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quarta-feira, 2 de julho de 2025

D. Pedro II, a imigração árabe cristã e o fracasso da política europeia de fronteiras abertas: uma lição civilizacional

Resumo

Este artigo analisa a política imigratória do Império do Brasil sob D. Pedro II, com destaque à acolhida estratégica de árabes cristãos oriundos do então Império Otomano, especialmente do Líbano. Em contraste, apresenta-se uma crítica fundamentada às políticas contemporâneas de imigração indiscriminada na União Europeia, que ignoraram critérios de afinidade cultural e religiosa. O caso brasileiro é proposto como modelo de integração bem-sucedida e como advertência contra o colapso das nações que abandonam suas raízes civilizacionais cristãs.

Palavras-chave: D. Pedro II; imigração árabe; maronitas; União Europeia; identidade cristã; política migratória.

1. Introdução

No século XIX, enquanto a Europa se ocupava de rivalidades imperiais e industrialização acelerada, o Império do Brasil, sob o reinado de D. Pedro II, adotava uma política migratória fundamentada na harmonia entre progresso econômico e preservação da unidade cultural cristã. O imperador, homem culto e viajado, viu no Oriente Médio uma oportunidade de acolher imigrantes árabes que, além de suas habilidades comerciais, comungavam da fé cristã — especialmente os maronitas libaneses.

Hoje, esse movimento é contrastado com a política de fronteiras abertas promovida pela União Europeia no século XXI. Esta, ao acolher grandes contingentes islâmicos sem critério civilizacional, enfraqueceu suas estruturas sociais. Ao revisitar a sabedoria de D. Pedro II, podemos lançar luz sobre erros contemporâneos e sobre a importância da afinidade cultural na recepção de imigrantes.

2. A política imigratória de D. Pedro II

D. Pedro II foi um entusiasta das culturas orientais e um estudioso do mundo árabe. Visitou a Síria, o Líbano, a Palestina e o Egito em 1876, sendo recebido com honra por líderes religiosos e autoridades locais1. Durante essa viagem, identificou nos maronitas libaneses um povo diligente, culto, comerciante — e, sobretudo, cristão. Era o tipo de imigrante ideal para o projeto civilizacional brasileiro: trabalhadores que poderiam enriquecer o país sem romper com sua estrutura espiritual católica.

Ao longo das últimas décadas do século XIX, milhares de sírio-libaneses cristãos migraram para o Brasil, sobretudo após a crise econômica e a perseguição religiosa que sofriam no Império Otomano. Foram bem recebidos porque se integravam com facilidade, adotando a língua, os costumes e a fé da terra que os acolhia2.

D. Pedro II não via a imigração como um fim em si, mas como parte de uma estratégia de desenvolvimento com unidade cultural. Ele não fechava o Brasil ao estrangeiro, mas selecionava criteriosamente os que poderiam contribuir sem ameaçar os fundamentos do país.

3. A imigração islâmica na Europa e a crise da identidade ocidental

Em contraste com essa política prudente, muitos países da União Europeia adotaram, a partir da década de 1990, uma abordagem multiculturalista radical, que culminou, após 2015, em uma verdadeira crise civilizacional. A abertura indiscriminada de fronteiras para refugiados e imigrantes, majoritariamente muçulmanos, gerou:

  • guetificação de bairros inteiros (como Molenbeek, em Bruxelas);

  • radicalização religiosa entre jovens de segunda geração3;

  • tensões culturais e atentados terroristas recorrentes;

  • perda de controle sobre os mecanismos de integração e assimilação.

Autores como Bat Ye'or alertam para o avanço da "eurábia", isto é, a progressiva islamização da Europa sob a desculpa de humanismo mal compreendido4. Outros, como Douglas Murray, denunciam o suicídio da civilização europeia ao abandonar suas raízes cristãs e permitir a infiltração de valores incompatíveis com os fundamentos ocidentais5.

4. O caso brasileiro como modelo de sucesso

O Brasil possui hoje uma das maiores diásporas libanesas do mundo — estima-se entre 7 e 10 milhões de brasileiros descendentes de libaneses6. A maioria é cristã. Essa presença não apenas fortaleceu o setor comercial, como também influenciou positivamente a cultura, a política e as artes brasileiras. Diferentemente de outras nações ocidentais, o Brasil nunca enfrentou uma islamização socialmente relevante, mesmo sendo um dos maiores centros de cultura árabe fora do mundo árabe.

Esse sucesso se explica, em grande parte, por dois fatores:

  1. Afinidade civilizacional: os imigrantes cristãos compartilhavam da fé, da ética do trabalho e da estrutura familiar brasileira.

  2. Expectativa de integração: não vieram para formar enclaves, mas para se misturar, aprender o idioma e contribuir com o país.

A lição que fica é clara: hospitalidade não pode ser confundida com desordem, e diversidade sem unidade é fragmentação.

5. Conclusão

O Brasil imperial, sob D. Pedro II, demonstrou que uma política migratória bem-sucedida exige inteligência estratégica, fidelidade aos fundamentos culturais e uma visão de longo prazo. Ao acolher árabes cristãos em vez de promover uma imigração indiscriminada, o imperador evitou os erros cometidos hoje pela União Europeia. Este caso deveria, de fato, ser matéria obrigatória nos cursos de História, Relações Internacionais e Políticas Públicas da Europa — não apenas por sua relevância prática, mas porque nos lembra que a verdadeira caridade nunca dispensa a prudência.

Referências

HOLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.
MURRAY, Douglas. The Strange Death of Europe: Immigration, Identity, Islam. London: Bloomsbury Publishing, 2017.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
ROY, Olivier. O jihad e a morte. São Paulo: Três Estrelas, 2018.
TRUZZI, Oswaldo. Os árabes no Brasil: história, identidade e imigração. São Paulo: Editora Brasiliense, 1997.
YE’OR, Bat. Eurábia: The Euro-Arab Axis. Madison: Fairleigh Dickinson University Press, 2005.

