica do Santo Padre Francisco, e oferecer ao amigo Leonardo Oliveira subsídios para uma correção de rumo. 

2) Ocorre que, embora eventualmente concorde com o xará, sinto-me profundamente incomodado por sua obsessão, de um mês para cá, em atacar "os católicos" (ao mesmo tempo em que entre eles se inclui) a partir de generalizações grosseiras de suas discussões com uma ou duas pessoas. Esse esforço, caro Oliveira, não tem sentido. E, agora, critica a doutrina chamada distributivismo. Como se vê adiante, concordo que a doutrina - e a DSI de modo geral - mereça reparos, mas por motivos bem outros.

3) O que não entendo é como um amigo de formação tão sólida, com tantos serviços prestados a boas causas e evidente amor pela cultura e pela história cristãs, de uma hora para outra, permita-se uma cruzada tão temerária, empregando expedientes típicos de marxistas aculturados ao falar, por exemplo, de institutos sociais medievais que, até outro dia, conhecia muito bem e muito deles se orgulhava. 

Enfim, ao tema:

4) Economia é economia, justiça é justiça. Cada arte possui sua própria função. Idealizar inteiros sistemas virtuosos em si mesmos é ignorar que o espaço de harmonização entre uma arte e outra - o espaço onde a virtude se manifesta - não é o objeto, o modelo, o organograma, mas o homem enquanto tal, em sua realidade inquebrantável de pessoa a refletir a imagem divina. 

5) Isto posto, sabendo que eventualmente contrariarei nisto muitos amigos que se vêm manifestando em apoio aos meus comentários mais recentes noutros sentidos, peço vênia para apontar dois erros sistemáticos que entendo haver em um certo modo de defender a Doutrina Social da Igreja:

I - Quando a DSI veio proposta em sua forma atual, seus teóricos nutriam a expectativa de uma sociedade ou imbuída de valores cristãos, ou apta a vê-los restaurados como pensamento hegemônico. É dizer, para o sucesso da DSI, é PRESSUPOSTO que o povo por ela abarcado seja um povo catequizado, verdadeiramente católico. 

A DSI é pensada a fim de promover uma sociedade orgânica/organizada/dotada de organismos impregnados de missionarismo cristão. E isso é belíssimo. Quando essa sociedade conta com indivíduos aptos a ocupar e coordenar tais espaços para os fins católicos pelos quais foram propostos. Nós acaso os possuímos? Se a resposta é negativa, uma organização social baseada na DSI cria puros e simples vazios de poder a serem preenchidos por quem estiver disponível. E a mão de obra disponível é maciçamente anticristã.

Não adianta promover o associativismo onde não há com quem se associar. É inútil propagar a distribuição quando os beneficiários foram educados a serem eles próprios, a seu modo, concentradores de benesses. De nada vale criar sindicatos a pensar nas gloriosas corporações de ofício medievais, quando a cultura do sindicalismo contemporâneo resume-se não à excelência e dignidade daqueles tempos, mas à mediocridade compulsória e à locupletação individual. 

Assim que, antes de catequizarmos instituições, é necessário formar os homens que irão compô-las. E isso não será concluído em nosso tempo de vida. As instituições serão conseqüência, por exclusiva graça divina e mérito das obras de muitas formiguinhas na fé. 

II - Percebo certo fetichismo em atribuir virtudes a conceitos abstratos como "a economia justa" e, em sentido oposto, vícios - como o "capitalismo ganancioso". Primeiro, porque economias não são justas, nem injustas. Uma inteira economia é uma teia de relações tão brutalmente emaranhadas que a mente humana sequer poderia sonhar julgá-las como um todo sólido. A justiça de tais relações deve ser verificada caso a caso, em consideração aos sujeitos concretos nelas envolvidos. 

Já "o capitalismo" é o conceito mais aberto imaginável. Melhor seria falar em livre disposição do trabalho e de seu fruto. E qual seria a alternativa? Impormos a todos que dispusessem de seus corpos e bens em conformidade para com o Magistério da Igreja acerca de cada aspecto da vida? Se assim fizéssemos, que mérito restaria aos indivíduos ao serem virtuosos? Pode a verdadeira virtude ser uma linha de ação compulsória? Alguém pode ser obrigado por outro homem a ser integralmente virtuoso? Se pode, por que raios Deus não nos compeliu Ele próprio, desde Sua onipotência, a assim agir? Por que permitiu até aos anjos que escolhessem entre o Absoluto e o contingente?

Não há sistemas econômicos justos ou injustos. Sistemas econômicos são sistemas econômicos, não teorias gerais da Justiça. Há modelos que favorecem a comunicação de virtudes humanas, e modelos que a esmagam, sem dúvida. Mas não produzem - nem anulam - a virtude por si próprios.

A meu ver, o aspecto que mais urge defender na DSI, no presente momento, é a subsidiariedade no exercício de toda forma de poder. E, quando se consideram a economia e a política, é inegável que a situação atual ostenta tremenda concentração de meios em um Estado mastodôntico, até idólatra, e que isso, por si, é uma afronta insuportável à doutrina da subsidiariedade. 

Ocorre que qualquer reforma neste aspecto vem atacada pelo establishment, o grupamento cultural hegemônico, como uma reforma "neoliberal" e "capitalista". Quando todos nós sabemos que, devidamente medida, tal reforma é fundamentalmente cristã, não materialista; libertadora, não "liberal". E, enquanto alguns se prestam a uma guerra de palavras contra aliados naturais, dos quais tanto necessitamos para o esforço político que precisaríamos empreender a fim de levar adiante nossas reformas, seguem garantidos os espaços de poder de nossos inimigos na esfera pública.

Sob o apelido de "capitalismo" aglomeram-se facetas indissociáveis da condição humana como ser social ou político, juntamente a vícios realmente odiosos, mas contingentes, típicos de certos arranjos sociais que, a bem dizer, são bem mais recentes do que o período geralmente apelidado "capitalista" ou "[neo]liberal". Não é de se espantar, pois, que a multiforme "ideologia anticapitalista" seja o ponto fulcral da pregação de boa parte dos grupos que, com menor ou maior intensidade, anseiam remodelar integralmente não os arranjos sociais, mas a própria natureza humana.

Combater "O Capitalismo" é combater uma miragem. "O Capitalismo" pode significar qualquer coisa - por conseguinte, significa nada. Militar contra "O Capitalismo", sobretudo no presente momento, é assinar um cheque em branco a toda a sorte de lunáticos, que encaram tal retórica como o tubarão encara o sangue n'água. 

O que se quer combater não é "O Capitalismo", termo hoje correspondente a um slogan propagandístico forjado pelo marxismo, mas sim uma forma mentis imanentista e imediatista; não a liberdade de dispor do fruto de seu trabalho ou de cooperar com terceiros ao dividi-lo em arranjos espontâneos, perfeitamente conformes ao princípio de subsidiariedade tão caro à DSI, mas sim uma cultura de indivíduos atomizados e apartados de qualquer preocupação superior ao "pão que comeremos amanhã". 

Essa imprecisão conceitual na nova incursão política do Sumo Pontífice custa caro à Igreja - em almas que perdem a trilha em meio à confusão, em agentes abatidos no campo inimigo por fogo amigo injustificável, em desarticulação de alianças naturais no momento exato em que tudo já parecia perdido, sob critérios estritamente mundanos (caso desconhecêssemos a regência sobrenatural da Igreja).

Postagem relacionada.

Distributivismo não é fascismo (crítica de José Octavio Dettmann contra o Conde): http://adf.ly/atr9B

Nenhum comentário:

Postar um comentário