1. Introdução: a fronteira como prisão ou missão
A modernidade cunhou uma visão ambígua da fronteira. Para uns, ela representa o limite civilizacional; para outros, o lugar da expansão e da oportunidade. Frederick Jackson Turner, em seu célebre ensaio The Significance of the Frontier in American History (1893), consagrou a fronteira como o motor da identidade americana, onde o espírito do colono era forjado na adversidade. Mais tarde, Tim Marshall, em Prisoners of Geography (2015), diagnosticaria as fronteiras geográficas como prisões estruturais que moldam — e restringem — o destino das nações.
Por outro lado, José Ortega y Gasset proclamava que o homem é ele mesmo e suas circunstâncias1. A fronteira, nesse sentido, aparece como circunstância limitadora — mas também como ocasião para superação. Ora, nenhuma dessas visões modernas ou deterministas resiste à luz do Milagre de Ourique, onde se estabelece, não apenas uma dinastia ou uma soberania política, mas um juramento espiritual que transcende os séculos: servir a Cristo, Rei e Senhor da História, com todos os meios disponíveis — e mesmo contra todas as limitações.
2. O Milagre de Ourique: fundação espiritual da expansão
O episódio de Ourique (1139) não pode ser reduzido a um simples evento bélico. Nele, Dom Afonso Henriques recebe de Cristo a confirmação de sua autoridade, não apenas como rei de uma terra, mas como servidor de uma missão transfronteiriça. A partir daquele momento, a história de Portugal se desenrola como uma série de atos missionários: não de dominação, mas de santificação dos espaços.
Como ensina Plínio Corrêa de Oliveira:
“A verdadeira nobreza se define pela missão de servir a Deus na ordem temporal.”2
Nesse sentido, Portugal inaugura, com Ourique, uma forma de estar no mundo que transcende os determinismos da geografia: não importa o deserto, o mar, o desconhecido — tudo será tomado para Cristo, ou será ocasião para a cruz.
3. A fronteira como barreira ou como ponte
Frederick Jackson Turner via na fronteira a síntese da civilização americana. Mas era uma fronteira onde o homem se afirmava contra o selvagem — uma fronteira protestante, individualista, marcada pela sobrevivência. Portugal, ao contrário, forma-se no espírito pontífice (de pontifex, construtor de pontes), como sugerido pela leitura de Leopold Szondi, que vê o homem como ser de relação e mediação3.
A técnica, para o homem cristão, não é apenas uma ferramenta de sobrevivência — é um instrumento de redenção. Onde há separação, ele constrói conexão. Onde há abismo, ele lança a ponte. A missão portuguesa é, portanto, romper a barreira entre o que se sabe e o que não se sabe — entre o que é de Cristo e o que ainda não foi submetido a Ele.
4. O ser humano é técnico, simbólico e escatológico
O cristianismo não nega as limitações do espaço e do tempo — mas as assume para transfigurá-las. O homem é:
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Técnico, porque age sobre o mundo;
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Simbólico, porque revela o sentido das coisas;
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Escatológico, porque não pertence ao mundo como destino final, mas como palco da luta espiritual.
Cristo, ao dizer “Ide e evangelizai todas as nações” (Mt 28,19), não lançou um apelo genérico, mas um mandato de superação de toda fronteira. Por isso, cada geração pode ser limitada em seus meios — mas não em sua missão. Se hoje não se pode, amanhã se poderá. A técnica avança, o espírito permanece.
5. A cristianização do espaço e do tempo
O determinismo geográfico é, em última instância, uma forma de materialismo histórico. Ele postula que o homem é apenas fruto do relevo, do clima, da distância ou da barreira natural. Mas a missão de Cristo, instaurada sacramentalmente no Milagre de Ourique, destrói esse paradigma: nada é impossível nos méritos de Cristo, e nenhuma limitação secular tem a última palavra.
Assim como o corpo de Cristo rompeu as barreiras do tempo, da morte e do inferno, o Corpo Místico de Cristo — a Igreja, e por extensão a missão política dos povos cristãos — rompe a prisão da geografia, transformando o mundo numa rede de pontes.
6. Conclusão: fronteiras santificadas, técnica redimida, missão permanente
A verdadeira fronteira não é a linha entre civilização e barbárie, entre terra conhecida e desconhecida — mas a linha entre a submissão e a rebelião diante de Deus. Portugal, a partir de Ourique, escolheu ser instrumento de Cristo, e essa escolha lhe confere uma missão: romper com o mito da fronteira como limite, e instaurar a fronteira como ocasião de serviço e de santificação.
Portanto, onde o mundo vê limites, o cristão vê missão. E onde a geografia parece prisão, a cruz mostra-se como ponte. Nos méritos de Cristo, a técnica, o tempo e a geografia deixam de ser fatores de condicionamento, para se tornarem expressões do Reinado Social de Nosso Senhor.
Notas de Rodapé
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ORTEGA Y GASSET, José. Meditaciones del Quijote. Madrid: Revista de Occidente, 1914. ↩
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CORRÊA DE OLIVEIRA, Plínio. Nobreza e Elites Tradicionais Análogas nas Alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza Romana. São Paulo: Vera Cruz, 1993. ↩
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SZONDI, Leopold. Análise do Destino Humano. São Paulo: Loyola, 2000. ↩