Notas de Rodapé

  1. HOLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.

  2. TRUZZI, Oswaldo. Os árabes no Brasil: história, identidade e imigração. São Paulo: Editora Brasiliense, 1997.

  3. ROY, Olivier. O jihad e a morte. São Paulo: Três Estrelas, 2018.

  4. YE'OR, Bat. Eurábia: The Euro-Arab Axis. Madison: Fairleigh Dickinson University Press, 2005.

  5. MURRAY, Douglas. The Strange Death of Europe: Immigration, Identity, Islam. London: Bloomsbury Publishing, 2017.

  6. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

terça-feira, 1 de julho de 2025

O Euro, a rejeição das bases cristãs e a falta de nacionidade: uma crítica civilizatória e filosófica

Introdução

O euro, instituído em 1999 como moeda única da União Europeia (UE), representa um projeto ambicioso de integração econômica entre países diversos. Contudo, sua criação e funcionamento carecem de um lastro fiduciário profundo, que não se limita ao aspecto financeiro, mas que deve estar enraizado em uma identidade civilizatória compartilhada. Este artigo defende que o euro, ao rejeitar as bases cristãs que historicamente unificaram a Europa e ao carecer de uma nacionidade comum, não possui esse lastro essencial. Além disso, segundo a concepção aristotélica, o euro não representa um Todo maior que a soma das partes em termos culturais e civilizatórios, o que fragiliza sua legitimidade e funcionamento.

1. O Euro e a ausência de nacionidade

O conceito de nacionidade transcende a mera existência de fronteiras políticas; envolve uma identidade cultural, histórica e simbólica compartilhada que legitima instituições como o Estado e sua moeda. Conforme Benedict Anderson, a nação é uma “comunidade política imaginada, tanto limitada quanto soberana”^1. As moedas nacionais derivam seu valor, em grande medida, dessa identidade partilhada.

No entanto, a União Europeia não é uma nação no sentido clássico, mas um ente supranacional que reúne Estados soberanos com histórias e culturas distintas. O euro, apesar de ser a moeda oficial de 20 países (em 2025), não tem uma pátria simbólica que o fundamente. Isso resulta em uma ausência de “lar comum”, um elemento fundamental para o lastro fiduciário da moeda.

Essa falta se manifesta, por exemplo, na inexistência de feriados europeus que reflitam uma identidade comum; os feriados mantêm o caráter nacional, reforçando a fragmentação cultural. Isso confirma a observação de Michael Walzer, que destaca que a identidade cultural é fundamental para a coesão política e econômica^2.

2. A rejeição das bases cristãs da Europa

A história da Europa está intrinsecamente ligada à fé cristã, especialmente desde a Idade Média, quando a Igreja Católica formou o alicerce moral, cultural e político do continente^3. O cristianismo estruturou valores que deram sentido à ordem social, política e econômica, e o seu simbolismo esteve presente na moeda e nas instituições.

A União Europeia, contudo, optou por uma postura laica que, de modo prático, rejeita essas bases cristãs. Em seu preâmbulo e tratados, não há referências explícitas à fé cristã como fundamento, e celebrações de cunho religioso são evitadas, num esforço de neutralidade^4.

A ausência desse fundamento espiritual debilita o euro de seu valor simbólico e fiduciário. Segundo John Milbank, a fé cristã é um componente essencial para a construção de uma “comunidade política legítima”, fornecendo um horizonte ético compartilhado^5. Ao rejeitar esse componente, a UE perde a confiança profunda que sustenta moedas duradouras.

3. A perspectiva aristotélica: o Todo e as partes

Aristóteles, na sua Metafísica, afirma que o Todo é mais do que a soma das partes^6. Para que um conjunto de partes constitua um Todo, é necessário que haja uma unidade de finalidade e essência que transcenda os interesses isolados.

Aplicando essa filosofia ao euro e à UE, observa-se que a moeda não representa uma unidade civilizatória real, pois não há uma identidade europeia compartilhada suficientemente forte para dar esse caráter ao conjunto. Conforme Habermas, a UE carece ainda de uma “consciência política” comum que poderia fundar uma identidade europeia^7.

Assim, o euro permanece uma soma fragmentada de moedas, sem o caráter de um Todo cultural ou político que possa legitimar plenamente seu uso e seu valor.

4. Consequências Econômicas e Sociais

A fragilidade do euro como moeda está diretamente ligada à ausência do lastro fiduciário profundo. A falta de unidade cultural e civilizatória gera desconfiança e dificuldades na coordenação política, manifestando-se em crises como a crise da dívida grega (2010-2018) e as tensões entre países do norte e do sul da Europa^8.

Robert Mundell já apontava que a viabilidade de uma moeda comum depende da existência de uma “área de moeda ótima”, que inclui não só critérios econômicos, mas também de mobilidade e solidariedade cultural^9. A UE não alcançou plenamente essas condições.

A alienação de cidadãos perante o euro e as instituições europeias reforça a necessidade de um projeto político-civilizatório mais robusto, que restabeleça um sentido comum e, por consequência, fortaleça o lastro da moeda. 

Conclusão

O euro, enquanto símbolo da União Europeia, enfrenta uma crise de legitimidade que ultrapassa questões técnicas. Sua ausência de nacionidade comum e a rejeição das bases cristãs da civilização europeia privam-no de um lastro fiduciário essencial, fundado no senso de unidade espiritual e cultural. Além disso, segundo Aristóteles, o euro não constitui um Todo maior que a soma das partes, pois carece de uma identidade cultural e civilizatória unificadora.

Para a estabilidade e legitimidade do euro, é necessário um projeto europeu que reconheça suas raízes e construa uma identidade comum, integrando a dimensão espiritual e cultural que, historicamente, sustentou a moeda e a civilização europeias.

Referências

  1. ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. 11. ed. São Paulo: Ed. UNESP, 2008.

  2. WALZER, Michael. Spheres of justice: a defense of pluralism and equality. Nova York: Basic Books, 1983.

  3. CHADWICK, Owen. A civilização cristã medieval. São Paulo: Paulus, 1995.

  4. WEILER, J. H. H. “The Constitution of Europe: ‘Do the New Clothes Have an Emperor?’ and Other Essays on European Integration.” Cambridge: Cambridge University Press, 1999.

  5. MILBANK, John. Theology and social theory: beyond secular reason. Oxford: Blackwell, 1990.

  6. ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução de Marilena Chaui. São Paulo: Abril Cultural, 1996.

  7. HABERMAS, Jürgen. The Divided West. Cambridge: Polity Press, 2006.

  8. DELLA PORTA, Donatella; KEATING, Michael (eds.). European Integration in Crisis. Londres: Routledge, 2019.

  9. MUNDELL, Robert A. “A Theory of Optimum Currency Areas.” The American Economic Review, vol. 51, n. 4, 1961, p. 657–665.

Nacionismo Econômico e A Estratégia de Compra de Moeda Nacional em Datas de Feriados Nacionais

Introdução

Em um contexto globalizado, marcado por fluxos financeiros complexos, a relação entre economia e identidade nacional pode ser fortalecida por práticas simbólicas e estratégicas. A compra de moeda nacional em feriados nacionais emerge como uma estratégia de nacionismo econômico que alia aspectos financeiros, históricos e espirituais.

Mais do que simples operações cambiais, tais ações expressam um vínculo profundo entre o investidor e a memória coletiva de sua pátria. Este artigo explora essa interseção, exemplificando com a compra do dólar no Dia da Independência dos Estados Unidos (4 de julho) e do złoty no Dia da Restauração da Independência da Polônia (11 de novembro).

A moeda nacional como símbolo de soberania e identidade

Segundo Braudel (1985), a moeda não é apenas um instrumento econômico, mas um símbolo poderoso da soberania política e cultural de um povo. A moeda materializa, em forma tangível, a história e a identidade coletiva que sustentam a nação^1.

A escolha estratégica de comprar moeda nacional em datas que celebram a fundação, ressurreição ou reafirmação da nação confere uma dimensão extra às operações financeiras, unindo racionalidade econômica e simbolismo histórico.

Exemplos simbólicos e estratégicos

4 de julho: O dólar e o Dia da Independência dos EUA

O 4 de julho celebra a assinatura da Declaração da Independência dos Estados Unidos em 1776, evento fundador da república americana. Como enfatiza Wood (1991), essa data representa a soberania popular, a liberdade e a construção de uma identidade nacional^2.

Financeiramente, esse feriado fecha o mercado americano, oferecendo uma oportunidade para a compra de dólar com menor volatilidade e possíveis condições vantajosas nos spreads cambiais. Esta operação, portanto, torna-se uma forma de resgatar e reafirmar o espírito fundacional da moeda.

11 de novembro: O złoty e o Dia da Restauração da Independência da Polônia

O ressurgimento da Polônia como Estado soberano em 1918, após mais de um século de partilhas, é celebrado em 11 de novembro. Como salienta Davies (2005), este dia simboliza o renascimento nacional e a afirmação da cultura e identidade polonesa^3.

Comprar złoty neste dia — quando os mercados locais estão fechados — não só é vantajoso economicamente, como também representa uma conexão simbólica com o momento histórico em que a Polônia reconquistou sua liberdade e autonomia monetária.

A estratégia teopolítica da compra em feriados nacionais

Ao integrar economia, história e espiritualidade, a compra de moeda nacional em feriados representa uma prática de teopolítica econômica, na qual o tempo é santificado como tempo kairológico, ou seja, tempo oportuno e sagrado (Oswald, 2012)^4.

Essa abordagem transcende o mero cálculo financeiro, incorporando uma consciência temporal que reconhece a importância das datas históricas na construção e manutenção da identidade nacional.

Considerações finais

A estratégia de nacionismo econômico por meio da compra de moeda em feriados nacionais é uma expressão de fidelidade à pátria que une práticas financeiras, memória coletiva e espiritualidade. Em uma economia global, resgatar o valor simbólico da moeda e do tempo histórico é um gesto de santificação do agir econômico.

No horizonte cristão, esse ato pode ser compreendido como uma oração prática, um serviço ao patrimônio cultural e financeiro da nação, sob a providência divina.

Referências

  1. BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV–XVIII. Tradução de Reinaldo Gonçalves. São Paulo: Martins Fontes, 1985.

  2. WOOD, Gordon S. A criação da república americana, 1776–1787. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

  3. DAVIES, Norman. God's Playground: A History of Poland. Volume 2. Oxford: Oxford University Press, 2005.

  4. OSWALD, Reginaldo. Kairos: o tempo oportuno e sagrado. São Paulo: Paulinas, 2012.

Notas de rodapé

  1. BRAUDEL, 1985, p. 43: "A moeda representa não apenas um meio de troca, mas a expressão material da soberania e da identidade coletiva de um povo."

  2. WOOD, 1991, p. 58: "O 4 de julho simboliza a construção da identidade nacional americana, fundando valores de liberdade e autonomia."

  3. DAVIES, 2005, p. 102: "A Restauração da Independência da Polônia marcou a ressurreição da nação e a reafirmação de sua cultura e soberania."

  4. OSWALD, 2012, p. 75: "O kairos é o tempo oportuno, o momento sagrado em que se realiza a vontade divina na história."

Do bípede implume ao construtor de pontes: economia salvífica e a mediação dos bens nos méritos de Cristo

Resumo

Este artigo propõe uma reflexão sobre o trabalho simbólico do homem a partir da metáfora platônica do “bípede implume”, articulando antropologia cristã, economia simbólica e sacramentalidade. Com base em São Tomás de Aquino, João Paulo II, Bento XVI, Francisco, Mircea Eliade e Louis-Marie Chauvet, o texto desenvolve a tese de que a missão do homem redimido é converter bens simbólicos em realidades sacramentais por meio do trabalho cultural, espiritual e litúrgico. Essa conversão exige não apenas técnica, mas uma economia salvífica fundada nos méritos de Cristo.

Palavras-chave: economia salvífica, simbolismo, sacramento, trabalho, mediação, João Paulo II, Bento XVI, Francisco, São Tomás, Eliade, Chauvet.

1. O homem como ave e portador de sementes simbólicas

Platão, ao definir ironicamente o homem como um “bípede implume”¹, levanta, ainda que de forma caricatural, uma questão profunda sobre a natureza humana. A imagem da ave nos remete à mobilidade, à capacidade de levar sementes de um lugar a outro — e, por analogia, o homem também transporta sementes simbólicas: hábitos, narrativas, símbolos e formas que podem fecundar outras culturas.

No contexto cristão, essas sementes não são neutras: são portadoras de sentido escatológico, pois apontam para Cristo, e têm como objetivo final a integração de todas as realidades no Reino de Deus. Nesse sentido, o homem em missão não é apenas um difusor cultural, mas um pescador de homens, um costureiro de símbolos, um construtor de pontes.

2. Carl Menger e a estrutura dos bens econômicos

Segundo Carl Menger², os bens econômicos podem ser divididos em ordens. Os de primeira ordem satisfazem diretamente as necessidades humanas, como alimento e vestuário; os de segunda ordem são meios para produzir os primeiros, como ferramentas ou processos. Essa distinção se aplica aos bens materiais com clareza funcional. No entanto, quando o objeto em questão é o símbolo, a conversão entre ordens exige mais do que técnica: exige mediação espiritual e trabalho cultural.

O símbolo, diferentemente do bem material, não se consome; ele se interpreta, se encarna e se celebra. É por isso que os bens simbólicos requerem uma economia específica: uma economia salvífica, onde o valor não está apenas na utilidade, mas na capacidade de mediar realidades invisíveis.

3. São Tomás de Aquino: ordem do bem e mediação racional

São Tomás de Aquino oferece o arcabouço metafísico necessário para compreender a hierarquia dos bens. Para ele, todo bem participa do Bem Supremo e possui sua finalidade última em Deus³. Há, portanto, uma ordem no amor (ordo amoris) que organiza os bens segundo sua proximidade com o fim último.

A mediação simbólica só é possível porque o homem possui intelecto, memória e vontade ordenadas à Verdade. Ao traduzir símbolos, interpretar tradições e ordenar bens ao fim sobrenatural, o homem realiza sua função própria como criatura racional que participa do governo divino⁴. Nesse trabalho, ele cumpre seu papel como sacerdote da criação.

4. João Paulo II: o trabalho como vocação e liturgia

A encíclica Laborem Exercens⁵ define o trabalho como cooperação com o ato criador de Deus. O homem, ao trabalhar, não apenas transforma a natureza, mas transforma a si mesmo. Esta transformação é ainda mais profunda quando o trabalho se torna liturgia do cotidiano, isto é, mediação concreta entre o visível e o invisível.

João Paulo II afirma:

“Unido a Cristo, o trabalho humano torna-se meio de santificação”⁶.

Isso vale especialmente para o trabalho simbólico, que exige fidelidade à verdade e amor à cultura alheia. O missionário cristão que traduz, costura e integra símbolos distintos num só corpo — a Igreja — está realizando um trabalho redentor, nos méritos de Cristo.

5. Economia simbólica e o sagrado segundo Mircea Eliade

Para Mircea Eliade⁷, a função do símbolo é romper com a banalidade do tempo profano e reconectar o homem com o sagrado. Toda cultura tradicional é organizada por símbolos e mitos que orientam o homem verticalmente. Quando esses símbolos se perdem ou são esvaziados, instala-se o caos: o tempo se torna linear e o espaço perde seu centro.

O cristão que semeia símbolos entre culturas está restaurando o eixo vertical da realidade, e não apenas estabelecendo relações utilitárias. Como diz Eliade:

“O símbolo revela certos aspectos da realidade — os mais profundos — que desafiam qualquer outro meio de conhecimento”⁸.

Neste contexto, o homem não apenas semeia: ele reordena o mundo a partir do Cristo, o Logos que dá sentido a todas as coisas.

6. Louis-Marie Chauvet: sacramentalidade e mediação

Louis-Marie Chauvet⁹ propõe que os sacramentos são símbolos eficazes, por meio dos quais a graça de Deus se comunica. Diferentemente da eficiência técnica, o símbolo sacramental exige abertura, fé e comunidade. Ele é mediação frágil, mas necessária.

Chauvet afirma:

“Não se chega a Deus senão pelo simbólico”¹⁰.

Isso se aplica também ao trabalho simbólico fora da liturgia: quando o cristão age no mundo por meio de sinais que apontam para Cristo, ele está realizando uma ação sacramental em sentido amplo. Ele não apenas comunica, mas integra o outro na comunhão.

7. Bento XVI: verdade, caridade e desenvolvimento humano

Na encíclica Caritas in Veritate¹¹, Bento XVI afirma que todo desenvolvimento autêntico deve unir caridade e verdade. A economia moderna sofre, segundo ele, porque exclui a verdade do amor — e com isso rompe o elo entre técnica e sabedoria.

“O amor caritas é a força extraordinária que impele as pessoas a comprometerem-se com coragem e generosidade no campo da justiça e da paz” (CIV, §1).

O símbolo, nessa chave, não é apenas comunicação: é expressão de uma verdade doada, algo que só ganha sentido dentro da economia da gratuidade (CIV, §34). A mediação entre culturas, como propõe este artigo, é um trabalho de amor, mas também de verdade — e só se sustenta nos méritos de Cristo.

8. Francisco: cultura do encontro e evangelização simbólica

Na Evangelii Gaudium¹², Francisco destaca que a evangelização deve se encarnar nas culturas, não como imposição, mas como encarnação da Palavra. O símbolo, nesse processo, é instrumento de encontro:

“A cultura não é apenas objeto da evangelização, mas sujeito ativo” (EG, §116).

Ao traduzir símbolos entre mundos diferentes, o missionário cristão não apenas ensina: costura vínculos, reconfigura espaços, torna o “estrangeiro” um “irmão”. Evangelizar é integrar simbolicamente o outro na mesma história de salvação. Isso exige trabalho, escuta e discernimento — tudo nos méritos de Cristo.

9. Conclusão

A metáfora do “bípede implume” nos leva a reconhecer que o homem cristão é mais que um portador de cultura: ele é sacerdote, costureiro, pescador e construtor. Sua missão é transformar realidades diversas num só corpo, num só lar, em Cristo, por Cristo e para Cristo.

Este trabalho, que combina razão, vontade, amor e técnica, só se realiza plenamente quando vivido na economia salvífica. Nele, o símbolo é mediado, o bem é ordenado, e o mundo visível torna-se imagem do invisível. Esta é a verdadeira economia cristã: onde tudo serve à realeza de Cristo, o único capaz de converter sementes em árvores eternas e pontes em comunhão.

Notas

  1. PLATÃO. Teeteto, 185e.

  2. MENGER, Carl. Princípios de economia política.

  3. AQUINO, Tomás. Suma Teológica, I, q. 5, a. 1.

  4. Idem, I-II, q. 19, a. 10.

  5. JOÃO PAULO II. Laborem Exercens, 1981.

  6. Ibid., §24.

  7. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano.

  8. Ibid., p. 14.

  9. CHAUVET, Louis-Marie. Symbol and Sacrament.

  10. Ibid., p. 101.

  11. BENTO XVI. Caritas in Veritate, 2009.

  12. FRANCISCO. Evangelii Gaudium, 2013.

Referências 

AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Trad. Frei Leonardo de Mattos. São Paulo: Loyola, 2001.

BENTO XVI. Caritas in Veritate. Vaticano, 29 jun. 2009. Disponível em: https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20090629_caritas-in-veritate.html. Acesso em: 1 jul. 2025.

CHAUVET, Louis-Marie. Symbol and Sacrament: A Sacramental Reinterpretation of Christian Existence. Collegeville: Liturgical Press, 1995.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

FRANCISCO. Evangelii Gaudium. Exortação apostólica. Vaticano, 24 nov. 2013. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20131124_evangelii-gaudium.html. Acesso em: 1 jul. 2025.

JOÃO PAULO II. Laborem Exercens. Carta encíclica. Vaticano, 14 set. 1981. Disponível em: https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_14091981_laborem-exercens.html. Acesso em: 1 jul. 2025.

MENGER, Carl. Princípios de economia política. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2007.

PLATÃO. Teeteto. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2002.

Teopolítica Cristocêntrica: a superação do determinismo geográfico e a ordem política fundamentada em Cristo-Rei

Introdução

A geografia, além de seu aspecto físico, sempre influenciou o pensamento político e estratégico, especialmente a partir da Era das Grandes Navegações, quando o mundo tornou-se conhecido de forma global. A partir desse conhecimento, desenvolveu-se a geopolítica, disciplina que interpreta as relações internacionais a partir da localização, recursos naturais e posicionamento estratégico dos países.

Entretanto, um erro recorrente tanto na geografia política quanto na geopolítica é o determinismo geográfico, que reduz o homem e as nações às condições naturais, negando sua liberdade e dimensão espiritual. Como cristãos, sabemos que Deus é o agente último da história e da política, atuando diretamente ou por meio da embaixada de Seu Reino, a Igreja Católica. Assim, a geopolítica transforma-se em teopolítica cristocêntrica, cuja fonte e normatividade última é Cristo Rei.

1. O erro do determinismo geográfico

O determinismo geográfico, largamente difundido em teorias políticas e sociais, entende que as condições físicas, como clima, relevo e localização, determinam o destino dos povos. Essa visão, embora apresente dados úteis, limita a compreensão da história e do poder ao esquecer a ação da vontade humana e, principalmente, a soberania de Deus.

Ao reduzir o homem a mero produto do meio, nega-se sua natureza transcendente, capaz de escolher, transformar o mundo e orientar sua história segundo princípios morais e espirituais. Portanto, a política que se funda unicamente no determinismo está fadada ao erro e ao relativismo.

2. Teopolítica: a política submetida a Deus

A teopolítica é a política fundamentada em Deus, reconhecendo-O como soberano sobre todas as coisas temporais. Diferente da teocracia — regime em que o poder político é exercido diretamente por líderes religiosos — a teopolítica cristocêntrica entende que:

  • Cristo é o Rei dos reis e Senhor dos senhores, fonte de toda verdade e justiça;

  • As autoridades temporais devem governar conforme a lei natural e divina, respeitando a ordem moral;

  • As esferas temporal e espiritual são distintas, mas a temporal está subordinada à verdade eterna.

2.1 Distinção entre Teopolítica e Teocracia

A teocracia, como praticada em alguns contextos, impõe o poder religioso de forma direta e coercitiva, muitas vezes legitimando o autoritarismo e a mentira em nome da fé. No Islã, por exemplo, o conceito de taqiyya (licença para mentir em favor da fé) é interpretado aqui como reflexo de uma teocracia autoritária, centrada na dominação.

Em contraste, a teopolítica cristã é cristocêntrica e normativamente fundada na verdade encarnada em Jesus Cristo, que exige honestidade, justiça e amor, jamais a coerção ou manipulação. Ela não busca impor um governo clerical, mas inspirar todas as esferas da vida política e social para que estejam em conformidade com a ordem divina.

3. Fundamentos Filosóficos e Teológicos da Teopolítica Cristã

3.1 São Tomás de Aquino e a Lei Natural

São Tomás afirma que a autoridade temporal deve reger-se pela lei natural, que é participação da criatura racional na lei eterna de Deus. O poder político legítimo visa o bem comum e está subordinado à ordem moral. Por isso, um governante injusto perde a legitimidade diante de Deus.

3.2 Doutrina Social da Igreja

Documentos como Rerum Novarum (Leão XIII) e Quadragesimo Anno (Pio XI) reforçam que a política deve estar a serviço da dignidade humana e do bem comum, fundamentada na justiça social, solidariedade e respeito à lei natural.

3.3 Reinado Social de Cristo-Rei

Em Quas Primas (1925), Pio XI institui a festa de Cristo Rei, ressaltando que Cristo deve reinar sobre as almas e as sociedades, não por meio da coerção, mas pelo consentimento livre, iluminando a ordem temporal com a verdade e o amor divinos.

4. Aplicação Prática na Política e Relações Internacionais

A teopolítica cristã orienta que:

  • As nações respeitem a dignidade transcendente do ser humano, que não se reduz a fatores geográficos ou materiais;

  • A paz verdadeira se funda na justiça e na reconciliação, não em acordos temporários sem base moral;

  • A diplomacia busque a verdade, evitando manipulação e mentira;

  • Os governantes exerçam a autoridade com responsabilidade, subsidiariedade e solidariedade.

4.1 Exemplos Históricos

  • A União Ibérica (1580–1640), apesar das dificuldades políticas, mostrou como a cristandade unificada sob um mesmo rei podia impulsionar uma missão evangelizadora e uma ordem internacional alinhada com princípios cristãos⁷.

  • O Tratado de Westfália (1648), embora estabelecesse a soberania dos Estados, não eliminou a influência da ordem cristã europeia, que moldava as regras da convivência política⁸.

  • A influência da Doutrina Social da Igreja no século XX orientou o desenvolvimento de políticas que respeitam a dignidade humana e o bem comum, influenciando a criação de organismos internacionais voltados à paz e justiça⁹.

5. Contraste com modelos autoritários e relativistas

Enquanto regimes teocráticos autoritários podem usar a fé para justificar o poder absoluto e práticas como a mentira, a teopolítica cristã exige a coerência com a verdade revelada, o respeito à liberdade e a busca pelo bem comum universal.

Referências Bibliográficas

  1. PIO XI. Quas Primas, Vaticano, 1925. Disponível em: https://www.vatican.va/content/pius-xi/pt/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_11121925_quas-primas.html. Acesso em: 30 jun. 2025.

  2. AQUINO, São Tomás de. Summa Theologica. Trad. Frei Leopoldo de Almeida. São Paulo: Loyola, 2001.

  3. LEÃO XIII. Rerum Novarum. Vaticano, 1891. Disponível em: https://www.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum.html. Acesso em: 30 jun. 2025.

  4. AQUINO, São Tomás de. Op. cit.

  5. PIO XI. Quadragesimo Anno, Vaticano, 1931. Disponível em: https://www.vatican.va/content/pius-xi/pt/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_19310515_quadragesimo-anno.html. Acesso em: 30 jun. 2025.

  6. PIO XI. Op. cit.

  7. OSTERHOUT, J. The Westphalian System: Origins and Impact. International Relations Journal, 2010.

  8. NOVAK, Michael. The Spirit of Democratic Capitalism. New York: Simon & Schuster, 1982.

Notas de rodapé

¹ PIO XI, Quas Primas, 1925, define Cristo como o Rei soberano da humanidade, cuja autoridade deve inspirar a ordem temporal.

² LEÃO XIII, Rerum Novarum, 1891, afirma que os poderes civis devem respeitar a lei natural e divina para legitimar sua autoridade.

³ São Tomás de Aquino, em Summa Theologica, enfatiza a distinção entre a autoridade espiritual e temporal, subordinando a temporal à lei eterna de Deus.

⁴ Ibid.

⁵ PIO XI, Quadragesimo Anno, 1931, reforça a necessidade da justiça social e do respeito à dignidade humana na organização política.

⁶ PIO XI, Quas Primas, 1925, explicita que o Reino de Cristo é espiritual, mas influencia toda a ordem social e política.

⁷ DETTMANN, José Octavio exemplifica a aplicação prática da teopolítica na história.

⁸ OSTERHOUT, J. The Westphalian System, 2010, analisa o equilíbrio entre soberania e influência moral da cristandade.

⁹ NOVAK, Michael. The Spirit of Democratic Capitalism, 1982, discute a ética cristã na política moderna.

Sessenta anos de plenitude: União Ibérica, tempo kairológico e o ciclo de Kondratiev nos desígnios da Providência

1. Introdução: quando a história se dobra à Divina Providência

A história não é uma sucessão aleatória de eventos. Há ritmos, padrões e ciclos em sua tessitura — e, por vezes, esses ciclos convergem de modo tão harmônico que se revelam como marcas do tempo de Deus na história dos homens. A União das Coroas Ibéricas (1580–1640) é uma dessas convergências. Durante sessenta anos, os impérios missionários de Portugal e Espanha estiveram sob um mesmo cetro, e esse período coincide não só com um auge civilizacional e espiritual — uma verdadeira Era de Ouro —, mas também com o tempo exato de um ciclo econômico de Kondratiev, cuja duração é de aproximadamente sessenta anos.

Mas há algo mais profundo ainda: esse período manifesta os sinais de um tempo kairológico — o tempo qualitativo da visitação divina, aquele em que a história recebe o influxo da eternidade e a missão de Cristo se manifesta com potência inconfundível.

2. Sessenta anos de união: plenitude imperial e espiritual

De 1580 a 1640, sob a Casa de Habsburgo, Portugal e Espanha operaram como uma só monarquia católica. Não se trata apenas de uma unificação política, mas de uma convergência espiritual, cultural e missionária:

  • Os impérios missionários se fundem, levando o Evangelho a quatro continentes;

  • O milagre de Guadalupe (1531) — já ocorrido, mas ainda circunscrito ao México — é difundido e torna-se símbolo de unidade entre povos europeus e indígenas;

  • A ação da Companhia de Jesus se intensifica, com espanhois e portugueses atuando juntos na Ásia, África e América;

  • A Contra-Reforma encontra expressão política concreta, com o poder monárquico atuando em favor da ortodoxia católica;

  • A arte barroca floresce, dando forma visível ao espírito tridentino com exuberância sacramental.

Esse período marca, portanto, o cume de uma ordem católica universal visível, algo que nenhuma outra união política posterior conseguiu realizar com tamanha densidade espiritual.

3. Era de Ouro e tempo kairológico

A tradição bíblica e patrística distingue dois modos de tempo:

  • Chronos (χρόνος): o tempo cronológico, marcado pela sucessão dos dias e dos eventos.

  • Kairos (καιρός): o tempo qualitativo, o momento oportuno e providencial em que Deus age na história com potência escatológica.

Durante a União Ibérica, o tempo chronos é transcendido por um kairos missionário e civilizacional. Trata-se de um tempo:

  • De convergência entre ação política e missão espiritual;

  • De superação das rivalidades seculares em nome da fé comum;

  • De simultaneidade global de ação evangelizadora, conectando os confins do mundo sob o mesmo batismo, o mesmo rito e a mesma esperança.

Essa unificação, com todos os seus defeitos terrenos, ainda assim se alinha à promessa de Cristo: “Ide e fazei discípulos de todas as nações” (Mt 28,19). Trata-se, pois, de um kairos de plenitude geográfica e espiritual, como que um eco visível da catolicidade da Igreja. 

4. O número sessenta e sua simbologia bíblica

O número sessenta não é arbitrário. Na Escritura, ele aparece como número de estrutura completa, ordem estabelecida e maturidade espiritual:

  • Isaías 60: uma das mais belas profecias messiânicas, descrevendo a glória de Sião e a conversão das nações.

  • Cânticos 6,8: “Sessenta são as rainhas, oitenta as concubinas...” — sessenta como número régio e pleno.

  • Em Levítico e Números, múltiplos de seis aparecem em contextos de jubileu, restituição e sacralidade econômica.

O número sessenta também representa três vezes vinte, sendo vinte o número da espera e da maturação. Multiplicado por três, torna-se plenitude trinitária da espera — um selo de missão realizada e de estrutura sagrada prestes a ser transfigurada ou encerrada.

5. O ciclo de Kondratiev: tempo econômico e Providência

Nikolai Kondratiev (1892–1938), economista russo, observou que o capitalismo ocidental apresentava ciclos de longa duração, com aproximadamente 50 a 60 anos de crescimento, saturação e declínio. Esses ciclos envolvem:

  • Inovações tecnológicas disruptivas;

  • Expansão industrial e comercial;

  • Período de maturação e crise;

  • Transição para nova estrutura produtiva e espiritual.

Aplicado à União Ibérica, temos:

Fase Tempo histórico Acontecimento
Expansão 1580–1600 Unificação missionária e comercial
Maturação 1600–1620 Conquista e estabilização dos territórios
Saturação 1620–1640 Resistência colonial, crises locais, declínio espiritual

Essa leitura permite compreender que a história econômica obedece também a ritmos providenciais, e que o ciclo ibérico de sessenta anos cumpriu um papel essencial no plano da evangelização das nações. 

6. O fim do kairos e o tempo da provação

O encerramento da União Ibérica em 1640 inaugura um novo ciclo: o tempo da dispersão e da resistência. Entre os sinais dessa nova fase, podemos destacar:

  • O avanço das potências protestantes (Holanda, Inglaterra);

  • A substituição da linguagem cristã pela retórica secular das soberanias nacionais;

  • O surgimento do iluminismo e do racionalismo, que passam a corroer as bases da ordem espiritual;

  • A queda das ordens religiosas, perseguidas por Estados absolutistas ou revolucionários;

  • A paulatina substituição do Reino de Cristo pela religião dos direitos humanos.

O tempo kairológico se fecha. E a missão, que antes florescia na unidade dos impérios católicos, agora se torna trabalho de resistência em tempos adversos, ecoando as palavras de Cristo: “Virá a noite, quando ninguém poderá trabalhar” (Jo 9,4).

7. Conclusão: sessenta anos de plenitude nos méritos de Cristo

A União Ibérica foi mais do que um fato político. Foi:

  • Uma Era de Ouro para a cultura e a missão católica;

  • Um tempo kairológico, em que Deus visitou os povos ibéricos com uma responsabilidade histórica sem paralelo;

  • Um ciclo providencial de sessenta anos, no qual a economia, a cultura e a fé se alinharam sob o estandarte de Cristo Rei.

Essa leitura não apenas dignifica o passado, mas aponta para o futuro. Pois, se houve um kairos na história ibérica, haverá outros kairoi — e o mesmo Deus que uniu reinos para evangelizar o mundo é Aquele que volta para julgar as nações.

Notas

  1. KONDRÁTIEV, Nikolai. The Major Economic Cycles. Moscow, 1925.

  2. TURNER, Frederick Jackson. The Significance of the Frontier in American History. 1893.

  3. CASTELLI, Enrico. O Tempo e a História. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992.

  4. Bíblia Sagrada. Tradução da CNBB. Brasília: Edições CNBB, 2008.

  5. FERRÃO, Francisco. A União Ibérica e a Missão Global. Lisboa: Gradiva, 2007.

  6. PIEPER, Josef. O Tempo e a Eternidade. Lisboa: Tenacitas, 2003.

  7. GONZÁLEZ, Justo L. A Era dos Descobrimentos e a Missão Cristã. São Paulo: Vida Nova, 2002.

Missão ou Narcisismo Imperial? A Teopolítica Ibérica à Luz de Kujawski

1. Introdução: Dois Impulsos, Dois Destinos

Em A Pátria Descoberta, Gilberto de Mello Kujawski distingue com acuidade os projetos expansionistas das coroas ibéricas: enquanto Portugal teria se lançado ao mar “sob um mandato do Céu”, a Espanha teria empreendido sua expansão como uma busca de si mesma¹. Essa diferença teopolítica não é meramente retórica. Ela se expressa concretamente nos modos de ocupação, nas motivações espirituais e nos impactos ecológicos. Para Kujawski, esse contraste é particularmente evidente na troca colombina, que assume, no caso espanhol, traços altamente destrutivos para os povos e o ecossistema do continente americano.

2. O Mandato do Céu: Portugal e a Missão Providencial

A concepção portuguesa da expansão marítima se vincula à ideia de missão cristã providencial. Desde o Milagre de Ourique (1139), a fundação do reino se percebe como ato de Deus, que orienta o povo português a desempenhar um papel único na história da salvação. Kujawski afirma que “o espírito de Portugal é o de um povo tocado pelo milagre e destinado a irradiá-lo pelas partes do mundo”¹.

O projeto marítimo lusitano foi articulado por uma teologia do serviço:

  • O Padroado Régio, legitimado por Roma, conferiu ao rei português o dever de evangelização nas terras descobertas;

  • A estrutura de feitorias, em vez de colônias, indica um modelo de convivência e não de substituição cultural;

  • A atuação de ordens religiosas, sobretudo os jesuítas, visava integrar os nativos à fé católica, respeitando, dentro dos limites da época, certas práticas culturais locais.

Essa missão não foi isenta de violência ou exploração, mas Kujawski entende que havia uma ordem espiritual orientando o gesto político, e não apenas o desejo de lucro ou glória nacional².

3. A Busca de Si Mesma: a Espanha e seu espelho no Novo Mundo

A Espanha entra na modernidade em um processo de unificação conflituosa. A expulsão dos mouros (1492) e dos judeus marca o fim de séculos de Reconquista, mas também inaugura uma crise de identidade. Kujawski escreve: “A Espanha, ao contrário de Portugal, partiu em busca de si mesma. No Novo Mundo, viu a si própria projetada e, por isso, destruiu”¹.

A ação espanhola nas Américas foi marcada por:

  • A implantação da encomienda, sistema que sujeitava indígenas à servidão;

  • A criação de vice-reinados com estrutura imperial fortemente hierarquizada;

  • A busca obsessiva por minérios preciosos, que levou à devastação de vastas regiões.

O Novo Mundo tornou-se para a Espanha um espelho de afirmação imperial. O outro não era interlocutor, mas obstáculo ou reflexo deformado do que o conquistador desejava ser. Isso explica, em parte, o grau de violência e destruição cultural que se seguiu.

4. A troca colombina como tragédia ecológica

O conceito de “troca colombina” foi elaborado por Alfred W. Crosby³ para descrever o intercâmbio biológico entre os dois mundos. No caso da conquista espanhola, Kujawski observa que essa troca foi “altamente destrutiva para o ecossistema do continente”¹. Alguns efeitos notórios incluem:

  • A introdução de doenças como varíola, sarampo e gripe, que dizimaram populações indígenas⁴;

  • A chegada de espécies exóticas como cavalos, gado e porcos, que alteraram profundamente os modos de vida locais;

  • A substituição de técnicas agrícolas sustentáveis por monoculturas de exportação;

  • O desmatamento massivo em função da mineração e da produção agrícola intensiva.

Enquanto os portugueses praticaram uma forma de colonização mais voltada ao comércio e à mediação cultural, os espanhóis impuseram um modelo extrativista e substitutivo, causando colapsos ecológicos e sociais de longo prazo.

5. Teopolítica da Conquista: Cristo ou César?

A teopolítica, enquanto disciplina que estuda o nexo entre fé e poder, ajuda a compreender a motivação profunda dos projetos ibéricos. Kujawski, ao estabelecer a diferença entre o mandato do Céu e a busca de si mesmo, opera uma distinção semelhante àquela entre Cristo e César.

Portugal, apesar de seus pecados históricos, agiu segundo uma “gramática da missão” — na qual o poder político é instrumento da fé. A Espanha, por sua vez, agiu segundo a “gramática da afirmação imperial”, na qual a fé é instrumento do poder. Por isso, os resultados são radicalmente distintos:

  • Em Portugal, há traços de mediação e convivência;

  • Na Espanha, há substituição, imposição e espoliação.

Essa leitura se aproxima da visão de Olavo de Carvalho, que afirmou que Portugal representa “a última flor da cristandade medieval”⁵ — uma civilização ainda não corrompida pela ânsia moderna de dominação.

6. Epílogo: Guadalupe e a Correção Providencial

A correção dos erros da conquista espanhola não se deu pela força das armas ou pela imposição das leis, mas pela ação direta da Providência. O milagre de Nossa Senhora de Guadalupe, ocorrido em 1531 — apenas dez anos após a queda de Tenochtitlán —, é o marco visível de que Cristo corrigiu os erros da Espanha por meio de sua Mãe.

A Virgem aparece a Juan Diego Cuauhtlatoatzin, um índio humilde, em sua própria língua, vestida com elementos culturais mesoamericanos, abrindo caminho para a conversão de milhões de nativos em poucos anos. A evangelização torna-se mariana, simbólica e amorosa — e não mais imperial, opressora ou militarizada.

Além disso, a história confirma essa reconciliação espiritual com um sinal político: a União Ibérica (1580–1640), quando Portugal e Espanha foram governados sob a mesma coroa por três gerações. Essa união:

  • restabelece a comunhão das missões católicas nos cinco continentes;

  • indica que Deus uniu aquilo que o orgulho ibérico havia separado;

  • confirma que, após a correção espiritual, a unidade civilizacional era possível nos méritos de Cristo⁶.

Essa união dura sessenta anos, número bíblico de purificação e aprendizado⁷. Após esse período, as coroas se separam, mas a memória do que foi unido permanece como modelo de cooperação cristã entre nações chamadas a servir o Reino de Deus.

7. Conclusão: Restaurar a Missão, Curar a Terra

O diagnóstico de Kujawski não é apenas histórico. Ele serve como chave hermenêutica para o presente. Toda civilização que busca a si mesma no outro, sem mandato divino, tende à destruição. Toda nação que age segundo uma vocação superior, mesmo com quedas, tende à edificação.

O milagre de Guadalupe, seguido da União Ibérica, demonstra que Cristo reina sobre a história das nações e as conduz à verdade por meio da misericórdia. Restaurar a missão portuguesa — entendida não como nostalgia imperial, mas como vocação cristã de mediação cultural e serviço à verdade — é uma forma de curar as feridas históricas da conquista. Mais que isso: é um caminho para compreender a própria identidade brasileira, fundada no encontro (e não na imposição) entre mundos.

Notas de rodapé

  1. KUJAWSKI, Gilberto de Mello. A Pátria Descoberta. São Paulo: Imago, 1980, p. 25.

  2. Idem, p. 33.

  3. CROSBY, Alfred W. The Columbian Exchange: Biological and Cultural Consequences of 1492. Westport, CT: Greenwood Press, 1972.

  4. DIAMOND, Jared. Guns, Germs and Steel: The Fates of Human Societies. New York: W. W. Norton & Company, 1997.

  5. CARVALHO, Olavo de. “Portugal e a restauração do Ocidente cristão”. Jornal da Tarde, São Paulo, 1999.

  6. Cf. RODRÍGUEZ, Jaime. The Rise of the Spanish American Republics. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.

  7. Cf. LEÃO XIII. Providentissimus Deus, 1893. A simbologia dos números bíblicos é amplamente reconhecida pela tradição exegética católica.

Referências Bibliográficas

CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições. Rio de Janeiro: Record, 2000.

CROSBY, Alfred W. The Columbian Exchange: Biological and Cultural Consequences of 1492. Westport, CT: Greenwood Press, 1972.

DIAMOND, Jared. Guns, Germs and Steel: The Fates of Human Societies. New York: W. W. Norton & Company, 1997.

KUJAWSKI, Gilberto de Mello. A Pátria Descoberta. São Paulo: Imago, 1980.

LEÃO XIII. Providentissimus Deus. Vaticano, 1893.

PIO XI. Quas Primas. Vaticano, 1925. 

RODRÍGUEZ, Jaime E. The Rise of the Spanish American Republics. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.